Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Capítulo V - 9 de Janeiro - Mukden e Tsu-Sima


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A atitude das massas populares com relação à guerra, no princípio, foi de indiferença. Só quando as famílias camponesas se viram privadas de braços pelas contínuas mobilizações, a ponto de em algumas aldeias não ficar mais do que a terça parte, ou a metade dos homens adultos, principiaram as massas a mostrar um surdo descontentamento. O governo de Pleve, todavia, agia com astúcia: ao proceder às mobilizações, deixava deliberadamente de parte os centros industriais e, em geral, as grandes cidades. Onde a população era mais consciente, onde a propaganda revolucionária estivesse melhor organizada, sentiam-se menos os efeitos da guerra e havia menos motivos de descontentamento.

Muito diferente era a situação da “opinião” isto é, da burguesia e dos intelectuais, a respeito da guerra. Nestes setores, durante os últimos meses que a precederam, difundira-se acerca do governo o mesmo erro em que este se encontrava com referência aos japoneses. Do mesmo modo que o governo de Nicolau II estava persuadido de que os japoneses “não se atreveriam” a romper as hostilidades, a “opinião” estava convencida de que o governo de Nicolau não se atreveria a dar começo a guerra. A causa desse erro residia nos boatos que circulavam sobre as dificuldades financeiras do governo. Gente “perfeitamente informada” assegurava que o dinheiro do Tesouro não era suficiente para sustentar a guerra por mais de três meses e o quarto mês assinalaria o início da bancarrota do Estado.

A “opinião” compreendia que, nesse assunto, atrás de Nicolau II estava a Bolsa parisiense e que esta, naturalmente, não se negaria a auxiliá-lo na consecução de seus fins no Extremo Oriente, que eram os mesmos da Bolsa. Assim sucedeu: durante a guerra, Nicolau conseguiu obter no estrangeiro 1.210 milhões de rublos, cobrindo assim 9/10 de todos os gastos da guerra (esta custou 1.330 milhões de rublos ouro). O governo não só não quebrou, conforme a “opinião”, como nem interrompeu a troca de papel por outro. A única consequência foi o aumento das dívidas; antes, estas eram feitas nominalmente a 4%, em realidade 4 1/2 %; agora, se concertavam nominalmente a 5%, mas na realidade pagavam mais de 6%. Os amigos parisienses não deixavam de se aproveitar das desventuras de seu amigo russo.

Quando, ao contrário da “opinião”, Nicolau, “se atreveu”, quando o governo russo recolheu a luva que os japoneses lhe jogaram, no primeiro instante, a “opinião” acovardou-se. Alguns zemstvos dirigiram manifestos “patrióticos” ao czar. Stuve, no jornal editado no estrangeiro pelos zemstvos, aconselhava gritar “Viva o Exército!” Ninguém esperava a vitória dos japoneses em terra; a opinião geral era que, no mar, naturalmente, infligir-nos-iam alguns revezes, mas em terra a nossa vitória seria indiscutível. Por isso, quando os japoneses começaram a arremeter contra Kuropatkin, a “opinião” sofreu nova desilusão, mas em sentido contrário. Esperavam que a derrota obrigasse o governo de Pleve a fazer concessões, e preparou-se para aceitá-las, e, em caso de necessidade, forçar o governo titubeante a fazê-las. A “Liga da Libertação”(1) fundada pelos zemstvistas da esquerda, em 1903, mas que não tardou em cair nas mãos não tanto dos zemstvistas quanto nas dos chamados “terceiro elemento” (médicos rurais, estadistas, professores, etc., os quais eram muito mais radicais que o mais liberal dos fazendeiros), tomou um rápido incremento e lançou proclamações sobre a guerra. Pleve dizia que

“nas administrações dos zemstvos estavam se formando coortes de sans culottes que adquiriram uma influência predominante nos assuntos desses organismos. separando deles os elementos chamados a administrar pela lei”.

Dois acontecimentos determinaram uma transformação radical do estado de espírito a respeito do derrotismo e da revolução em primeiro lugar, o assassinato de Pleve em julho de 1904 e, em segundo, o combate de Liao-Yang um mês mais tarde, em agosto.

Pleve foi executado pela “Organização de Combate”(2) dos socialistas revolucionários (o executor imediato, que lançou a bomba, foi Zazonov, que ficou gravemente ferido) com a participação de Azev, já conhecido do leitor. Este último entrou na “Organização de Combate” na qualidade de espião do Departamento de Polícia. Aos olhos dos dirigentes desta instituição, era um homem em que se podia confiar. A atmosfera daqueles dias, porém, era tal, que a sociedade dos revolucionários exercia influência sobre todos, inclusive sobre um espião traquejado como esse. Azev traiu o seu departamento e participou nos assuntos dos socialistas revolucionários da “Organização de Combate” não mais para guardar as aparências. O pogrom de Kieschenev converteu-o num elemento no qual não se podia mais ter confiança. Azev era judeu. Conversando com outro policial, também conhecido do leitor, Zubatov, falava de Pleve, que ele considerava como o principal culpado do pogrom, tremendo de raiva e de ódio. O grande organizador dos pogroms e da espionagem caiu em suas próprias redes, ferido pela mão de seu agente. Mas, na época, o público não conhecia essa história de bastidores nem a conheciam sequer as pessoas que, pelo caráter de seus “serviços”, se achavam perto de Azev o qual, ainda muito tempo depois disto, continuou em sua duplicidade até ser desmascarado pelos revolucionários de 1908(3). Para o público, a execução na rua, em pleno dia, do onipotente Ministro do Interior, do verdadeiro autocrata, era uma prova da forca da revolução. O estado de espírito entre os elementos burgueses e intelectuais começou de novo a elevar-se.

O governo, pelo contrário, ficou desconcertado. Pleve convencera Nicolau de que conhecia o segredo da luta contra a revolução e que, enquanto estivesse no poder, nada havia a recear. Eis que esse taumaturgo não conseguira salvar-se a si próprio. Nicolau desconcertara-se também e até um mês depois não encontrara sucessor para Pleve. A designação desse sucessor exteriorizou, de certo modo, a desorientação existente. Foi designado de novo, um policial, o ex-chefe do departamento de gendarmes, Sviatopol-Mirski, um policial “liberal” que aconselhava a agir, há tempos, por processos “suaves” em contraposição à forca, esforçando-se por evitar as massas e não escarnecer delas.

O novo ministro apressou-se, antes de tudo, em adular os zemstvos, intimidados ou irritados pelo seu antecessor. Em seu primeiro discurso, falou de sua atitude de

“boa vontade e de confiança sincera nas instituições sociais e na população em geral”.

Sviatopol-Mirski imaginava que as coisas não se haviam transformado e que umas palavras carinhosas bastariam para os liberais dos zemstvos se lançarem imediatamente em seus braços. Pleve perseguira-os, não permitira as assembleias mais inofensivas à Constituição, expulsou um dos membros mais influentes dos zemstvos de seu cargo, o presidente da administração provincial de Moscou, Schipov(4), que nem sequer era constitucionalista, mas eslavófilo e sonhava com a união do czar com o povo (para Schipov o povo era constituído, naturalmente, por fazendeiros). Agora falavam de confiança. Que mais queriam? Os tempos haviam mudado; a confiança já não existia.

No período compreendido entre a morte de Pleve e a designação de Sviatopol-Mirski realizou-se o combate de Liao-Yang, que decidiu o czar a inclinar-se pela “suavidade” ao proceder à designação do novo ministro. Mas os liberais tornaram-se também mais audaciosos. A “opinião” via com clareza a impossibilidade de derrotarmos os japoneses. O governo estava num beco sem saída. Parecia que a única coisa a ganhar seria uma paz ignominiosa. Mas uma paz ignominiosa — lembravam-se, provavelmente, da guerra da Crimeia e da paz de Paris em 1856 — implicava em concessões internas à “opinião pública”. Quando se dirigiram a Sviatopol-Mirski à procura de autorização para convocar um congresso dos zemstvos (congresso que havia sido proibido por Pleve), o ministro deu o seu beneplácito ingenuamente, imaginando que este se reuniria com o objetivo único de discutir os seus assuntos internos. Grande foi a sua confusão quando soube que os zemstvos se dispunham a reclamar uma Constituição, aludir à qual era considerado, no tempo de Pleve, um crime de Estado! A primeira intenção desse homem indeciso foi conseguir, ao menos, o adiamento do congresso até o mês de janeiro. Mas, os zemstvos, cuja audácia caminhava em ritmo crescente, insistiram afirmando que as convocações já tinham sido enviadas e que já era tarde para adiar o congresso. Sviatopol-Mirski teve que concordar com a reunião do congresso em novembro.

