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O modo metafísico de discorrer, a forma não dialética de abordar os fenômenos da natureza e da história, imperava, no fundamental, na filosofia clássica burguesa dos séculos XVII e XVIII. Só alguns representantes destacados da filosofia e da ciência (Descartes, Spinoza, Leibnitz, Rousseau, Diderot) revelavam traços evidentes de dialética. A dialética pré-marxista teve seu desenvolvimento no idealismo clássico alemão. Os principais representantes desta corrente foram Kant, Fichte, Schelling e, particularmente, Hegel,
O idealismo clássico alemão nasceu e se desenvolveu nos fins do século XVIII e no primeiro terço do século XIX, na época em que os países adiantados da Europa Ocidental (Inglaterra, França, Países Baixos) já tinham imposto as novas relações capitalistas e a derrocada do regime feudal absolutista se efetuava rapidamente. Foi o período da linha ascendente do desenvolvimento da burguesia, época dos movimentos e revoluções democrático-burguesas.
A revolução burguesa (1789-1794) na França, constitui o centro desse período. A filosofia clássica alemã formou-se sob a influência da ideia da "ilustração" francesa e logo após a revolução burguesa na França.
O idealismo clássico alemão apoiava-se ao mesmo tempo no nível superior do desenvolvimento das ciências, em comparação com os períodos precedentes. A revolução industrial nos fins do século XVIII nos países adiantados da Europa imprimiu um grande impulso ao desenvolvimento dos diversos ramos das ciências naturais, da astronomia, da geologia, da física, da química e da biologia. Cada vez mais se ia apagando o antigo abismo intransponível para a ciência entre as diversas formas da matéria. Cada vez destacava-se mais a conexão existente entre essas formas. Desapareceu a separação metafísica entre as várias espécies de plantas e de animais, e entre a natureza orgânica e a inorgânica. As antigas representações metafísicas da natureza com suas "espécies irremovíveis" começaram a dar lugar às teorias científicas da evolução universal e da conexão geral das coisas.
Os representantes do idealismo clássico alemão eram os ideólogos da burguesia revolucionária daquela época. Contudo, sua ideologia refletia as condições específicas do desenvolvimento da Alemanha.
A Alemanha era então, comparada com os demais países da Europa Ocidental, o mais atrasado, econômica e politicamente. O regime feudal continuou existindo na Alemanha durante todo o século XVIII e nos princípios do século XIX. O desenvolvimento da Alemanha adquiriu, por isso, um caráter pequeno-burguês que, no fundamental, continuou a manter-se durante toda a primeira, metade do século XIX. A burguesia alemã, diferenciava-se da francesa, então enérgica e revolucionária, por ser frouxa e tímida. Impotente na prática, apenas podia contemplar o que faziam as outras nações. O burguês alemão distinguia-se, segundo expressão de Marx, por suas "pequenas atividades e suas grandes ilusões".
Durante este período aparece na Alemanha uma plêiade de escritores que figuram entre os representantes mais notáveis da literatura mundial (Goethe, Schiller, Lessing, etc.) e da filosofia (Kant, Fichte, Schelling, Hegel, etc.). De certa maneira, todos eles expressam a contradição existente entre a grandeza dos ideais e a mesquinhez da realidade alemã. Isso manifestou-se particularmente na filosofia. A simpatia dos representantes da filosofia clássica alemã pelas ideias da revolução francesa traduziu-se numa sublevação no terreno das ideias. O grande poeta alemão Henrique Heine dizia, dirigindo-se aos franceses:
"Entre nós houve uma sublevação no mundo do pensamento, exatamente igual à que vós fizestes no mundo material, e destruindo as velhas doutrinas ficamos tão entusiasmados quanto ficastes quando do assalto à Bastilha".
Marx denomina a filosofia de Emanuel Kant de "a doutrina alemã da revolução francesa". Não encontrando uma aplicação prática, a atividade política transferiu-se para o campo da filosofia; por isso, como indica Marx nas suas "Teses sobre Feuerbach", o "lado ativo, em oposição ao materialismo metafísico e contemplativo" pré-marxista, foi desenvolvido pelo idealismo. Mas desenvolvido de uma forma abstrata, pois que o idealismo não reconhece uma verdadeira atividade material.
O idealismo alemão, desde o seu representante mais remoto, Leibnitz, lutava contra o materialismo. Suas premissas e conclusões tinham base falsa. Apresentavam como primário, o espírito, o principio espiritual (subjetivo ou objetivo), e a matéria — a realidade objetiva como derivada desse princípio espiritual, idealista. Os idealistas alemães, tratando de utilizar os aspectos débeis do materialismo metafísico pré-marxista, criticavam-no dum ponto de vista dialético idealista. No curso da elaboração desta dialética, fizeram muitas conjeturas geniais.
Isto foi possível porque outros sistemas idealistas, em suas sínteses, apoiavam-se no enorme material histórico e científico naturalista. Os idealistas alemães, como dizia Engels, encharcaram-se a contra gosto de conteúdo materialista,
"até que, por fim, o sistema de Hegel já não representava, em seu método e conteúdo, mais que um materialismo investido de uma forma idealista"(72).
A filosofia clássica alemã, de forma idealista, difundiu o ser no pensamento. Além disso concentrava sua atenção na pesquisa das formas do pensamento e sua evolução. Nesse terreno chegou a muitas conclusões arbitrárias e fantásticas. Apesar disso, a filosofia idealista alemã
"demonstrou, na base de muitos exemplos tomados dos ramos mais diversos das ciências, a analogia entre os processos do pensamento e os processos da natureza e da história, e vice-versa, assim como o império de leis idênticas para todos esses processos"(73).
A filosofia clássica alemã foi o ponto mais alto da ascensão do pensamento burguês. Contudo jamais foi consequente nas conclusões que se derivam da sua doutrina dialética. O desenvolvimento da revolução burguesa da França, seu caráter de massas e o terror jacobino, acovardaram a burguesia alemã, empurrando-a para o campo da reação, para o compromisso com o feudalismo. Isto foi refletido pelos representantes da filosofia alemã em seu desenvolvimento. Inclusive Hegel, que da posição idealista cultivou mais consequentemente o método revolucionário, — a dialética —, convertendo-se, durante a época da reação, no filósofo reconhecido do absolutismo prussiano.
Emanuel Kant é o pai da filosofia clássica alemã. Nasceu em 1724 em Koenigsberg, onde passou quase todos os oitenta anos de sua vida. Havia em Koenigsberg uma velha universidade na qual Kant estudou e mais tarde lecionou durante 50 anos. A vida de Kant, exteriormente monótona e sem cor, foi riquíssima em muitos aspectos e interesses intelectuais. Ocupou-se de todos os problemas de sua época: ciências naturais, matemática, geografia, filosofia, lógica, pedagogia, ética, estética, antropologia, filosofia da história e do direito, e política.
Kant foi o ideólogo da burguesia progressista do século XVIII e principalmente da burguesia alemã. Sua inconsequência na luta contra o feudalismo foi o resultado do caráter dualista de sua filosofia. Kant procurava conciliar o idealismo e o materialismo, a ciência e a religião, acolhendo-se, em última instância, ao idealismo.
"O traço fundamental da filosofia de Kant, diz Lenin, é a conciliação do materialismo com o idealismo, a transação entre ambos, a associação num sistema de tendências filosóficas diversas e contraditórias"(74).
No desenvolvimento da filosofia de Kant distingue-se habitualmente dois períodos: o período "pré-crítico", até princípios da nona década, quando apareceu seu livro "Crítica da Razão Pura", e o período chamado "crítico". Tanto num como noutro, Kant conciliou o materialismo e a ciência com o idealismo e a religião. Já em seus primeiros trabalhos acham-se ideias que entraram depois em sua "Crítica da Razão Pura". Entretanto, entre a primeira e a última etapa de sua atividade filosófica há uma diferença notável. Durante o primeiro período de sua atividade filosófica, Kant dedica atenção principalmente às ciências naturais; o aspecto materialista de sua filosofia, neste período, exprime-se com muito mais força do que no período posterior. Durante os anos seguintes, Kant transfere sua atenção fundamental para a teoria do conhecimento, e é então que começa a predominar a base idealista em sua filosofia.
Sua obra mais importante, no primeiro período, é a "História Geral da Natureza e Teoria do Céu, ou Experiência Sobre a Construção e a Origem Mecânica do Cosmos, Examinado Sob um Ponto de Vista Apoiado nos Princípios Fundamentais da Teoria de Newton" (1755). A interpretação que Newton, apoiado na matemática e na mecânica, deu à natureza, era considerada, naquela época, como o ideal da ciência exata. Mas o fato dos princípios newtonianos explicarem apenas a construção do sistema dos corpos celestes em seu estado atual, deixa Kant insatisfeito. Kant concentra então todo o seu interesse no problema do nascimento do cosmos; deseja dar uma interpretação da origem e da evolução do universo. Newton renunciou a resolver esse problema, considerando que seu domínio correspondia a intervenção direta da divindade. Kant acoimava essa conclusão de Newton de "filosofia sombria". Nesse problema, Kant considerava-se continuador da obra dos grandes materialistas da antiguidade, Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
"Dai-me a matéria e vos mostrarei como formar o mundo com ela", exclama.
O sistema solar, segundo afirma Kant, nasceu por via natural, como consequência da rotação da primitiva nebulosa caótica; continua evolvendo e futuramente morrerá. Não é um impulso divino a força motriz desse processo, mas a ação recíproca de forças opostas, inerentes à própria matéria, à atração e à repulsão; a matéria é, segundo Kant, a unidade dessas forças. Kant levanta o problema, audaz para aquela época, da constante gênese e caducidade da matéria. Emprega o princípio historicista no estudo da evolução da terra e em tudo que se relaciona com sua evolução. Além da "História e teoria dos céus", Kant realizou vários trabalhos de caráter científico-naturalista.
Os fundadores do marxismo apreciaram consideravelmente estes trabalhos de Kant. Engels escreve que estes trabalhos abriram a primeira brecha na rígida concepção metafísica do mundo dos séculos XVII e XVIII. A crença de que a natureza não tem nenhuma história no tempo foi abalada pela primeira vez por estas obras de Kant. A terra e todo o sistema solar aparecem nas obras de Kant como coisas situadas no tempo e sujeitas à evolução.
Contudo Kant procurava ao mesmo tempo conciliar suas conclusões materialistas com as exigências da religião. A ordem e as leis que regem o universo servem a Kant para demonstrar a existência de deus.
Os elementos materialistas da filosofia naturalista de Kant, conduziram-no a uma posição crítica ante a metafísica e a lógica formal então imperantes. Em sua obra "Tentativa de Introdução das Quantidades Negativas na Filosofia" (1763) Kant critica a lógica formal que não reconhece a existência das contradições enquanto o mundo real, em todas as suas manifestações, está repleto delas. Em ligação com isto levanta-se diante do filósofo o problema da possibilidade de seu conhecimento científico. Na década de 70, Kant passa da filosofia naturalista aos problemas da teoria do conhecimento, preferentemente. Sobre este assunto achava que, para colocar o problema do conhecimento do mundo era preciso investigar, antes de tudo, a própria faculdade do conhecimento, os meios de que o homem dispõe para o conhecimento; fazer a "crítica" da razão humana. Já neste ponto de partida da chamada filosofia "crítica" de Kant, há uma inadmissível separação metafísica entre o processo do conhecimento e a coisa que está sendo pesquisada.
A crítica de Kant à metafísica e à lógica formal supunha, pois, não a renúncia de qualquer das duas, mas sua adaptação a novas condições. Esta adaptação foi expressa no sistema do idealismo "transcendental" criado por Kant.
Como conteúdo principal de seu sistema, Kant levanta a indagação e a crítica das possibilidades e dos limites da razão humana. Em sua crítica à velha metafísica, Kant chega a uma conclusão dualista falsa. Por princípio separa os fenômenos das coisas, de sua essência. No mundo objetivo, a "coisa em si", como Kant a chama, embora exista, não pode ser conhecida. Nisto reside o agnosticismo de Kant. Segundo ele, nosso conhecimento limita-se ao mundo dos fenômenos.
Depois de Platão, dos escolásticos e de Leibnitz, Kant distingue os conhecimentos adquiridos pela experiência — os "a posteriori" — e os anteriores à experiência, os que não dependem da experiência: os conhecimentos "a priori". O conhecimento começa na experiência. A experiência, porém, refere-se a fenômenos singulares; por isso não pode, a juízo de Kant, fornecer-nos o conhecimento universal e necessário que constitui a base de toda a ciência. Além disso, o mundo dos fenômenos é, segundo Kant, caótico em si mesmo. Kant afirma que só nossa consciência estabelece as leis, a relação universal e necessária no caos dos fenômenos na base de leis universais e necessárias apriorísticas, inerentes, a seu ver, à nossa consciência e independentes da experiência: as categorias. Por isso não é nosso conhecimento que deve adaptar-se aos objetos, mas o inverso, os objetos é que têm de acomodar-se ao nosso entendimento.
Kant compara a importância desta descoberta com a da revolução de Copérnico. Heine comenta ironicamente esta comparação:
"Copérnico obrigou o sol a permanecer imóvel e a terra a girar a volta do sol... Antes, a razão, como o sol, girava em tomo dos fenômenos e procurava esclarecê-los, mas Kant deteve a razão e fez que o mundo dos fenômenos girasse à sua volta e se iluminasse à proporção que se aproximava deste novo sol".
O apriorismo de Kant é a pedra angular de sua filosofia idealista. Para ele, a força do apriorismo, sua suposta faculdade de introduzir a universalidade e a necessidade no caos do mundo dos fenômenos, reside em sua plena separação da experiência concreta, da qual deve "despojar-se". Para demonstrar a possibilidade do apriorismo, Kant fundamenta a existência dos chamados juízos sintéticos apriorísticos. São julgamentos que ampliam e enriquecem nossos conhecimentos; eles nos são fornecidos, na opinião de Kant, não pela experiência, mas independentemente dela, como princípios apriorísticos.. Kant via na matemática "pura" um modelo deste apriorismo pretensamente livre de toda a experiência sensível. Contudo este conceito da matemática foi o maior erro de Kant, pois a matemática, como as demais ciências, nasceu da ação prática do homem.
"As noções de número e figura, explica Engels, foram tomadas precisamente do mundo real... Antes de chegar a ideia de deduzir a forma de um cilindro pela rotação de um retângulo em torno de um de seus lados, houve necessidade de investigar numerosos retângulos e cilindros reais"(75).
Outro tanto pode dizer-se das ciências naturais teóricas e de todos os domínios da ciência. Ironizando sobre as ciências naturais "puras", Marx assinalou que as ciências naturais
"conseguem seu objetivo, como os seus materiais, somente graças ao comércio e à indústria, graças à atividade material dos homens"(76).
Em sua "Crítica da Razão Pura", Kant expõe da forma mais completa sua teoria idealista do conhecimento. Afirma que a experiência fornece conteúdo ao conhecimento e compõe-se de percepções sensíveis que nascem da influência das "coisas em si" sobre nossos órgãos dos sentidos. Mas só o entendimento, na opinião de Kant, introduz a lei, a relação de causa, a unidade nos fenômenos da natureza. "O entendimento não extrai suas leis da natureza, mas ao contrário as prescreve", enuncia Kant. E aqui onde se manifesta, de forma mais clara, o idealismo subjetivo de seu sistema.
Segundo Kant, são inerentes à função conhecedora três classes de faculdades: a sensibilidade, o entendimento e a razão. Em consonância com essas três faculdades diversas, a "Crítica da Razão Pura" de Kant divide-se em três secções principais: a estética transcendental, a analítica transcendental e a dialética transcendental.
A estética transcendental trata da teoria do espaço e do tempo. O espaço e o tempo são, do ponto de vista do materialismo, formas de existência da matéria. Contudo, para Kant, elas só existem na consciência do observador e são formas apriorísticas da sensibilidade, de toda a intuição visível. Nossa consciência introduz a ordem no caos das sensações, unindo-as num todo íntegro com a ajuda, antes de tudo, das formas apriorísticas de espaço e tempo.
A analítica transcendental trata da teoria das categorias apriorísticas do entendimento. Segundo Kant, o entendimento, por si mesmo, sem relacionar-se aos dados sensíveis, é vão; as percepções sensíveis, independentes do entendimento são "cegas". A ação do entendimento manifesta-se unificando e pondo ordem no conteúdo caótico que se recebe da experiência, das percepções sensíveis. A juízo de Kant, só o entendimento ordena os fenômenos da natureza, dá-lhes forma e introduz neles a unidade e as leis que os regem.
São inerentes ao entendimento, segundo Kant, doze categorias apriorísticas. Baseado nelas estabelecem-se na natureza as leis que o regem. Kant dá a seguinte tabela de categorias:
Kant afirma que essas categorias são apenas condições de nossa consciência. Um fenômeno aparece como causa e outro como efeito, não porque seja assim no mundo objetivo, mas porque nossa consciência, graças à categoria apriorística da causalidade, estabelece essa relação entre aqueles dois fenômenos.