Entre os liberais e os membros da Liga da Libertação reinava um júbilo tal como se a revolução já houvesse estourado. Parecia-lhes que o congresso dos zemstvos era algo semelhante à Assembleia Constituinte. O congresso, na realidade, reunido com permissão do Ministro do Interior e protegido cuidadosamente pela Polícia com o objetivo de evitar a invasão dos operários e estudantes, oferecia um espetáculo risível. Essas medidas policiais eram suficientes para demonstrar que os membros dos zemstvos se achavam num grande atraso em relação às massas e que não expressavam as aspirações e tendências da maioria da população.

O congresso não tratou das questões que mais agitavam as massas: a questão operária e a questão da terra; ocupou-se exclusivamente da Constituição, e mesmo nesse assunto houve cisão: uma forte minoria (38 congressistas num total de 98) pronunciou-se unicamente pelo voto consultivo da representação popular nos assuntos do Estado. Essa minoria, portanto, estava convencida de que a autocracia ainda era necessária para a defesa dos interesses dos fazendeiros e da burguesia e que limitar o poder do czar era prejudicial a essas classes. Era o antigo ponto de vista dos zemstvos, expresso já nas mensagens dirigidas a Nicolau por ocasião do advento deste ao trono (em 1895). A influência da revolução, que começava, manifestou-se no fato da maioria dos membros do congresso dos zemstvos achar isso muito pouco: a maioria pronunciou-se pela concessão de voto aos representantes populares na elaboração das leis.

Mas, para limitar o poder do czar, era necessário possuir uma forca verdadeira, uma forca autêntica de que, naturalmente, careceriam esses elementos que, amedrontados, se separavam da “multidão”. Todas as suas esperanças se cifravam somente nas reminiscências do estado de espírito produzido pelo combate de Liao-Yang nas altas esferas. A única forca que tiveram essas reminiscências foi a de induzir Nicolau a “falar" com os seus próximos colaboradores das resoluções do congresso (não comunicadas oficialmente ao governo, pois o mesmo congresso era considerado assunto particular). Puseram-se de acordo sobre um manifesto, que deveria ser publicado pelo czar, no qual se falaria da representação popular, de acordo, provavelmente, com a fórmula da minoria, isto é, da representação consultiva. Mas Pobedonostesev(5) e Witte, apressando-se em reconquistar a reputação perdida nas vésperas da guerra, convenceram o czar de que não deveria aceder. O manifesto aparecido em 12 de dezembro de 1904 só falava de reformas administrativas e, numa forma muito vaga, da ampliação dos direitos da população e da liberdade de imprensa. Sobre a representação popular, nem uma palavra. Contemporaneamente ao manifesto, o governo publicava um “comunicado oficial” em que proibia formalmente alusões à Constituição nas assembleias públicas.

O manifesto de 12 de dezembro colocou os elementos dos zemstvos numa situação ridícula. Ficou patente a impossibilidade de convencer a autocracia usando-se somente de palavras. Ora, exceção feita das palavras, os zemstvos nada mais possuíam. Derramavam-se catadupas de palavras. A “Liga da Libertação”, em homenagem ao congresso dos zemstvos, organizou em todo o país uma vasta “campanha de banquetes” aproveitando-se de todas as ocasiões, por exemplo, o XL° aniversário da reforma judiciária(6) de Alexandre II para organizar banquetes nos quais se reuniam milhares de intelectuais e alguns representantes liberais da burguesia. Fazia-se o possível para evitar a entrada dos operários; porém, estes, apoiados pelos estudantes, sempre conseguiam entrada e punham os banqueteadores de mau humor com os seus discursos que nada tinham de “liberais”. Os intelectuais também falavam, naturalmente, com mais violência que os elementos dos zemstvos. Diante de uma mesa bem posta, a língua se destrava mais facilmente que diante de uma mesa coberta com uma toalha verde. Mas, tanto os liberais como os “radicais”, só tinham à sua disposição palavras. E Nicolau não lhes dava a menor importância.

As coisas marchavam melhor nos partidos revolucionários. Esses partidos atravessavam naquela época o período doloroso da organização inicial, e achavam-se quase paralisados pelos enormes esforços que esse trabalho exigia. O Partido Social Democrata, na verdade, fora organizado recentemente; não se podia falar de um verdadeiro partido depois do 2.° congresso, em Agosto de 1903. Nesse congresso, pela primeira vez, foi traçada por Lenine a questão da constituição de um partido operário verdadeiramente revolucionário e combativo, unido por uma disciplina férrea e que dirigisse todos seus esforços imediatos para derrubar o czarismo.

A iniciativa de Lenine foi apoiada pelo velho “Grupo da Emancipação do Trabalho” personificado por Plekanov, que, em seus discursos, predisse profeticamente alguns dos traços fundamentais da futura Revolução de Outubro. Todavia, uma parte considerável da intelectualidade marxista, não só a pertencente ao grupo dos “economistas”, mas mesmo a que se agrupava em torno da Iskra, concebia já a revolução burguesa — pois Lenine não negava o caráter burguês da etapa imediata da revolução como o próprio Plekanov chegou a conceber, uma revolução em aliança com a burguesia, para não dizer sob sua direção. Lenine conseguiu reunir uma maioria pouco considerável. Mas quase todos os “chefes” antigos, com Martov à frente, ficaram com a minoria; sua autoridade era, no entanto, grande; não sabiam prescindir deles, e logo, apesar da derrota no congresso ficaram completamente senhores da situação no Comitê Central e no “conselho” do Partido (formado pelo Comitê e pela redação da Iskra, órgão central do Partido). O pior de tudo foi Plekanov passar para o outro lado. Lenine foi obrigado a sair da redação da Iskra, embora fosse um dos seus fundadores, mas os leninistas ou bolchevistas, como começaram a ser chamados (por haverem tido maioria no congresso(7)), naturalmente não cederam suas posições e todas as organizações russas se converteram em teatro de uma luta encarniçada entre os bolchevistas e os menchevistas.

Pode-se avaliar da influência dessa luta sobre o movimento operário: em fins de novembro de 1904 os bolchevistas resolveram organizar uma grande manifestação em Petrogrado. Levou-se avante uma agitação entre as massas operárias, imprimiram-se milhares de manifestos. Mas, na última hora, os menchevistas obtiveram preponderância na organização petrogradense, suspenderam a manifestação e queimaram os manifestos preparados. Uma parte dos camaradas do Partido, particularmente os intelectuais, saíram à rua no dia anunciado, mas os operários, que naturalmente não puderam ler os manifestos que foram queimados, não compareceram à manifestação. A Polícia pôde carregar sem grandes dificuldades contra os estudantes e os colegiais que se haviam reunido, obtendo assim uma fácil vitória sobre a revolução.

Não teve maior êxito a manifestação de Moscou, uns dias depois, assistida somente por 300 operários. Isto prova que o episódio dos manifestos queimados, por mais característico que seja, não pode ser considerado como a causa principal do fracasso. A causa principal estava no fato das disputas entre bolchevistas e menchevistas distanciarem de uns e de outros a confiança da massa operária. Mesmo nas fileiras do Partido poucos compreendiam a essência e a importância da disputa, essência e importância que só se exprimiram com toda a evidência, no manifesto, depois de dezembro de 1905. Os operários sem partido não podiam compreender a causa das disputas que os camaradas intelectuais sustentavam entre si e, desesperados pela falta de direção de Partido, achavam-se dispostos a seguir qualquer um.

E o homem disposto a guiar — ou enganar — os operários já existia. Era o sucessor petrogradense de Zubatov: Gapon.