Assim, pois,
"ao reconhecer o caráter apriorístico do espaço, do tempo, da causalidade, etc., Kant encaminha sua filosofia para o idealismo"(77).
Avançando no caminho do idealismo, Kant afirma que os diversos fenômenos percebidos por nós através de nossas sensações são extremamente alteráveis e ocorrem em diversos tempos diferentes; as leis, pois, do entendimento, que segundo Kant são simultaneamente as leis da natureza, devem distinguir-se primeiro pela constância, pela estabilidade e segundo, por manifestar-se completamente idênticas em todos os homens do passado, presente e futuro. Para isso, Kant introduz artificialmente em seu sistema o conceito da consciência idêntica, única, sempre igual a si mesma, individual, chamando-a "unidade transcendental da percepção". Segundo Kant, esta última confirma a identidade do "Eu", da consciência individual, e serve ao mesmo tempo como uma suposta garantia da universalidade do conhecimento.
Kant estabelece, metafisicamente, uma diferença entre o entendimento e a "razão pura". Se o entendimento refere-se diretamente às representações visíveis, a razão unifica as formas do entendimento em princípios gerais. A razão, aspirando à unidade na experiência de todo o cognoscível, procura ultrapassar as fronteiras dos fenômenos que são accessíveis apenas ao conhecimento humano, e sair para o mundo das "coisas em si". A tentativa constante da razão para julgar as coisas em si que são para ela incognoscíveis, a conduz à contradição, à antinomia, à ilusão. Kant chama dialética a essas ilusões, e concebe quatro antinomias da "razão pura":
Essas contradições são para Kant insolúveis. A seu ver cada uma das duas afirmações contraditórias pode, da mesma forma que a sua contrária, ser demonstrada logicamente. Kant acha, por conseguinte, as antinomias subjetivas e ilusórias, insolúveis. Limita metafisicamente o número das antinomias a quatro. Estes raciocínios de Kant não são dialéticos, mas lógico-formais. O maior mérito de Kant, porém, reside em haver levantado e destacado o problema das contradições. Kant, como acentua Lenin, tirou a "arbitrariedade aparente" da dialética. Kant chamou a atenção para o fato de que a contrariedade dialética é inevitavelmente inerente ao pensamento racional. Este aspecto foi posteriormente desenvolvido por Fichte e sobretudo por Hegel.
Segundo Kant, também deus, como causa do mundo, o livre arbítrio e a imortalidade da alma, que, segundo ele, não podem ser objeto de estudo da razão teórica da ciência, pertencem às "coisas em si" incognoscíveis .
Kant com isso assestou um golpe na velha metafísica.
Simultaneamente, porém, não deixava de reconhecer o enorme valor destas ideias no terreno da filosofia moral ou, como então se dizia, da filosofia prática. Se não se pode entender teoricamente deus, a liberdade da vontade e a imortalidade da alma, é necessário crer em sua existência prática. Kant reconhece ter limitado o terreno do conhecimento para dar lugar à fé.
Kant passa da "Crítica da Razão Pura" à "Crítica da Razão Prática". Este é, segundo Kant, o domínio da moral. Aqui se manifesta Kant dualista. O homem como parte da natureza está sujeito à lei da causalidade; o homem como ser moral está livre de inclinações egoístas e subordina-se apenas ao dever moral. Kant estabelece um princípio básico ético-formal: o chamado "imperativo categórico". Esta norma abstrata de conduta do homem abstrato diz:
"Age de maneira tal que a norma suprema de tua vontade possa ao mesmo tempo e sempre considerar-se lei geral".
O imperativo categórico é um princípio formal, sem conteúdo. Na realidade, numa sociedade dividida em classes, as diversas formas da moralidade são condicionadas pelas relações de classe. Kant afasta-se portanto da diferença entre a moral das diversas classes. Enuncia a consciência moral geral que se supõe inerente a todos os tempos, a todas as nações, a todas as classes. Na realidade, Kant, com seu imperativo categórico, formula a moral da burguesia. A liberdade moral e a "boa vontade" de Kant eram expressões ideológicas das aspirações da burguesia nas condições específicas da Alemanha do século XVIII. Assim, juntamente com a reivindicação da liberdade do indivíduo e de sua atividade dirigida contra a ordem feudal, Kant declara que a propriedade privada é sagrada.
A "Crítica da Razão Pura" e a "Crítica da Razão Prática", nas quais são examinadas as relações cognoscíveis e morais do mundo, completam-se com a "Crítica da Faculdade do Juízo", na qual são examinadas as relações estéticas do homem comum com o mundo, com o belo: o problema da arte. Esta teoria de Kant também está construída sobre os fundamentos do apriorismo e do formalismo.
O mérito histórico de Kant consiste em ter enunciado a ideia da gênese e da evolução do sistema solar e da terra por leis inerentes à própria matéria, e em ter feito uma crítica da metafísica anterior a ele, aproximando-se muito da dialética, e reconhecendo a inevitabilidade das contradições no pensamento humano.
Kant lançou os alicerces da dialética idealista, desenvolvida pelos representantes posteriores da filosofia clássica alemã. Em geral porém, Kant não superou a metafísica e a lógica formal e, em sua teoria do conhecimento, criou um sistema metafísico. O conhecimento, segundo Kant, não é um processo; não tem os menores elementos de evolução. A sensação e o pensamento, a substância e o fenômeno, a forma e o conteúdo do conhecimento, estão separados uns dos outros.
"Em Kant o conhecimento ergue um muro (uma separação) entre o homem e a natureza; na realidade, o conhecimento os une"(78).
O sistema dualístico de Kant está cheio de profundas contradições e conduz ao idealismo subjetivo. Estas contradições e inconsequências exprimem-se de maneira acentuadíssima em sua teoria das "coisas em si". Com a teoria das "coisas em si" está ligado também o agnosticismo de Kant, isto é, a teoria da impossibilidade de conhecer as "coisas em si". Engels, Lenin e Stalin, fizeram uma crítica completa do agnosticismo das "coisas em si". Engels dá-nos uma explicação do agnosticismo de Kant impregnada de um profundo historicismo:
"Na época de Kant, diz Engels, nosso conhecimento das coisas materiais era ainda bastante incoerente, de modo que, para cada uma delas ainda podia admitir-se a existência de uma coisa em si particular. Todavia, desde então, estas coisas incompreensíveis já são, umas depois das outras e graças ao progresso gigantesco da ciência, entendidas, analisadas e, o que é mais ainda, reproduzidas. É claro que o que podemos fazer não pode ser acusado de incognoscível"(79).
Por isso a refutação mais decisiva do Kantismo é a da própria prática: a indústria.
Stalin critica o agnosticismo da seguinte forma, opondo-o à teoria materialista do conhecimento:
"Em oposição ao idealismo, que discute a possibilidade de conhecer o mundo e as leis pelas quais se rege, que não crê na veracidade de nossos conhecimentos, que não reconhece a verdade objetiva e acha que o mundo está cheio de "coisas em si", que jamais poderão ser conhecidas pela ciência, o materialismo filosófico marxista parte do princípio de que o mundo e as leis que o regem são perfeitamente cognoscíveis, de que nossos conhecimentos sobre as leis da natureza, comprovados pela experiência, pela prática, são conhecimentos verídicos, que têm o valor de verdades objetivas, de que no mundo não há coisas incognoscíveis, mas simplesmente coisas ainda desconhecidas, que a ciência e a experiência, contudo, encarregar-se-ão de revelar e de dar a conhecer"(80).
A teoria de Kant das "coisas em si", foi objeto de uma dura crítica tanto da esquerda como da direita. Pela esquerda criticaram-na os materialistas L. Feuerbach e, especialmente, os fundadores do marxismo-leninismo. Estes criticaram seu dualismo,e seu apriorismo e o agnosticismo das "coisas em si". Pela direita, criticaram-na os idealistas, Fichte, Hegel, os neo-kantianos, os machistas. Esses criticaram-na pela inconsequência do seu idealismo e por admitir a existência das "coisas em si" materiais.
A filosofia de Joaquim Amadeu Fichte (1761-1814) representa uma fase posterior no desenvolvimento do idealismo clássico alemão.