Já dissemos que os superiores de Zubatov consideravam o fracasso deste em Moscou como uma prova de desacerto de seu agente, e não como uma demonstração da inconsistência da concepção “zubatovista". Esta ao contrário não perdera a sua popularidade, necessitando apenas de um realizador capaz. Em 1903, a Okrana de Petrogrado, julgou ter achado o esperado executor na pessoa do cura Jorge Gapon que acabava de sair do seminário. Homem de espírito vivo, de tendências demagógicas — que mais tarde o levaram à ruína — Gapon apareceu envolvido em determinado assunto de caráter político, e deste modo caiu nas garras de Zubatov e de seus auxiliares.

Estes o “salvaram” e fizeram-no compreender que lhe seria muito mais fácil satisfazer os seus instintos e tendências estando a serviço da Polícia que a serviço da revolução. Mais tarde, Gapon assegurava que ele é que havia, desde o princípio, enganado a Polícia, mas dizia isto muito tempo depois da História o haver elevado, apesar de tudo, à categoria de revolucionário. Por esse motivo, não se deve dar muito crédito às suas palavras. Em todo caso, gozou da confiança da Polícia durante muito tempo.

Não obstante a oposição do Ministro da Fazenda, sob cuja alçada se encontrava a direção das fábricas, Pleve não só autorizou Gapon a fundar em Petrogrado uma “Sociedade de socorros mútuos dos operários mecânicos”, semelhante à de Moscou, com estatutos ainda mais “liberais”, como não se opôs à constituição de uma associação com fins mais amplos, sob o nome de “Reunião dos operários fabris da Rússia”. Esta “Reunião”, que, entre outros, obteve o direito de “criar estabelecimentos de educação, tais como bibliotecas e salas de leitura, leituras populares, palestras e conferências sobre temas de instrução geral, fundar diferentes estabelecimentos de beneficência e de comércio, etc.”; era um sindicato amarelo em toda extensão. Para o governo se resolver a fazer uma experiência tão arriscada, era preciso que tivesse muita confiança na capacidade de “seus” agentes para a luta contra a propaganda revolucionária, que podia facilmente penetrar numa organização como essa. É inegável que Gapon não estava só, tinha um batalhão de espiões que depois, naturalmente, não vacilariam em apresentar-se como revolucionários astutos, que haviam enganado o governo. Na realidade, o que enganou o governo foi o avanço espontâneo da revolução proletária na Rússia.

Os estatutos da “Reunião dos operários fabris da Rússia” foram aprovados em fevereiro de 1904, e o incremento colossal dessa organização revelou-se no outono, quando se abriram, umas depois das outras, “sessões” nos vários distritos de Petrogrado. Como atraia os operários? Em primeiro lugar, por seus atrativos puramente exteriores. A vida do operário, mesmo em Petrogrado, era triste e miserável em extremo. Para o operário, o único consolo era a taberna, e a sua família vivia privada de toda diversão. A “Reunião” começou por organizar concertos a preços reduzidos para os seus membros. E isto foi uma verdadeira descoberta. As salas de concerto ficavam tão cheias que a Polícia, às vezes, se inquietava seriamente. “Que lhe parece? Como entre os aristocratas!” diziam as mulheres dos operários quando, depois dos concertos, regressavam as suas casas. A esses desventurados, parecia uma guloseima as miseráveis migalhas que caiam da mesa da burguesia.

Mas, paulatinamente, a organização de Gapon foi adquirindo aos olhos dos operários uma importância maior. Os operários, embora não compreendessem a influência desastrosa da guerra, sentiam-na. Os preços dos artigos de primeira necessidade aumentavam rapidamente: no decorrer de 1904 aumentaram em 20% certos produtos, em 30% uns e 40% outros. O salário subira, em média, de 3%, e os salários extraordinários dos metalúrgicos petrogradenses começaram a reduzir-se logo que saiu ao mar, em outubro de 1904, a segunda esquadra do Pacífico. A “organização de Gapon”, que, no início não passava de um lugar de reunião e diversão, se converteu depressa numa coisa incomparavelmente mais séria, num instrumento de defesa dos interesses dos operários contra a opressão do capital. Em Petrogrado, repetia-se o caso de Moscou.

Mas, nesta ocasião, a coisa era mais séria desde o início. A agitação dos "zubatovistas”, em Moscou, caía num setor operário inteiramente virgem, até então, de toda agitação revolucionária. A consciência de classe neles foi despertada quando estavam organizados por Zubatov. Em torno de Gapon começaram a agrupar-se os ex-membros das organizações revolucionárias. Os operários, membros do Partido, não eram perfeitamente conscientes; a maior parte deles pertencia à extrema direita, que sonhava com um movimento operário legal à maneira dos economistas de antigamente, mas de um modo ainda mais grosseiro. Mas havia, também, ex-bolchevistas, que não conseguiram orientar-se nas querelas interiores do Partido e que criam ingenuamente que o demagogo Gapon tinha “um espírito mais amplo que os social-democratas”. fosse como fosse, eram elementos que haviam intervido em política e que Gapon tinha de fazer seus por meio de promessas políticas. Em março de 1904, Gapon leu perante o seu “estado maior” um projeto de “petição” que os operários apresentariam ao czar. Desde o começo, o movimento era mais complicado que em Moscou, como mais complicada era também a situação.

Durante os dois anos decorridos depois do caso de Moscou, a revolução dera um grande passo à frente. Bastou então que os patrões se dirigissem às autoridades superiores para que Zubatov fosse destituído e o movimento ligado ao seu nome decaísse imediatamente. Em Petrogrado, os patrões também não estavam tranquilos. Em meados de novembro, realizaram-se várias reuniões dos fabricantes, nas quais se falou da necessidade de “pôr termo a este estado de coisas”, de “tomar medidas”; etc., etc. Mas, nessa ocasião, não se tomou nenhuma medida. O governo não se sentia com forcas para lutar simultaneamente em três frentes interiores: contra os operários, contra os revolucionários e contra os liberais. E considerando, acertadamente, que os inimigos mais perigosos eram os revolucionários, mostrava-se indulgente com os liberais e tolerava as organizações operárias; devia evitar que os seus adversários se unissem. O governo não temia a união dos operários com os liberais e nisso também andava certo. O que não compreendia é que o verbalismo dos liberais pudesse ser utilizado pelos revolucionários para levar a termo uma propaganda aparentemente inofensiva entre os operários. E, entretanto, assim sucedeu: nas assembleias operárias, sem excluir as da organização de Gapon, — não nos concertos — liam-se artigos dos jornais da “Liga da Libertação”, nos quais se criticava vigorosamente a autocracia.

Não era esta ainda uma agitação revolucionária, mas, para os operários não influenciados até então por nenhuma propaganda social-democrata, os mencionados artigos puseram em evidência um panorama completamente novo da situação. Esses operários começaram a ver que o mundo dos opressores não terminava no patrão, no administrador e no policial, mas que se achava do lado do poder, salvo, talvez, o czar. Como naqueles dias nem os jornais da esquerda tinham coragem de referir-se a Nicolau os operários ainda podiam conservar ilusões a este respeito.

Criou-se assim um terreno favorável para levar à prática uma ideia que Gapon, há tempo, tinha no bolso da batina: conduzir os operários diretamente ao czar sem se molestar em consultar a Polícia nem o general governador ou o ministro. Propunha-se Gapon a realizar uma manifestação revolucionária? Há uma circunstância insignificante que faz rejeitar decididamente essa suposição. A princípio, Gapon tencionava organizar a sua manifestação em 19 de fevereiro. Já sabemos o que aconteceu em 19 de fevereiro de 1902, em Moscou. O dia em que os operários deviam lembrar-se dos “favores" de um Romanov não era adequado para começar a revolução. Se os social-democratas se propunham realmente participar de tal manifestação, como afirmava a imprensa estrangeira naqueles dias, ou tinham esquecido o caso de Moscou, ou pretendiam dar à manifestação, contra a vontade de Gapon, um sentido de acordo com seus fins. Mas, não há dúvida, Gapon ainda não era revolucionário. Que razões o arrastavam para a esquerda, mais ainda do que ele desejava? Sem dúvida, o fato do movimento operário, impulsionado pela paralisação do trabalho que se iniciava, e pelas necessidades experimentadas desde muito tempo, caminhar cada dia mais para a esquerda, e, em segundo plano, possivelmente, a covardia que o governo de Nicolau manifestara aos elementos dos zemstvos. Pleve nem sequer queria falar com eles e não tolerava que falassem entre si. E agora não só era tolerado um congresso legal de zemstvos, mas até tomavam em consideração suas resoluções, convocavam-se reuniões, ligadas a eles, toleravam-se jornais que usavam de uma linguagem tão audaciosa, que antes nem os liberais podiam imaginar. Se falam com os zemstvos, porque hão de se negar a falar conosco? Esses pensamentos deviam luzir na mente viva e — não o esqueçamos — muito propensa à demagogia, de Gapon.

Essa transformação do estado de espírito de Gapon expressou-se na mudança do dia marcado para a manifestação: a partir de dezembro, quando a sua “Reunião” começou rapidamente a crescer (naquele período havia nada menos de sete ou oito mil membros, cifra enorme para aqueles tempos, quando os membros das organizações social-democratas se contavam por centenas), fixou para realizar a manifestação, não o dia 19 de fevereiro, mas o dia da queda de Porto Artur. Em vez do dia da vitória da autocracia, escolheu o da sua humilhação. De expressão de lealdade, a manifestação converteu-se num ato destinado a recordar severamente ao czar os seus deveres. Como sempre sucede na História real, e não nas novelas, Gapon não conseguiu que as coisas se passassem como imaginara. Na época da queda de Porto Artur, chegado o momento escolhido por Gapon para a manifestação, o movimento desenvolveu-se de um modo tão tormentoso, que não houve remédio senão seguir a corrente.

O motivo para começar o movimento foi o mesmo das épocas de tranquilidade, quando se verificaram choques entre as organizações de Zubatov e os patrões. Os fabricantes, que, desde novembro, se preparavam para passar à ofensiva, em fins de dezembro resolveram dar um golpe. Na fábrica de Putilov foram despedidos, em consequência de um atrito que tiveram com o contramestre, 3 operários membros da “Reunião” . Apesar de todos os empenhos de Gapon junto aos contramestres e diretor da fábrica, a administração desta, decidida a “dar uma lição aos operários desencaminhados”, não quis ceder. Produziu-se na massa operária uma agitação surda. Gapon não podia fugir deste dilema: resignar-se à derrota e desacreditar-se aos olhos de toda a “Reunião”, ou agir energicamente .

Se não o fizesse, o movimento desdenhá-lo-ia e procuraria outro chefe. O caso Putilov fez transbordar o vaso da paciência do operariado petrogradense. Os operários de Putilov declararam-se em greve, e, consecutivamente, começaram a paralisar, uma após outra as fábricas metalúrgicas importantes. As sessões da “Reunião” gaponiana converteram-se, contra sua vontade, nos centros do movimento: os operários não dispunham de outros. Eis como uma testemunha, um social-democrata da direita, cujo estado de espírito naqueles dias não era revolucionário, e se achava livre, portanto, de toda suspeita de pintar os acontecimentos com cores demasiado vermelhas, descreve uma das assembleias revolucionárias.

“Reinava sempre nas assembleias uma espécie de êxtase religioso; milhares de trabalhadores apertados uns contra os outros, em locais cheios até à parte mais elevada, e nos quais apenas se podia respirar, escutavam avidamente os discursos admiravelmente fortes, simples e apaixonados, de seus oradores. O conteúdo dos discursos era sempre pobre; repetiam em todos os tons as frases: “não mais podemos resistir”, “a paciência acabou”, “nossos sofrimentos superaram toda medida”, “é melhor morrer que viver assim” etc., etc. Mas essas frases eram pronunciadas com uma sinceridade tão surpreendente e emocionante, brotavam das profundezas da alma humana torturada, que, proferidas centenas de vezes, faziam as lágrimas orvalharem os olhos e inspiravam a firme convicção de que, cora efeito, era necessário resolver-se alguma coisa para dar escoamento a essa amargura infinita dos operários."

Em último extremo, nesse estado de espírito que anelava irresistivelmente uma existência melhor, a única coisa que restava de Gapon e de suas pregações anteriores era a fé em que o bem estar podia ser obtido diretamente de Nicolau II. Os operários, e mesmo o seu chefe, não compreendiam que o czar não pudesse conceder a jornada de trabalho de 8 horas, nem o “salário normal” de que falava a petição. Gapon estava sinceramente convencido de que a jornada de trabalho de 8 horas era o mínimo que os trabalhadores podiam esperar, no caso de êxito da sua manifestação. Seu “programa mínimo” era composto de três pontos: anistia geral “aos políticos”; convocação do Zemski Sobor, encarregado de elaborar uma Constituição, e, como já dissemos, a jornada de 8 horas. Não ocorria a Gapon que essa jornada de trabalho — à qual, de passagem, aludia como uma concessão muito natural — nenhuma revolução triunfante a poderia arrancar, como novembro de 1905 o demonstrou.

Gapon expunha o “programa mínimo” em suas palestras privadas; na petição havia muito mais: “medidas contra a ignorância e ausência de direitos do povo russo”, “medidas contra a miséria do povo”, “contra o jugo do capital sobre o trabalho” e a exigência de uma Assembleia Constituinte, eleita por sufrágio universal direto.

Donde saiu essa petição? Incorreríamos em erro se a considerássemos como obra coletiva operária, e, ainda mais, como obra do próprio Gapon. Este, segundo a opinião geral, era cão ignorante, sob o ponto de vista político, que teria sido incapaz de organizar um programa de forma mais ou menos coerente. Os operários, mesmo os que se achavam à frente do movimento, o “estado maior”, ouviram pela primeira vez dos lábios de Gapon, segundo sua confissão, as ideias fundamentais expostas na petição. Donde procediam essas ideias?

Indubitavelmente, temos que levar em conta o contacto que Gapon mantinha não só com a Okrana petrogradense mas também com os intelectuais da “Liga da Libertação”. Um dos operários do “estado maior” conta em suas Memórias que, em princípios de novembro de 1904, Gapon e seu “estado maior” tiveram entrevistas com “intelectuais”, entre os quais cita Prokopovich, Kuskova e Bogucharski. Este era o “eixo” da “Liga da Libertação” naquela época. Os “intelectuais”, é ele ainda quem o diz, ficaram admirados do talento político de Gapon e mostraram-se plenamente de acordo com o “seu” projeto de petição. Tratava-se, naturalmente, de uma comédia habilmente representada, com o fim de inculcar nos operários as ideias preferidas por esses mesmos intelectuais. Se examinarmos calmamente essa petição, veremos o seu caráter “acima das classes”, ou “de todas as classes” refletindo com isso, inteiramente, as pregações de Struve e dos osvobojdentsi.

 “Ordena — dizia a petição, dirigindo-se a Nicolau — que sejam imediatamente convocados os representantes da terra russa, de todas as classes e de todos os Estados; que seja convocado o capitalista e o operário, o médico e o mestre escola”.

É pouco provável que os operários se preocupassem tanto com a representação dos capitalistas na Assembleia Constituinte (Assembleia, além de tudo, de tipo kadete, convocada, não por um governo revolucionário depois da queda do czar, mas por este).

O que as massas compreendiam, o que lhes interessava, era a jornada de 8 horas. E já calculavam previamente o que os patrões deveriam “devolver-lhes” pelas horas “a mais” que haviam trabalhado. Ninguém compreendia a profunda significação revolucionária desta reivindicação, exceção feita dos poucos operários, membros do Partido, que marcharam com a massa, não em honra de Gapon, ou da petição, mas pela solidariedade proletária. O conteúdo político da petição refletia, inegavelmente, não o estado de espírito dos operários, mas o dos intelectuais. Para eles, o 9 de janeiro, como veremos, marcou uma mudança de frente precisamente nesse sentido.