Fichte não era apenas um filósofo e um pedagogo; era também um político ativo e apaixonado, que militava nas fileiras da democracia burguesa, e conheceu a estreiteza e a perseguição feudais, especialmente durante o primeiro período de sua atividade, quando era admirador fervoroso dos jacobinos. Acusado de ateísmo, teve de abandonar sua cátedra na Universidade de Iena (1794-1799). Mais tarde atuou como ideólogo do movimento de libertação germânica e como um dos organizadores da guerra nacional emancipadora contra a dominação napoleônica. Em seus "Discursos à Nação Alemã", sobre a devastação da Alemanha em 1807-1808, Fichte convocou o povo germânico à unificação política e ao renascimento moral.
Fichte desenvolveu os elementos da dialética expostos na filosofia de Kant, porém, ao mesmo tempo, refutou seus elementos materialistas, adotando uma posição de franco idealismo subjetivo.
Fichte desenvolve a filosofia de Kant para o idealismo subjetivo mais consequente. Condena a teoria das "coisas em si". O ponto de partida de seu sistema, que chama "Doutrina Científica", é a consciência, ou "eu". No fundo é a consciência habitual do homem; mas em Fichte ela aparece como autossuficiente, separada do homem e transformada num ente absoluto. Segundo Fichte, todo o mundo exterior — o "não eu" — é o resultado da atividade criadora do "eu". Fichte destaca a atividade, o caráter ativo da consciência. Contudo este aspecto ativo é extremamente abstrato. O "eu" produz o "não eu" como seu contraste, para achar um ponto de aplicação para sua atividade. Sobre a base da luta desses contrastes efetua-se o desenvolvimento da autoconsciência do homem. No processo da evolução histórica realiza-se o objetivo supremo do movimento de avanço: a organização da vida humana de acordo com as exigências da razão.
A teoria do desenvolvimento dialético apareceu no sistema filosófico de Fichte como a teoria idealista da autoconsciência do indivíduo.
Lenin chama Fichte o "representante clássico do idealismo subjetivo"(81). Pondo a nu a astúcia das pequenas escolas reacionárias modernas, empírio-criticistas, imanentistas, etc., Lenin demonstrou que no problema fundamental da filosofia, eles sustentam o ponto de vista idealista de Fichte. Contudo, àqueles epígonos faltavam completamente os elementos racionais da dialética contidos na teoria de Fichte.
A filosofia idealista subjetiva de Fichte foi a expressão evidente dos interesses da burguesia alemã que aspirava ao poder, que exigia a abolição das normas feudais e dos privilégios de casta, e que lutava pela unificação nacional da Alemanha.
O desenvolvimento seguinte da filosofia clássica alemã em direção a Hegel ficou ligado à filosofia de Frederico Schelling (1775-1854). Schelling estudou com Hegel na universidade de Tübingen. Na juventude, ambos se sentiram atraídos pelas ideias libertadoras da revolução francesa. Schelling começou sua atividade filosófica sob a influência direta de Fichte. Contudo a filosofia de Schelling reflete já a transformação havida no estado de ânimo da burguesia alemã, assustada pela ditadura e pelo terror jacobinos. Do idealismo subjetivo ativo, voluntário, de Fichte, Schelling passa para o idealismo objetivo intuitivo. Schelling transfere o centro dos interesses filosóficos da sociedade para a natureza.
Em sua filosofia naturalista, o jovem Schelling faz uma síntese idealista do desenvolvimento das ciências naturais dos fins do século XVII (Lavoisier, Haller, Galvani e outros). Schelling mistifica a natureza, porém concebe todos os fenômenos mundiais como um processo dialético único. Aplica à natureza os princípios da evolução dialética cultivados por Fichte. A natureza é, segundo Schelling, produto da consciência, porém não do "eu" subjetivo, da razão humana, mas do espírito mundial absoluto. Manifesta-se como um espírito em composição, isto é, em desenvolvimento. A natureza representa uma fase do desenvolvimento do espírito "absoluto", é a história do espírito em sua evolução inconsciente. Como resultado desse desenvolvimento, o espírito absoluto adquire a autoconsciência.
A filosofia naturalista de Schelling exerceu uma influência enorme nas ciências naturais (Ocken, R. Mayer, Faraday, Fuco; na Rússia, Vejlansky e outros). Sobre a natureza, Schelling fez uma série de conjecturas geniais. Predisse (evidentemente apenas sob a forma de conjectura) a ideia da unidade e da evolução da natureza, a teoria eletromagnética da matéria, a teoria da evolução da natureza inorgânica e orgânica. Criticando duramente o idealismo e o caráter inventivo da construção da filosofia naturalista, Engels acentuou que essa filosofia emitira, contudo, muitos pensamentos geniais e previra muitas e grandes descobertas.
O próprio Schelling passou posteriormente ao misticismo descarado e ao apoio direto da reação, atacando furiosamente a dialética revolucionária de Hegel. Contudo, durante o primeiro período do seu desenvolvimento desempenhou certo papel na história da filosofia clássica alemã. Schelling serviu de ponte entre o idealismo subjetivo de Fichte e o idealismo objetivo de Hegel.
O sistema filosófico de Hegel constitui a culminação da filosofia clássica alemã e, ao mesmo tempo, o grau supremo atingido pelo pensamento filosófico burguês da época anterior a Marx.
George Frederico Guilherme nasceu em 27 de agosto de 1770 em Stuttgart, capital de Württemberg, pátria também de Schiller e Schelling. O pai de Hegel era funcionário público. Os primeiros estímulos espirituais de Hegel foram provocados pelas ideias dos "ilustrados". Exerceu igualmente grande influência no seu desenvolvimento ulterior sua amizade com o jovem Schelling. Durante quase dez anos, depois de terminar os estudos na Universidade de Tübingen, Hegel trabalhou como professor particular. Em 1801 mudou-se para Iena, onde encontrou Goethe e Schiller. Ali terminou seu primeiro grande trabalho: "Fenomenologia do Espírito". Mais tarde ocupou o posto de professor e diretor do Liceu de Nuremberg e posteriormente o de professor na Universidade de Heidelberg. Em Nuremberg terminou a "Ciência da Lógica" em três tomos, que é a mais importante de suas obras (1812-1816). Em Heidelberg publicou em 1817 a primeira edição de sua "Enciclopédia das Ciências Filosóficas". Desde 1818 até o fim da vida ocupou uma cátedra na universidade de Berlim, cuja faculdade de filosofia era então considerada uma das mais proeminentes da Alemanha. Ali deu suas famosas lições sobre filosofia do direito, filosofia da história, estética e história da filosofia. Morreu de cólera em 1831.
A filosofia de Hegel representava a refração das ideias da revolução francesa nas condições alemãs dos princípios do século XIX. O seu idealismo foi determinado pelo atraso da Alemanha, pela debilidade e pusilanimidade da burguesia alemã, cujos ideólogos realizavam grandes revoluções nas alturas nebulosas das abstrações filosóficas, já que eram impotentes para realizá-las na terra. Em compensação, na filosofia fizeram uma crítica decidida das relações feudais declarando-as irracionais; argumentaram a necessidade e inelutabilidade da sua substituição por um regime social "novo", racional. As condições da filosofia hegeliana, a existência nela de partes revolucionárias e reacionárias provém do duplo caráter da burguesia alemã que, dum lado, desejava liquidar as relações feudais na Alemanha e, de outro, temia a revolução e o proletariado nascente dos princípios do século XIX, razão que a fez encaminhar-se para o estabelecimento de um compromisso com o absolutismo.
Na base das conquistas de seus predecessores filosóficos, Hegel criou uma completa teoria da dialética idealista. O maior mérito de sua filosofia reside em que
"pela primeira vez apresentou todo o mundo natural, histórico e espiritual como um processo, investigando-o como um mundo sujeito a constante movimento, troca, transformações e evolução e tentando descobrir a conexão íntima entre esse movimento e a evolução"(82).
Na lógica, na filosofia da natureza, na do espírito, na história do direito e da religião, na história da filosofia, na estética, etc., em cada um desses pontos Hegel trabalhava para descobrir o fio de sua evolução.
"E como não era somente, escreve Engels, um gênio criador, mas também possuía uma erudição enciclopédica, suas investigações fazem época em todos eles"(83).
Entretanto, como idealista que era, Hegel deduz a evolução da natureza do homem e das relações sociais da evolução do espírito; por isso a filosofia de Hegel, não obstante a profundidade e a riqueza de seu conteúdo, apresenta em sentido inverso o verdadeiro curso da evolução da natureza e da história humana.