No que se refere aos operários, a situação era outra. Não há a menor dúvida de que 99% dos trabalhadores estavam firmemente convencidos de que o czar podia ajudá-los; e, mais ainda, era ele a única esperança que lhes restava. Gapon mesmo estava meio convencido disso. Examinando as consequências possíveis da ação iniciada, imaginava as coisas do seguinte modo: o czar recebe-me e aceita minhas proposições (isto é, o seu “programa mínimo”) e, neste caso, saio à rua com um pano branco e começa a festa popular; ou então o czar se nega a satisfazê-las, e, neste caso, saio com um pano vermelho e começa a revolta. Mas o segundo, como uma testemunha afirma, reproduzindo as suas palavras, parecia a Gapon menos provável que o primeiro. É necessário dizer que circulavam, além dessas, outras versões.

Segundo afirmavam, Gapon falava de um modo muito mais decidido.

“Levantaremos barricadas — dizia — saquearemos os armeiros, invadiremos os cárceres, ocuparemos o telégrafo e o telefone; em resumo: faremos a revolução; os socialistas revolucionários prometeram bombas; os democratas, dinheiro. A vitória será nossa”.

Para tanto os osvobojdentsi forneciam a Gapon não só ideias “acima das classes”, como ainda prometiam fornecer-lhe algo de mais substancial. Mas todos esses cálculos mesquinhos foram arrastados pela torrente avassaladora do movimento espontâneo. A torrente arrastou Gapon de uma maneira irresistível. No movimento de 9 de janeiro não havia, em rigor, chefe nem chefes. As organizações revolucionárias tampouco desempenharam papel algum diretivo, pois foram envolvidas pela corrente com os demais. Exatamente pelo fato da forca ativa ser a própria massa popular, é preciso considerar o 9 de janeiro (22 de janeiro no novo calendário) de 1905, como o começo da Revolução Russa. Essa massa, sem que ela mesma tivesse consciência disso, marchou contra o velho regime e contra o regime burguês em geral. A autocracia e a sociedade burguesa não podiam conceder as suas reivindicações. O que marchou para a praça do palácio não foi somente a revolução de 1905, mas também a Revolução de Outubro de 1917; porém, uma revolução que não tinha ainda consciência de si própria, que não compreendia sequer o que era uma revolução.

E só o terror diante da revolução que avançava, só o pânico contrarrevolucionário, pode explicar o gesto insensato com que a administração czarista respondeu à petição dos operários ao czar. Seria mais vantajoso para ela que os operários compreendessem o mais tarde possível a significação revolucionária da ação empreendida, e continuassem a crer que o czar podia conceder-lhes tudo, inclusive a jornada de 8 horas e que, se não o fizesse, seria no próprio interesse dos operários. Ao contrário, nada lhes poderia ser mais desvantajoso que inspirar aos operários a convicção de que pedir justiça aos patrões significava levantar-se contra o czar. Mas o seu pânico era tão desmesurado, perdeu a cabeça a tal ponto, que essas considerações simples e claras se achavam fora do seu alcance; com algumas descargas(8) demonstrou aos operários o que, durante anos, os partidos revolucionários se esforçaram por fazê-los compreender: para obter a sua emancipação, tinham que passar por cima do cadáver da autocracia.

No dia fatal, antes do amanhecer, começaram os operários a agrupar-se em torno das sessões da “Reunião”. Haviam-se reunido cerca de 200.000 pessoas; porém, isto parem pouco aos manifestantes: “há ainda pouca gente”, dizia sempre a multidão. Pela última vez, pronunciaram-se discursos, nos quais os oradores procuravam expressar a indescritível amargura operária. Eis um dos discursos, anotado por uma das testemunhas, apesar da confusão reinante:

“Camaradas! Já sabeis por que saímos à rua. Vamos ao czar para que ele faça justiça. Não podemos continuar vivendo assim. Lembrai-vos de Minin — que se dirigiu ao povo para salvar a Rússia. Para salvá-la de quem? Dos polacos!(9) Agora temos que salvar a Rússia dos funcionários, cujo jugo sofremos. Roubam-nos o suor e o sangue. Tenho, acaso, necessidade de descrever-vos a nossa vida de operário? Estamos alojados num mesmo quarto, à razão de 10 pessoas. É verdade o que digo?” — “É verdade, é verdade!”, respondiam de todas as partes. — “Por isso, camaradas, dirigimo-nos ao czar. Se é nosso czar, se ama o seu povo, deve escutar-nos...”

Entrementes, todos os preparativos para a matança estavam feitos. As tropas achavam-se a postos; confiando pouco nas de Petrogrado, chamaram as forcas de Pskov. Os intelectuais estavam ao par de tudo, e, horrorizados, iam de Sviatopol-Mirski (que continuava sendo ministro nominal, embora depois de 12 de dezembro não desempenhasse nenhum papel) a Witte (assim mesmo demitido e sem ter conseguido ainda reconquistar a sua influência anterior) ; porém, nem um nem outro podia ou queria fazer alguma coisa. Tudo se encontrava nas mãos das autoridades militares, que queriam “dar uma lição”. A deputação dos intelectuais (na qual até Gorki tomava, parte) nada conseguiu, além de ser presa no dia seguinte... como “Governo Revolucionário Provisório”.

O primeiro cordão de tropas recebeu os operários, nos arrabaldes da cidade, com descargas. Durante uma das descargas Gapon caiu ferido, e, retirado do meio da multidão por alguns companheiros, não mais apareceu em cena nesse dia(10). Mas. a despeito de tudo, grande parte dos manifestantes conseguiu chegar à praça do Palácio (atualmente praça de Uritski).

O palácio de Inverno, deserto, encontrava-se cintado por densa massa de tropas, inclusive artilharia, como se estivesse ameaçado de sítio. Permitiu-se que a multidão se agrupasse. Todo mundo começava a tranquilizar-se, considerando as descargas dos arrabaldes como um equívoco, resultado da estultice de alguns chefes. Mas, de repente, na praça, ressoou um toque de corneta, e, em seguida, abriu-se fogo contra a multidão. Os mortos e feridos caíam às centenas; nada mais fácil que dizimar essa multidão compacta. Depois dos primeiros instantes de terror, os operários — que se haviam dispersado — loucos de furor, arrojaram-se contra os soldados e os policiais, que estavam ao ser alcance. Isto provocou nova descarga e novas explosões de furor da multidão. Ações revolucionárias mais ou menos organizadas não houve. Unicamente em Vasili-Ostrof os operários saquearam uma casa de armas e levantaram barricadas; mas os social-democratas que dias antes ninguém ouvia, começaram a desempenhar um papel:

“Agora eles eram ouvidos” — diz uma testemunha.

Alguns dias depois, reinava tão grande tranquilidade em Petrogrado, que o novo governador, Trepof, ex-chefe e protetor de Zubatov, considerou possível “regularizar” as coisas, mandando uma “delegação operária”, por ele formada, falar com o czar. Essa delegação “autorizada pela Polícia” foi recebida pelo czar em Zarskoye Seló. Depois que os delegados desempenharam a missão, foi impossível apresentarem-se nas fábricas, devido às pilhérias e insultos dos companheiros. Contudo, se nas ruas de Petrogrado reinava tranquilidade, (havia constantemente greves), em toda a vasta extensão da Rússia o 9 de janeiro provocou um movimento sem precedentes. Durante dois meses, as greves estenderam-se de um confim a outro do país, arrastando 122 localidades e 1 milhão de operários. A Rússia de janeiro de 1905, e a Rússia de março desse mesmo ano, eram dois países inteiramente diferentes. Se a primeira era fiel ao czar, a segunda era evidentemente revolucionária, embora de um modo não organizado.

Entre os operários gaponistas, esse revolucionarismo manifestou-se, nos primeiros momentos, de uma forma muito ingênua: ao aproximarem-se os social-democratas — que ainda na véspera olhavam com receio — propunham-lhes apresentar-se a Nicolau no domingo seguinte, não mais com bandeiras, imagens e retratos do czar, mas com bombas e revólveres, com o fim de vingar o 9 de janeiro. Os social-democratas não tinham necessidade de ser menchevistas (e não o eram efetivamente), para recusar semelhante proposta, que, na prática, só poderia ter uma consequência: nova matança. Os operários gaponistas, decepcionados, voltaram-se, em grande parte, para os socialistas revolucionários e anarquistas, que, no seu entender, “compreendiam melhor a revolução” que os marxistas. Entretanto, a massa que até então seguira os gaponistas, quase instintivamente voltou os olhos para os marxistas.

As autoridades, desconcertadas com os acontecimentos, sobretudo com o fato das matanças não terem intimidado os operários, como esperavam, e sim aumentado o seu furor, observando que as greves não tinham cessado imediatamente, e, pelo contrário, de Petrogrado se estenderam a toda Rússia, começaram a envidar esforços para modificar a situação que haviam gerado.

Criou-se uma comissão especial encarregada de estudar as causas do descontentamento dos operários, presidida pelo senador Chidlovski. Pela primeira vez, na História russa, admitiram-se representantes operários nessas comissões. Em torno das eleições desses representantes, desenvolveu-se uma campanha, que ficou inteiramente à discrição dos social-democratas.

O entusiasmo geral era tal, que até os “zubatovistas" resolveram não se afastar das massas, e puseram sua firma ao pé das reivindicações políticas formuladas pelos social-democratas, que não continham nem sombra daquela ingênua fidelidade de que a petição de Gapon estava impregnada. Chidlovski, naturalmente, não se atreveu a entabular conversações sobre essas reivindicações (se o fizesse, no dia seguinte seria jogado fora do cargo), que podem ser assim resumidas: “entregar imediatamente o governo ao povo”; os operários, como um só homem negaram-se a participar na comédia preparada pelo governo.

Mas o movimento operário caminhava para a Revolução Proletária de uma forma ainda muito lenta. Até que se impusessem definitivamente as palavras de ordem revolucionárias na greve de outubro, transcorreram três quartos de ano. O eco da revolução iniciada foi muito mais rápido, embora mais superficial, entre a intelectualidade, e, em parte, entre a burguesia. Em 9 de janeiro, o governo pretendeu demonstrar sua “forca”. Mas, por mais estranho que pareça, apesar de aparentemente a força” ter sido patenteada por uma centena de mortos e milhares de feridos, a impressão de todo mundo (sem excluir o governo) era de que este apenas havia manifestado a sua debilidade. A forca armada encontrava-se ainda inteiramente em suas mãos, os agentes de Polícia estavam todos em seus postos, os cárceres achavam-se abarrotados; porém, já ninguém cria que isto tudo denotasse a existência de uma forca verdadeira Para compreendê-lo, recordemos a impressão que produziram na “opinião” as manifestações do ano de 1901. A aparição das massas nas ruas, em toda parte, alenta os revolucionários “de gabinete”; em janeiro de 1905, saíram à rua multidões, com as quais, em 1901, não se podia contar. E a intelectualidade russa, que, em dezembro de 1904, se encolhia intimidada ante os gritos das autoridades contra os zemstvos, recobrou imediatamente seu alento ao ver um autêntico movimento operário.

Os três primeiros meses de 1905 foram, por essa razão, assinalados na História da Revolução Russa como “revolta das associações culturais”. Em fins do século passado, constituíram-se na Rússia alguns centros, que agrupavam os intelectuais pertencentes às chamadas “profissões liberais”. Citemos, entre eles, a “Sociedade Técnica Russa para os Engenheiros'’, a “Sociedade Agrícola de Moscou” e a “Sociedade Econômica de Petrogrado” para os agrônomos, economistas, estadistas, etc., “Sociedade Pedagógica” (particularmente a de Moscou- para os mestres-escolas, os “Congressos de Pirogov” para os médicos, a “Sociedade Jurídica de Moscou” para os advogados. Esta última foi fechada muito antes da revolução (por ocasião do jubileu de Puchkin, em Moscou, o presidente da sociedade Muromtsév atreveu-se a falar de “poder arbitrário”, diante de Sérgio Romanov, que presidia a sessão na Universidade de Moscou); a atividade da “Sociedade Econômica Livre” era muito limitada, porém existiam outras sociedades que, em princípios de 1905, atuavam com mais energia do que nunca. O núcleo das mesmas, constituído pela velha intelectualidade “acadêmica" (catedráticos conhecidos, que, na maior parte, nada tinham de pobres, engenheiros, médicos, pedagogos e literatos) fora, já no outono de 1904, relegada a último plano por elementos mais radicais os osvobojdentsi da esquerda, que, tímidos a princípio, longe de todo revolucionarismo, foram adquirindo rapidamente maior audácia à medida que a atmosfera se ia aquecendo. Das duas almas que vivem no peito do intelectual, alma de “capataz instruído” que ajuda o capitalista a explorar o operário, e a alma do declassé, que saiu da massa popular e compreende melhor as dores da mesma do que as altas camadas, a segunda ia adquirindo, cada vez mais, predomínio sobre a primeira. O exemplo dos operários contagiava; a ideia da greve política dos intelectuais respirava-se no ar.

A “revolta das associações culturais” foi iniciada pela “Sociedade Agrícola de Moscou”, em outros tempos moderada, por se achar sob a influência de fazendeiros e funcionários, e que em 1905 caiu nas mãos dos osvobojdentsi. Essa sociedade tomara, a 14 de janeiro, a resolução de protestar energicamente contra as matanças de Petrogrado. Mas as demais sociedades entraram rapidamente em ação, de modo que se tornou impossível saber qual ia na frente.

As reuniões dessas entidades, em janeiro-março de 1905, ofereciam um aspecto inolvidável. Em lugar de conferências áridas e tediosas, de debates diante de um público limitado, celebravam-se meetings, em toda parte, diante de milhares de pessoas; os intelectuais acudiam em massa aos meetings; ninguém pedia na porta o título de sócio. Na ordem do dia figuravam “assuntos correntes”, porém ninguém pensava neles. Pronunciavam-se discursos políticos apaixonados, adotavam-se resoluções, cada qual mais “vermelha”, a cuja leitura pareciam fender-se as paredes daqueles edifícios solenes, pertencentes, em sua maior parte, ao Estado, e nos quais as sociedades continuavam a reunir-se sem que as autoridades superiores, desconcertadas, acostumadas a pulverizar os liberais, com o franzir da testa, pensassem sequer em expulsar os “radicais”. É preciso dizer que as autoridades não eram vistas em nenhum lugar, e que os socialistas se lembravam tanto delas, quanto do regulamento. Se, às vezes, se realizavam conferências, estas versavam sobre as questões fundamentais do regime democrático, a História do movimento revolucionário, ou sobre temas semelhantes. E os debates travados em torno das conferências não tardavam em converter-se em meetings tumultuosos e intermináveis.

Era fácil observar-se a existência de uma grande diferença entre esse movimento e o do outono anterior, quando a “campanha de banquetes” deixava debilmente pressentir o movimento dos intelectuais da segunda metade do inverno. Naquela época, falar publicamente de Constituição era o cúmulo da audácia e o público mais “respeitável” procurava orientar as perorações num sentido mais indefinido, falando da “legalidade”, “ordem”, etc., etc. Agora, falava-se já em essência de República, embora este termo só se começasse a popularizar nas proximidades do outono.

Não esqueçamos que a Rússia radical, não socialista, não ouvira esta palavra desde a época dos dezembristas(11). Mas a exigência da convocação da Assembleia Constituinte, que, praticamente, implicava na transmissão do poder à massa popular (a fórmula do sufrágio universal, direto, igual e secreto, já apareceu no primeiro dia, na resolução da Sociedade Agrícola de Moscou, de 14 de dezembro), assinalava de modo preciso o limite atingido pela intelectualidade. Ninguém mais esperava uma Constituição concedida graciosamente por Nicolau a seu povo, ninguém acreditava nisso, ou, pelo menos, assim parecia. Este era um dos seus traços característicos. Outro, era a intervenção, cada dia mais frequente, dos proletários nos meetings dos intelectuais. Os operários, com a cooperação dos estudantes, conseguiam às vezes mandar delegações aos banquetes; nas sessões das sociedades culturais, os operários apresentavam-se em massa; e, na última reunião da Sociedade Pedagógica de Moscou, enquanto na sala em que se realizava o meeting dos intelectuais, se falava de República democrática, nas antessalas, nos corredores, celebrava-se outro meeting não menos apaixonado e mais interessante: a assembleia dos grevistas das padarias de Moscou.