Do ponto de vista do idealismo objetivo, Hegel submeteu à crítica o dualismo de Kant e seu subjetivismo. A separação kantiana entre o ser e o pensar, Hegel opõe sua identidade. O ponto de partida, a substância primária do mundo é, para Hegel, o pensamento, a consciência. Mas não a consciência do homem individual, como afirmam Berkeley, Kant ou Fichte mas a razão mundial, o espírito mundial, a ideia mundial ou a ideia "absoluta", que encerra em si todo o mundo objetivo, o homem e sua consciência pessoal.
A razão mundial, segundo Hegel, encama-se necessariamente numa realidade. A razão aspira encontrar-se e conhecer-se a si própria em cada coisa, em cada movimento. Aqui se revela a enorme crença de Hegel, ideólogo da burguesia progressista daquela época, na força e potência da razão humana(84).
Hegel divinizou, fez absoluta a ideia lógica que, na realidade, reflete apenas as leis objetivas imperantes na natureza e na história.
"...Mas a ideia sem o homem ou anterior ao homem, diz Lenin, a ideia como abstração, a ideia absoluta, é uma invenção teológica do idealista Hegel"(85).
Esta é a fonte principal da deformação feita por Hegel das relações reais. A ideia, que é o reflexo da realidade material na consciência do homem, é separada por Hegel do homem o qual a faz aparecer como criadora da natureza e dos homens.
Marx e Engels assinalam essa interpretação deformada da realidade objetiva com o seguinte exemplo: "Quando, lidando com maçãs, peras, morangos e amêndoas reais, formou a noção geral de "fruta"; quando, indo mais longe, penso que minha noção abstrata "fruta", tirada das frutas reais, é uma entidade que existe fora de mim, e ainda mais, que é a verdadeira entidade da maçã, da pera, etc., com isso, expressando-me em linguagem especulativa, declaro que a "fruta" é a "substância" da pera, da maçã, da amêndoa, etc... declaro então que a maçã, a pera, a amêndoa, etc., são simples formas de existência, modos (modi) da "fruta"... O homem comum, continua dizendo ironicamente Marx e Engels, não acredita ter dito algo extraordinário ao afirmar que existem maçãs e peras. Mas o filósofo, ao expressar essas: coisas existentes em termos especulativos, crê ter "criado essas frutas"(86).
Segundo Hegel, a natureza é apenas o reflexo, ou "outro ser" da ideia mundial. Para ele a consciência individual do homem deriva-se da razão mundial. A ideia absoluta hegeliana, a razão mundial, na realidade outra coisa não é senão um deus, porém um deus refinado, "filosófico".
Todo o universo acha-se em movimento, em evolução. Contudo a evolução do universo é apenas a evolução da ideia absoluta que se efetua de acordo com as leis da razão, da lógica. Tudo que sucede no mundo nada mais é do que uma manifestação da razão mundial em evolução. A evolução da razão mundial consiste em seu pensamento. E visto que a única realidade no mundo é a razão, essa só pode pensar em si mesmo, conhecer-se a si mesmo. Por isso a evolução do mundo é, segundo Hegel, o processo do autoconhecimento da ideia absoluta.
À medida que se vai conhecendo a si própria, a ideia se enriquece, desenvolve-se e torna-se mais concreta. A ideia absoluta conhece-se a si própria; de início, em forma de categorias primárias, as mais simples e superficiais da lógica (o ser, o não ser, o porvir, a qualidade, a quantidade, etc.); em seguida, conhece-se em forma de categorias lógicas mais complexas e profundas, que revelam sua substância interna (substância e fenômeno, forma e conteúdo, possibilidade e realidade, casualidade e necessidade, causa, efeito, ação recíproca). Por último, a ideia se reconhece como conceito lógico, quer dizer, como um pensamento em toda a sua plenitude e concretização.
Vejamos um pouco mais minuciosamente o sistema filosófico de Hegel. Esse sistema se compõe de três partes: a lógica, a teoria das leis universais do movimento e da evolução, os princípios racionais que fundamentam tudo que existe; a filosofia da natureza, que expõe de forma idealista o quadro da evolução do mundo; a filosofia do espírito, na qual, sob a forma de história do espírito, Hegel expõe a história do homem e de sua autoconsciência.
Engels dá-nos a seguinte característica geral deste sistema:
"O conceito absoluto não só existe por toda a eternidade — sem que saibamos aonde — como é, além disso, a verdadeira alma animadora de todo o mundo real. O conceito absoluto desenvolve-se até chegar a ser o que é, através de todas as etapas preliminares que são estudadas em detalhe na "lógica" e que se contém todas no mesmo; em seguida "afasta-se", ao converter-se na natureza, onde, sem a consciência de si própria, disfarçada em necessidade natural, sofre uma evolução, até que, por fim, recobra, no homem, a consciência de si mesmo; na história, essa autoconsciência reaparece brotando de seu estado tosco e primitivo, até que, por fim, o conceito absoluto volva a recobrar sua completa personalidade na filosofia hegeliana"(87).
A introdução ao sistema de Hegel é sua "Fenomenologia do Espírito" (1807). Nesta obra Hegel examina a série sucessiva das diversas fases da consciência humana, partindo das formas inferiores (percepção sensível direta) até as formas superiores (o conhecimento absoluto ou puro), em que todos os objetos exteriores revelam-se, segundo Hegel, plenamente superados e o espírito considera somente sua própria substância.
"Toda a fenomenologia, escreve Marx, tende a demonstrar que a autoconsciência é a realidade única e universal"(88).
Apesar de toda a falsidade e esterilidade dessa imaginação sobre o "percurso da consciência", Hegel insere em sua "Fenomenologia" muito material histórico interessante da verdadeira história da sociedade humana e do pensar humano. Engels assinala, a respeito da "Fenomenologia do Espírito" de Hegel:
"Poderíamos qualificar de paralelo da embriologia e da paleontologia do espírito: o desenvolvimento da consciência individual ao longo de suas diversas etapas, concebido como reprodução abreviada da fase que percorre historicamente a consciência do homem"(89).
A "Lógica", a primeira e mais importante parte do sistema hegeliano, é o resumo e a conclusão de sua "Fenomenologia do Espírito". A Lógica é o campo do "pensamento puro" no qual se confundem o sujeito e o objeto do conhecimento, quer dizer, onde o pensamento não tem nenhum conteúdo completo empírico fora de si mesmo, fora de suas formas. Segundo Hegel, a lógica antecede a história e a cria; fornece o esqueleto universal o qual depois reveste-se dum conteúdo histórico concreto.
A "Lógica" de Hegel divide-se em três partes: a teoria do ser, a da substância e a dos conceitos. O ser e a substância são considerados fases percorridas pelo conceito antes de apresentar-se em toda a sua universalidade e plenitude.
Na "Lógica", a evolução da ideia absoluta efetua-se sob a forma de categorias lógicas abstratas. Seu ponto de partida é o pensamento puro, abstrato, sobre a existência em geral, sobre o ser. Este conceito do "ser puro", a princípio sem conteúdo, deseja obter um conteúdo, uma existência definida, concreta. Assim começa, segundo Hegel, o processo lógico do conhecimento, que é, simultaneamente, o processo do "vir a ser", do que se está pensando.
Na fase seguinte o ser "puro" aparece ante o pensamento como uma qualidade definida. Em sua teoria do ser, Hegel fundamenta de uma maneira idealista uma das leis fundamentais da dialética, a lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa, os processos de evolução por saltos.
Do ser, pelo qual entende alguma coisa superficial, exterior aos objetos e aos fenômenos, Hegel passa à lei mais profunda, interna: a substancia. A teoria da substancia é a parte mais importante, a "medula" de toda a "Lógica" hegeliana. O conteúdo fundamental dessa parte é a exposição e desenvolvimento da lei fundamental da dialética: a unidade, a luta e a interpenetração mútua das contradições. Hegel, em oposição à Lógica formal afirma que todas as coisas têm caráter contraditório em si mesmas. As contradições inerentes às coisas e aos processos, constituem a força motriz da evolução. Ao desenvolver-se, as contradições manifestam-se na unidade das categorias mais importantes: causa e efeito, forma e conteúdo, interno e externo, lei e fenômeno, possibilidade e realidade, casualidade e necessidade, causalidade e ação recíproca.
Contudo esta teoria das contradições é desenvolvida por Hegel de forma idealista, abstratamente. A base idealista da teoria hegeliana das contradições e sua limitação de classe não permitiam que Hegel tirasse dessa teoria todas as deduções revolucionariamente consequentes. Assim, por exemplo, na sua "Filosofia do Direito" chega à conclusão da conciliação das contradições no Estado absolutista prussiano que considera a fase suprema da evolução da sociedade.