Qual era a causa dessa “paralisia do poder”, que tanto pesar inspirava a cada “cem negros” convicto? Não era, ainda, naturalmente, o medo da revolução, no verdadeiro sentido da palavra: esse medo só se apoderou de Nicolau, no fim do período que descrevemos, quando se evidenciou a impossibilidade de confiar nas forcas armadas. Em janeiro-fevereiro, as coisas haviam chegado a esse ponto. As mãos do governo achavam-se atadas por duas causas, que se encadeavam e se condicionavam reciprocamente; uma, era a passagem franca da burguesia para a oposição e, a outra, os crescentes fracassos na guerra com o Japão.

Vimos como a queda de Porto Artur influiu até nos cálculos dos chefes do movimento operário: Gapon ligara sua ação precisamente a esse acontecimento . Mas, na burguesia, por cujos interesses se derramava sangue, este acontecimento havia de produzir um efeito ainda mais forte. Se havia alguma coisa capaz de converter a burguesia em “patriótica” era, sobretudo, a esperança de ampliar o seu mercado. Mas levar ao fim a guerra, como Nicolau o fazia, significava arruinar tudo, inclusive o mercado com que já se contava.

A “nota dos fabricantes de Petrogrado” ao Ministro da Fazenda, entregue em fins de janeiro, punha o dedo na chaga ao indicar a redução do mercado como consequência do empobrecimento geral, e, portanto, da diminuição da capacidade aquisitiva da população. “Não sabeis governar”, assim se pode sintetizar o pensamento de todas as notas enviadas a respeito. E o fracasso do sistema autocrático do governo, lançava, naturalmente, os patrões russos no campo dos partidários do regime constitucional. A necessidade deste regime não era negado, na verdade, por nenhum dos servidores de Nicolau; não só Witte, que tentava levar à prática esse pensamento, valendo-se de processos jesuíticos, (a autocracia e outro qualquer sistema de governo são incompatíveis; porém, suprimir a autocracia é impossível ; a única coisa que se pode fazer é limitá-la; tal era em síntese a famosa nota de Witte aos zemstvos), mas o próprio Pleve dizia claramente a Schipov: mais dia, menos dia, será preciso outorgar a Constituição. O único, que não compreendia isso, era Nicolau. A deserção da burguesia devia tê-lo convencido.

Quando os fabricantes moscovitas, com S. T. Morozov(12) à frente, declararam às autoridades que a liberdade de palavra de imprensa, de reunião, etc., era a condição necessária para a existência ulterior da grande indústria na Rússia, equivalia a propor a escolha entre o capitalismo e a autocracia. Mas, sem o capitalismo, a autocracia não podia continuar. As notas dos fabricantes eram a manifestação menos acentuada de revolucionarismo; desde 9 de janeiro, porém, é inegável que nas “altas esferas” produziam efeito cada dia maior.

Em dezembro, Nicolau ainda vacilava: convocar os representantes ou não os convocar? Mas a 18 de fevereiro (antigo calendário), escrevia em seu Diário:

“Celebrou-se a reunião do Conselho de Ministros. Firmei um escrito de Buliguin relativo à preparação dos meios necessários à convocação dos representantes locais, para a participação no exame dos projeto: submetidos ao Conselho de Estado. Queira Deus que esta importante medida seja proveitosa à Rússia”.

O defeito dessa “importante medida” consistia em não ter sido tomada dois meses antes. A representação consultiva — a isto se reduzia, na realidade, a medida de que Nicolau falava extensamente no seu Diário — poderia satisfazer à minoria burguesa, em dezembro; em fevereiro, já não satisfazia a ninguém. Além disso, transcorrera apenas uma semana da publicação desse manifesto, “tão importante” aos olhos do czar, quando um novo revés na frente, um revés mais grave do que todos os outros, lembrou que não se devia pensar em ampliação do mercado por meio de uma vitória sobre o inimigo astuto.

Já vimos que, para passar à ofensiva, Kuropatkin esperava que o seu exército tivesse, por seus efetivos, uma preponderância decisiva sobre o japonês. Em fins de janeiro e princípios de fevereiro de 1905, parece, supôs ter alcançado esse objetivo. Depois de iniciada a guerra, enviaram-se à Manchúria mais de 800.000 homens. Deduzindo todas as baixas e as forcas da retaguarda, Kuropatkin contava em Mukden com nada menos de 400.000 homens, no papel, e seguramente 300.000, de um modo efetivo. Os japoneses eram consideravelmente mais fracos, apesar das suas forcas terem sido engrossadas com as de Porto Artur. O exército russo tentou, em fins de janeiro, passar à ofensiva (batalha de Sandepú); mas a imprevisão e o desleixo tradicionais determinaram um inútil derramamento de sangue. Tratava-se, no entanto, unicamente, de um fracasso parcial, que não desalentou o generalíssimo russo, que continuou preparando o ataque decisivo em toda a frente. Os japoneses anteciparam-no, e foram os primeiros a atacar. Seguindo o seu costume, não atacaram pelo lado onde queriam penetrar, mas, atraindo a atenção dos russos para o lugar em que faziam um ataque demonstrativo, avançaram rapidamente as suas forcas, em manobras envolventes, pelos dois flancos das posições russas. A batalha de Mukden começou no dia 25 desse mês; nesse mesmo dia Nicolau escreveu no seu Diário:

“Más notícias do Extremo Oriente outra vez; Kuropatkin deixou-se envolver, e, sob a pressão do inimigo, foi obrigado a retirar-se para Telin. Meu Deus, que revés!”

A derrota de Mukden foi muito mais grave que a de Liao-Yang. Nessa ocasião, não foi possível efetuar a retirada a tempo, o exército russo foi desbaratado e saiu de Mukden em completa desordem, perdendo canhões, munições e dezenas de milhares de prisioneiros. Havia mais de cem anos — desde Austerlitz — que o exército russo não sofria uma derrota semelhante. Kuropatkin perdeu, no total, somando-se os prisioneiros, 120.000 homens, quase a metade dos seus soldados, e só pôde conter a ofensiva japonesa, a 180 verstas ao norte de Mukden. Não ficou um soldado russo em toda a Manchúria. O que salvou o exército russo do extermínio total foram, em primeiro lugar, as enormes perdas dos japoneses — mais de 70.000 homens do seu exército ficaram fora de combate — e, em segundo, a fraqueza da cavalaria japonesa, que era duas vezes menos numerosa do que a russa. Por isso, não puderam perseguir os russos com a mesma energia com que atacaram.

Para os japoneses, a guerra estava virtualmente terminada, pois penetrar no interior da Manchúria setentrional, distante do mar, não fazia parte de seus planos. Mas o governo russo, enfurecido pelas derrotas, não queria ceder. “Da guerra, vencido não se volta", diziam os generais, principalmente os que tinham ficado em Petrogrado. Aproveitando-se do fato da guerra se travar longe dos centros vitais da Rússia, em Petrogrado, ainda depois de Mukden, não se desprezava o ar fanfarrão, enviavam-se continuamente tropas frescas para o Extremo Oriente e conservavam-se os olhos fixos, iluminados de esperança, na segunda esquadra que se aproximava do Oceano Pacifico. A esquadra saíra em outubro de Kronstadt. Quanto a Mukden, naturalmente, achou-se um culpado dos “erros" cometidos: no dia 1-14 de março, Nicolau “passou o dia todo num estado de depressão espiritual” e no dia 2-15 escreveu no seu Diário:

“Kuropatkin foi destituído; em seu lugar nomeou-se Linevich generalíssimo”.

Em princípios de maio, tranquilizou-se completamente e dedicou-se aos inocentes divertimentos habituais: no dia 8 de maio “matou um gato”.