Lenin apreciou consideravelmente o pensamento de Hegel ligado à teoria da evolução por meio de contradições, sobre o movimento internamente necessário, espontâneo, ou "auto-movimento", como fonte de toda a espécie de transformações e evolução. Hegel expõe exemplos convincentes da natureza e da história para confirmar as leis dialéticas. Para ele, porém, é apenas uma ilustração da evolução, que, no fundo, julga efetuar-se no terreno dos pensamentos, dos conceitos.
Essa necessidade com que se efetua a evolução no terreno do ser e da substância toma consciência no conceito. A necessidade transforma-se então em liberdade (posto que a liberdade é também uma necessidade da qual se tem consciência) e a Lógica" passa à terceira fase, a teoria dos conceitos. Assim Hegel formula uma crítica à Lógica formal e à metafísica. Analisa a dialética do universal, do particular e do singular. A Lógica formal, inclusive a de Kant, separava o singular do universal. Hegel assinala que o universal e o particular estão encerrados no singular e manifestam-se através dele. Hegel, pela primeira vez na História, não só enumera e compara formalmente as diversas formas de juízos e deduções, como estabelece seu agrupamento, que corresponde concretamente às leis da natureza conhecidas. Indica como as formas inferiores do pensamento evoluem para as superiores.
Engels, em sua "Dialética da Natureza", acentua que a classificação hegeliana dos juízos — o singular, o particular ou especial e o universal — fundamenta-se não só nas leis do pensamento, mas também nas da natureza. O que Hegel considera a evolução das formas lógicas do julgamento, escreve Engels, é na realidade a evolução de nossas informações teóricas sobre a natureza do movimento em geral, informações que se apoiam sob uma base empírica. "Já os homens pré-históricos sabiam praticamente que o atrito produz calor". Mas passaram-se muitos milênios para os homens, baseados na sua prática, elevaram-se desse juízo singular ao juízo particular: o atrito é uma das fontes de calor.
Passaram novos milênios até que em 1842, Mayer, Johul e Colting fizeram um estudo desse processo especial em sua relação com outros processos análogos descobertos naquela época, quer dizer, estudaram-no em suas relações com sua condição geral mais próxima e puderam formular o seguinte juízo: com a ajuda do atrito, todo o movimento mecânico é capaz de transformar-se em calor...
Desde então o assunto começou a progredir com maior rapidez. Três anos mais tarde, Mayer pôde elevar — sobretudo em seu aspecto fundamental — o juízo do reflexo à altura atual.
"Qualquer forma de movimento, em condições determinadas para cada caso, pode e tem de transformar-se direta ou indiretamente em qualquer outra forma de movimento: O juízo do conceito e, além disso o apodíctico, é em geral, a forma suprema do juízo"(90).
Esta síntese de toda a evolução histórica da prática e da ciência aparece em Hegel, como evolução das formas lógicas do julgamento, do singular, através do particular, para o universal.
Assim, Hegel adivinhou genialmente que "as formas e as leis lógicas não são simples envoltura, mas o reflexo do mundo objetivo"(91).
Contudo Hegel não reconhecia, e como idealista não poderia reconhecer a teoria materialista do reflexo, razão que leva seus raciocínios a terem inevitavelmente muita impureza mística. Apesar disso, Hegel oferece-nos uma interpretação profunda, dialética, da verdade, como processo da coincidência dos pensamentos, dos conceitos, com o objeto. Segundo a Lógica hegeliana, esta coincidência é atingida na ideia. Só a Ideia é a unidade absoluta do conceito e do objeto. Além disso, a própria Ideia é considerada um processo. Esse processo se efetua, segundo Hegel, pelo pleno reconhecimento da Ideia em si mesma.
O ponto de partida idealista da Lógica hegeliana introduz na "Lógica" e em sua exposição muito misticismo, pedantismo vulgar e artifício na passagem de uma categoria à outra. Todavia Lenin assinala que
"nesta obra mais idealista de Hegel o que menos há é idealismo, o que mais há é materialismo".
Lenin acentua a genialidade da ideia fundamental:
"o nexo universal multilateral vivo de tudo com tudo".
Lenin, descobrindo a medula materialista da "Lógica" de Hegel, insiste que este nexo universal do mundo objetivo é refletido
"nos conceitos do homem, os quais também devem ser enquadrados, ajustados, flexíveis, móveis, relativos, concatenados, únicos nos contrastes, para abarcar o mundo".(92)
Marx e Engels tiveram em grande apreço a "Lógica" de Hegel. Numa de suas cartas escrita quando preparava sua obra imortal, "O Capital", Marx diz a Engels:
"Para o método da elaboração do material prestou-me grande serviço... ter folheado de novo a "Lógica" de Hegel... se alguma vez tomar a dispor de tempo para esses trabalhos, exporia com gosto em duas ou três folhas impressas, de forma accessível ao bom senso humano, o que há de racional no método descoberto por Hegel, embora o tenha dotado de uma forma mística"(93).
Lenin, em seus "Cadernos Filosóficos" (no "Extrato" do livro de Hegel "A Ciência da Lógica") faz notar que
"não é possível compreender plenamente o "Capital" de Marx, e particularmente seu capítulo I, sem estudar antes a fundo e compreender toda a "Lógica" de Hegel(94).
Em sua "Lógica", Hegel descobriu as leis fundamentais da dialética, apresentando-as como a teoria mais profunda, menos unilateral da evolução. Entretanto as leis da dialética em Hegel
"não são deduzidas da natureza e da história, mas impostas a estas últimas como leis do raciocínio. Daí brota toda a construção atormentada e por vezes monstruosa: o mundo, queira ou não, tem de conformar-se ao sistema lógico que, por sua vez, é apenas o produto de uma fase determinada da evolução do pensamento humano"(95).
Da "Lógica", Hegel passa à filosofia da natureza. Hegel converte a ideia em criadora da natureza. A Ideia absoluta, ao efetuar sua evolução, exterioriza-se e engendra seu "outro ser", a natureza. A evolução da natureza não é, para Hegel, um desenvolvimento autônomo. Suas fases (mecanicismo, quimicismo, organicismo) não se engendram umas às outras, não se transformam uma na outra durante o processo da evolução histórica da natureza, mas colocam-se de forma petrificada uma ao lado da outra e sua sucessão apenas reflete, repete em forma material a sucessão da evolução e o nexo das categorias lógicas. As formas e fase de evolução da natureza são só, para Hegel, manifestações externas dessas categorias lógicas.
Graças, porém, à profundidade e à força do seu pensamento dialético e à utilização de um maior material naturalista científico, Hegel faz em sua "Filosofia da Natureza" uma série de conjecturas preciosas sobre a conexão entre as diferentes fases da natureza inorgânica e orgânica e sobre as leis pelas quais se regem todos os fenômenos no mundo.
A fase de evolução da ideia absoluta, quando esta chega ao grau de conceito, corresponde na natureza à substância pensante, o homem. Hegel passa assim da filosofia da natureza à do espírito. Em sua "Filosofia do Espírito" e em outras obras, "Filosofia da História", "Filosofia do Direito", Hegel concebe de forma mistificada a história do homem individual e de toda? a humanidade.
No entanto, a história do homem individual é para Hegel a evolução de sua autoconsciência, e a história da humanidade, a evolução da ideia absoluta que, para esse fim, utiliza a sociedade humana. Os homens são marionetes nas mãos do espírito mundial. A humanidade é apenas uma massa portadora, inconsciente ou conscientemente, do autodesenvolvimento do espírito. Cada sociedade floresce enquanto a Ideia mundial desenvolve nela um dos seus aspectos. Por exemplo, no povo grego, a ideia desenvolveu o aspecto da arte; em Roma, o do direito, etc. Em última instância, a Ideia mundial encarna-se na sociedade sob a forma de Estado. O Estado é a manifestação suprema do espírito, "a coroação de todo o edifício", a encarnação mais perfeita da razão na vida da humanidade. Hegel apresenta a monarquia prussiana como o modelo do Estado.
Ao mesmo tempo Hegel achava que, em sua filosofia, a ideia absoluta reconhece-se a si mesma plenamente. O processo do conhecimento é determinado e o círculo se fecha. Para Hegel, a evolução fica por isso suspensa.
Lenin acentua que, embora em locais isolados da filosofia da história de Hegel "haja muita beleza na apresentação do problema", é "aqui que Hegel mais envelheceu e ficou antiquado".
"Isto é compreensível, escrevia Lenin, posto que aqui precisamente, concretamente neste terreno, nesta ciência, Marx e Engels deram o passo mais grandioso para diante"(96).
Contudo, também em sua "Filosofia da História", Hegel expôs uma série de conjecturas preciosas. A história da humanidade é representada, não como uma cadeia de acontecimentos causais, mas como um processo sujeito à leis, no qual se revela a razão mundial. As ações dos homens não são casuais: ao perseguirem seus objetivos, os homens realizam ao mesmo tempo, sem ter consciência disso, uma necessidade histórica. Por isso, os grandes homens desempenham um papel na história na medida em que encarnam o espírito de seu tempo. O sentido de toda a história mundial é, segundo Hegel, o progresso na consciência da liberdade, progresso que devemos reconhecer estar sujeito a leis.
Hegel recalca em diversos pontos o grande papel dos instrumentos de produção, das relações econômicas e do meio geográfico na evolução da humanidade. Lenin faz notar que aí há germes do materialismo histórico em Hegel.
Em sua análise do regime social ultrapassa todos os seus predecessores, aproximando-se da interpretação do papel da luta de classes e das contradições do capitalismo. A sociedade cidadã (ou seja a burguesa) é para ele
"o campo de batalha do interesse individual, particular: a luta de todos contra todos".
"... com a riqueza desmesurada, diz Hegel, a sociedade cidadã é insuficientemente rica... para combater a pobreza desmesurada..."
Todavia Hegel, ideólogo da burguesia, afirma que o regime da propriedade privada é a forma suprema da organização social.
Valor maior tinham os pontos de vista de Hegel sobre a história da filosofia. A seu ver a lógica confunde-se com a história do pensamento, com a história da filosofia. Hegel toma o autodesenvolvimento das categorias lógicas em relação com toda a história da filosofia. Por exemplo: à categoria do "ser puro" corresponde, segundo Hegel, o conceito fundamental da filosofia de Parmênides e dos demais eleáticos que ensinavam sobre o ser imóvel abstrato); à categoria do "vir a ser" corresponde a filosofia de Heráclito; à categoria da quantidade corresponde a filosofia de Pitágoras; à substância à de Spinoza, etc.
Desta forma resulta que a essência da evolução histórica resume-se na história da filosofia. É uma opinião nitidamente idealista. Entretanto, Hegel, pela primeira vez, eleva a história da filosofia ao nível de uma ciência. Cada sistema filosófico é a filosofia do seu tempo, da sua época. Cumprindo sua missão histórica, prepara as condições para a fase seguinte do pensamento filosófico. O sistema precedente cede então seu lugar ao seguinte, entregando-lhe todo o seu conteúdo em forma "fotográfica". A unilateralidade de um sistema filosófico elimina-se mediante o aparecimento necessário doutros sistemas que, de uma ou outra forma, superam a unilateralidade do primeiro sistema, ainda que estes também exijam, por sua vez, um desenvolvimento ulterior do pensamento filosófico. A verdade é um todo íntegro, compreendido como um processo infinito de enriquecimento e ampliação dos conhecimentos humanos.
Contudo, Hegel, contra seu método dialético que requer um processo infinito da evolução do conhecimento, considera, conforme já fizemos notar, a sua própria filosofia como expressão da verdade definitiva, absoluta.
A teoria de Hegel sobre a estética, o belo, a arte tem maior interesse. A arte é uma das fases do autoconhecimento do espírito absoluto, quando este se reconhece a si mesmo mediante a intuição sensível. A fonte do belo é, segundo Hegel, a ideia absoluta. A beleza de cada coisa singular representa a combinação da ideia geral do belo com as particularidades concretas, inerentes à coisa determinada, numa única imagem sensível. A juízo de Hegel, a missão da estética consiste em explicar a relação entre a ideia do belo e sua encarnação concreta. Hegel enumera três tipos de relações, três formas de arte: a simbólica, a clássica e a romântica. Para Hegel, o modelo típico da arte simbólica é a arquitetura que, a seu ver, foi a forma fundamental da arte nas antigas culturas orientais; o modelo da forma clássica é a escultura que predominava na Grécia e, por fim, o modelo romântico é a pintura, a música e a poesia, que imperam na cultura ocidental.
Marx e Engels revelaram as contradições básicas da filosofia de Hegel, a contradição entre seu sistema filosófico conservador e seu método dialético revolucionário.
O sistema idealista de Hegel é um envólucro fino, refinado, da religião.
"A existência da "ideia absoluta" anterior ao mundo, que Hegel preconiza, a preexistência das categorias lógicas" antes de existir o mundo, não é mais do que um resíduo imaginativo da fé num criador"(97).
O sistema filosófico hegeliano conduz à justificação e à glorificação da monarquia reacionária prussiana. O valor histórico de Hegel não corresponde ao seu sistema, mas a seu método dialético.
O sentido revolucionário da dialética hegeliana teve amplo eco nos círculos democráticos radicais das décadas de 30 e 40, muito além das fronteiras da Alemanha e especialmente na Rússia. O entusiasmo da intelectualidade russa daquela época por Hegel, foi acentuado de forma humorística pelo poeta russo Yemchuzhnikov:
"De coche, de carro,
Parto à noite de Briansk.
Tudo dele, tudo de Hegel!
Meu nobre pensar".
Ao descobrirem a falsidade, a mística, o obscurantismo clerical do sistema hegeliano, Marx e Engels só aproveitaram a medula racional de sua dialética. Marx e Engels consideravam a dialética de Hegel a teoria mais rica de conteúdo multilateral e profundo da evolução, a maior conquista da filosofia clássica alemã. A grande ideia de Hegel, herdada pelo materialismo dialético, consiste, segundo palavras de Engels, em que
"o mundo não pode ser concebido como um conjunto de objetos terminados, mas como um conjunto de processos, em que as coisas que parecem estáveis bem como seus reflexos mentais em nossas cabeças, os conceitos, passam por uma série ininterrupta de transformações, por um processo de gênese e caducidade"(98).
Hegel concebe a evolução como um auto-movimento, como auto-desenvolvimento que se efetua sobre a base da luta das contradições internas. Distinguindo-se dos mecanicistas e metafísicos, que interpretam a evolução como um simples aumento ou diminuição quantitativos, Hegel concebe a evolução como uma transformação quantitativa, um movimento de formas inferiores para formas superiores, uma troca do velho em novo, a conversão de cada fenômeno em seu contrário. As contradições, assinala Hegel, são a causa de todo o movimento; apenas na medida em que o fenômeno é contraditório possui movimento e atividade.
Hegel destaca a conexão existente entre todos os processos mundiais. Segundo ele, cada ideia tem um nexo interno necessário com todas as demais; as ideias e as categorias transformam-se umas nas outras mutuamente. Assim, o possível converte-se durante o processo de desenvolvimento em real, a quantidade em qualidade, a causa em efeito, e vice-versa. Acentua também a unidade das categorias contrapostas, a forma e o conteúdo, a substância e o fenômeno, etc.
Hegel submeteu a uma crítica profunda a lógica formal que separa as leis do pensamento das do ser. Demonstrou a unidade existente entre as leis do pensamento, as da sociedade e as da natureza; previu genialmente, como destaca Lenin, que no movimento das ideias reflete-se o movimento do mundo objetivo. Mas também é certo que essa unidade do pensamento e do ser foi posta por Hegel "de cabeça para baixo". Segundo as palavras de Engels o erro de Hegel consiste em afirmar que as leis do pensamento não são deduzidas da natureza, mas impostas por ela.
Hegel deu também uma interpretação dialética do problema da verdade. Para ele, como notou Engels, a verdade não significa uma resposta absolutamente justa, dada de uma vez para sempre; consiste . apenas numa larga evolução histórica da ciência, que vai se elevando dos graus inferiores do conhecimento para os superiores. A teoria do conhecimento de Hegel interpreta seu objetivo historicamente, estudando e sintetizando a origem e a evolução do conhecimento, a passagem do não conhecer ao conhecer. A teoria do conhecimento de Hegel confunde-se com a história do conhecimento. Cada uma das fases históricas do conhecimento da evolução da ciência, fornece, segundo expressão de Hegel, "um quadro absoluto", embora limitado, incompleto. Cada fase seguinte é mais rica e mais concreta que a anterior. Conserva em si toda a riqueza do conteúdo precedente e refuta a fase antecedente, embora sem perder nenhum de seus elementos valiosos; "enriquece e condensa em si todas as aquisições". Desta maneira, Hegel sugere a teoria da verdade relativa e absoluta.
Graças à questão histórica levantada por Hegel, sua dialética encerra a teoria do conhecimento; ela se confunde (é claro que sobre uma base idealista) com a lógica dialética. Lenin acentuou esta coincidência da dialética, da lógica e da teoria do conhecimento na filosofia de Hegel.
Também aqui, entretanto, Hegel desfigura, de forma idealista, a verdadeira relação existente entre a lógica e a história. Do ponto de vista do materialismo dialético, a lógica é a síntese do caminho histórico concreto da evolução, emancipado das casualidades. Segundo Hegel, a história é apenas a reprodução da lógica, das categorias lógicas escalonadas de antemão e, além disso, uma reprodução imperfeita, que às vezes "desfigura-lhe" a harmonia e a consequência. Hegel considerou a lógica a ciência das ciências.
O método de Hegel exige o reconhecimento da evolução infinita; segundo a expressão do conhecido escritor russo Hertzen, este método é a "obra da revolução". Em compensação o sistema de Hegel restringe essa evolução, afirmando que sua própria filosofia é o autoconhecimento absoluto das ideias mundiais, e o Estado prussiano policial, sua encarnação suprema na sociedade. O método dialético de Hegel, escrevia Lenin, encerra "a ideia de que também a luta pela realidade, a luta contra a injustiça existente e o mal reinante, radica-se na lei universal da evolução perpétua. Se tudo está sujeito a um desenvolvimento, se umas instituições são substituídas por outras, por que há de prolongar-se eternamente o absolutismo do rei prussiano ou do tzar russo?"(99). Só tem direito à existência, só é "real", o que é racional. Mas o sistema de Hegel, que o autor considerou absolutamente perfeito, a ponto de não necessitar um desenvolvimento ulterior, admitiu o compromisso com o regime existente. Tudo o que existe, todo o "real", é declarado racional, isto é, com direito à existência. Por conseguinte, também os absolutismos prussiano e russo puderam ser reconhecidos como racionais. Este conceito de "racional" e "real" converteu-se na fonte de experiências vivas e de erros graves dolorosos por parte dos representantes mais proeminentes da democracia revolucionária russa da década de 40, como Belinski e seus correligionários. A contradição entre o método e o sistema de Hegel transpareceu neles como a contradição entre a possibilidade de justificar "a abominável realidade russa" de Nicolau I e a tarefa da luta contra essa realidade.
Na opinião de Hegel, no Estado, sobretudo no Estado policial prussiano, todas as contradições são conciliadas, embora o próprio Hegel — o dialeta — declarasse que a contradição e a luta dos contrastes é a única fonte da evolução. Segundo Hegel, o Estado não é o resultado da evolução histórica, mas "uma realidade da ideia moral", ou "fundamento primário de toda a sociedade", "o sinal da passagem de Deus no mundo", etc. Neste ponto Hegel liga-se mais a Deus que à História. Hegel, segundo expressão do conhecido pensador e revolucionário russo Tchernichevski, é
"um escravo do estado de coisas atual da atual ordem em vigor na sociedade"(100).
Em sua teoria do Estado encontramos as opiniões mais conservadoras de Hegel.
O sistema conservador de Hegel afogou, pois, seu método revolucionário. Essa dualidade da filosofia de Hegel era o reflexo do duplo caráter existente na burguesia alemã nos princípios do século XIX quando ela oscilava entre a revolução e a reação, entre o desejo de derrubar o regime feudal e o compromisso — com esse regime, na prática.
A contradição entre o método e o sistema de Hegel, porém, é uma contradição dentro do idealismo. A dialética de Hegel é uma dialética idealista e, por conseguinte, desfigurada. Marx mais de uma vez pôs a nu a deformação hegeliana da verdadeira dialética do desenvolvi mento, acentuando que o método da dialética materialista não só é diferente do de Hegel, como opõe-se diretamente a ele.
"Caracterizando seu método dialético, diz Stalin, Marx e Engels referem-se com frequência a Hegel como sendo o filósofo que formulou os traços fundamentais da dialética. Isto, porém, não quer dizer que a dialética de Marx e Engels seja idêntica à dialética hegeliana. Na realidade, Marx e Engels tomaram apenas da dialética de Hegel, sua "medula racional", rejeitando sua curteza idealista e desenvolvendo a dialética até lhe dar sua forma científica atual"(101).
Notas de rodapé:
(72) Engels. Ludwig Feuerbach, página 18, versão espanhola. Moscou 1941. (retornar ao texto)
(73) Engels. Anti-Dühring. Obras de Marx e Engels. Tomo XIV, página 343, edição russa. (retornar ao texto)
(74) Lenin. Materialismo e Empírio-Criticismo. Obras, tomo XIII, página 162, edição russa. (retornar ao texto)
(75) Engels. Anti-Dühring. Obras de Marx e Engels. Tomo XIV, página 30, edição russa. (retornar ao texto)
(76)Marx e Engels. A Ideologia Alemã. Obras, tomo IV, página 34, edição russa. (retornar ao texto)
(77) Lenin. Materialismo e Empírio-Criticismo. Obras, tomo XIII, página 162, edição russa. (retornar ao texto)
(78) Lenin. Cadernos Filosóficos, página 93, edição russa. (retornar ao texto)
(79) Engels. Introdução ao folheto "Do Socialismo Utópico ao Científico", edição russa. (retornar ao texto)
(80) Stalin. Sobre o Materialismo Dialético e Histórico. "Questões do Leninismo". Versão espanhola, Moscou 1941, página 644. (retornar ao texto)
(81) Lenin. Materialismo e Empírio-Criticismo. Obras, tomo XIII, página 162, edição russa. (retornar ao texto)
(82) Engels. Anti-Dühring. Obras de Marx e Engels. Tomo XV, páginas 23 e 24, edição russa. (retornar ao texto)
(83) Engels. Ludwig Feuerbach. Versão espanhola, Moscou 1941, página 10. (retornar ao texto)
(84) Eis o que diz Hegel sobre a revolução francesa: "A ideia, o conceito do direito, se conquistou de golpe o seu reconhecimento; os caducos pontos de apoio da arbitrariedade não podiam opor-lhe nenhuma resistência. A ideia do direito é o fundamento da constituição, e agora tudo deve apoiar-se nela. Desde que no céu brilha o sol e os planetas giram em seu redor, não houve ainda um homem que metesse na cabeça, quer dizer, que se apoiasse na ideia, e, em consonância com ela, reconstruísse a realidade. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o "nous", quer dizer a razão, rege o mundo, porém só agora o homem conseguiu reconhecer pela primeira vez que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Esta foi a mais majestosa aurora. Todos os seres pensantes saudaram alegremente o inicio da nova época. O entusiasmo mais intenso apoderou-se deste tempo, e todo mundo impregnou-se do entusiasmo do espírito, como se pela primeira vez tivesse sido realizada a conciliação da divindade com o mundo". (Hegel. "Filosofia da História", 1840, página 535, edição russa). (retornar ao texto)
(85) Lenin. Materialismo e Empírio-Criticismo. Obras, tomo III, edição russa, página 186. (retornar ao texto)
(86) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obras, tomo III, páginas 79-81, edição russa. (retornar ao texto)
(87) Engels. Ludwig Feuerbach, páginas 33-34, versão espanhola, Moscou 1941. (retornar ao texto)
(88) Marx e Engels. Obras, tomo III, página 225, edição russa. (retornar ao texto)
(89) Engels. Ludwig Feuerbach, página 10, versão espanhola, Moscou 1941. (retornar ao texto)
(90) Engels. Dialética da Natureza. Obras de Marx e Engels, tomo XIV, página 495, edição russa. (retornar ao texto)
(91) Lenin. Cadernos Filosóficos. Edição russa, página 174. (retornar ao texto)
(92) Idem, página 144. (retornar ao texto)
(93) Marx e Engels. Obras, tomo XXII, página 290-291, edição russa. (retornar ao texto)
(94) Lenin. Cadernos Filosóficos, edição russa, página 174. (retornar ao texto)
(95) Engels. Dialética da Natureza. Obras de Marx e Engels, tomo XIV, página 525, edição russa. (retornar ao texto)
(96) Lenin. Cadernos Filosóficos, edição russa, página 251. (retornar ao texto)
(97) Engels. Ludwig Feuerbach, versão espanhola, Moscou 1941, página 19. (retornar ao texto)
(98) Idem, página 35. (retornar ao texto)
(99) Lenin. Frederico Engels. Obras, tomo I, página 435, edição russa. (retornar ao texto)
(100) Tchernichevsky. Diário de 28-1-1849, edição russa. (retornar ao texto)
(101) Stalin. Sobre o Materialismo Dialético e Histórico. "Questões do Leninismo" versão espanhola, Moscou 1941, página 635. (retornar ao texto)
Inclusão | 09/12/2015 |