Essa transformação explicava-se, sobretudo, pelo fato das vitórias na frente interior consolarem os reveses de Mukden. Durante esse período, em primeiro lugar, foram fechadas todas as sociedades culturais revoltosas, com a particularidade da Polícia, como era de se esperar, não encontrar nenhuma resistência; em segundo, foi presa a “Organização de Combate” dos socialistas-revolucionários. Essa prisão encheu de contentamento os “cem negros”; não esqueçamos que estes, como Nicolau, pintavam horrivelmente a revolução, em forma de “bombas”. As Moskovski Viedomosti qualificavam a destruição da “Organização de Combate” dos socialistas revolucionários, de “Mukden da Revolução Russa”, não compreendendo que, com isso, confessavam a derrota completa do exército russo em Mukden.

Na realidade, os atentados dos socialistas revolucionários russos não eram mais do que reflexos da revolução “intelectual”, que, por sua vez, não passava de um reflexo da imensa transformação operada no seio das massas populares. Essa transformação efetuava-se mais lentamente do que desejavam, na sua impaciência, os intelectuais; mas, o que podia ser considerado de mau agouro para o governo, era, sem dúvida, o fato de até o movimento dos intelectuais ter perdido o medo às repressões policiais. O fechamento das sociedades culturais não fez mais que contribuir para o movimento passar à segunda etapa de organização: a criação de “Associações profissionais políticas”.

Quanto mais nos afastamos da época da primeira revolução russa, mais difícil se torna explicar o sentido dessas “Associações’'. O fato de figurar entre elas uma “Associação para a Igualdade dos Direitos da Mulher” mostra a semelhança entre elas e as organizações sindicais do proletariado, que começaram a surgir naquela mesma época. (Na primavera de 1905, já existiam os sindicatos de tipógrafos e de peliqueiros — na região ocidental — e de ferroviários, semiproletários). Em algumas dessas associações, como, por exemplo, na de engenheiros e na de médicos (ambas surgidas em abril) a defesa dos interesses profissionais ocupava um lugar muito saliente, mas não constituía o fim principal. Criadas pela moribunda “Liga da Libertação” (que, de fato, se havia desmoronado em março, quando a ala esquerda se separou, no terceiro congresso), essas associações eram o embrião dos partidos políticos — ainda não existentes — e aos quais a intelectualidade russa ainda não estava acostumada.

Era evidente que o governo estava às portas da falência depois de Mukden. Os “Sebastopol” e os “Pleve" foram superados; nunca se vira ignomínia tal. Era claro, também, que o governo devia desaparecer. Quem o substituiria? Homens pertencentes, naturalmente, à “sociedade ilustrada”, isto é, à intelectualidade. A ninguém ocorria, então, (referimo-nos aos intelectuais) que o governo aristocrata-burocrático derrubado pudesse ser ocupado pelo partido do proletariado. Mostrar-se-iam os intelectuais mais admirados se se lhes dissesse que unicamente esse acontecimento extraordinário, a tomada do poder pelo proletariado, significava a vitória da revolução, e que, se isso não fosse conseguido, a revolução fracassaria.

As palavras proféticas de Chernichevski, segundo as quais na revolução se deve esperar sempre a vitória completa ou o completo fracasso, tinham sido esquecidas há tempo. Se recusavam qualquer concessão de Nicolau, no fundo da alma tinham a esperança de que as derrotas militares e o movimento de massa obrigariam Nicolau a fazer concessões. O 18 de fevereiro parecia unia prova disso. Que se havia de fazer, nesse caso? Que se devia exigir? Os operários e os camponeses, naturalmente, não sabiam formular — como é preciso — o que necessitavam. Os “homens ilustrados” devem ajudá-los. Mas quais? Porventura os estudantes esfarrapados e os colegiais que falam absurdos como a luta de classes e outras coisas análogas? Os intelectuais verdadeiros, os intelectuais respeitáveis é que deviam correr em auxílio do povo”. O papel da intelectualidade, como mãe protetora das “massas laboriosas”, sem dúvida, lembra ao leitor as teorias das “individualidades com pensamento crítico” que arrastam o povo atrás de si.(13) Trata-se, com efeito, dessa concepção. A revolução de 1905 estava fadada a desferir nela o último e decisivo golpe; porém, na primavera do mencionado ano, ainda se achava em pleno esplendor.

É natural que à frente dessa massa heterogênea, na qual, ao lado do catedrático, do engenheiro — com um soldo de milhares de rublos — do advogado ou do médico — com uma profissão que lhes proporcionava dinheiro em quantidade — se via o mestre-escola rural com a roupa tão rústica como a do militante “ilegal”, declarando-se um “verdadeiro proletário”; é natural, repetimos, que à frente da massa se colocassem os socialistas revolucionários que eliminaram rapidamente os osvobojdentsi (quando estes não se convertiam em Soviets russos) e salvaguardavam zelosamente as associações da influência nefasta do marxismo. Contudo, é também natural que essa massa heterogênea, que se começou a agrupar em fevereiro numa “Associação de Associações” (que se constituiu definitivamente no Congresso de maio), não pudesse encontrar um programa ou uma tática comum.

Todas as associações estavam de acordo, no terreno político, num ponto: exigência de uma Assembleia Constituinte. Isto acentuava o seu caráter democrático e separava-as da ala direita dos osvobojdentsi, que já estava prestes a se constituir em Partido Constitucional Democrático (ou kadete) e representava, de um modo mais ou menos definido, a tendência liberal burguesa. No que se relaciona com a tática, as “associações” não podiam deixar de conceder aos seus membros o direito de agir como quisessem: se os socialistas revolucionários tivessem tornado obrigatória a tática terrorista, perderiam 9/10 de seus aliados; ao mesmo tempo, os intelectuais “livres” consideravam humilhante submeter-se à disciplina proletária, e, a limitar-se exclusivamente à tática legal dos futuros kadetes, seria o mesmo que renunciar à revolução.

Ora, fosse como fosse, as “alianças” eram, apesar de tudo, organizações revolucionárias. Como ideia ainda obscura, começou a surgir, naquele período, o plano de greve política dos intelectuais; e, no fim, a única arma útil foi a proletária. Mas esta arma foi unicamente empregada quando o proletariado mostrou, com o exemplo, como se devia servir dela; o primeiro que seguiu o exemplo foi o sindicato dos ferroviários, que se achava mais perto do proletariado.

O exemplo não foi rapidamente seguido, senão no outono. As associações, na primavera, davam ainda os primeiros passos e o fato de Trepov — que acabara de ser nomeado ditador policial da Rússia — não tomar medida alguma para “refreá-los” demonstra a pequena importância que nas altas esferas se dava a nova forma de organização dos intelectuais. Em todo caso, em Zarskoíe Selo o estado de espírito era tão primaveril como o tempo. E Mukden ia sendo esquecido pouco a pouco; desde que fora descoberto e castigado o culpado, tudo estava em ordem. Em 15 de maio, Nicolau consignou em seu Diário que “estivera” num excelente convescote. Nesse mesmo dia, a dez mil verstas de distância, os últimos restos da esquadra se rendiam aos japoneses.

Se Liao-Yang foi um fracasso, e Mukden uma derrota, Tsu-Sima foi uma catástrofe. O nome de Tsu-Sima já é tão conhecido de todo russo mais ou menos ilustrado, que é suficiente explicar que se trata da maior ilha do estreito que separa a Coreia do Japão. O destino da guerra com o Japão decidia-se precisamente no ponto em que os Romanov haviam fixado avidamente os olhos. Se o plano de Nicolau — apoderar-se da Coreia – se tivesse realizado, nas margens daquele estreito ondulariam bandeiras russas. Em vez disso, a bandeira russa foi arriada definitivamente e a Rússia deixou de ser a grande potência do Pacífico.

Já sabemos que a remessa ao Extremo Oriente, em outubro de 1904, da chamada “segunda” esquadra, foi a última e desesperada tentativa para salvar Porto Artur, atacando pelas costas a esquadra japonesa que bloqueava esse porto. Rendeu- se Porto Artur quando ainda a esquadra se encontrava a meio caminho. Seguir avante era inútil; porém “da guerra não se pode voltar vencido”, tanto no mar como em terra. A esquadra devia seguir para a frente, a todo custo, para ir, na verdade, perder-se.

Para isso, a esquadra não podia estar melhor preparada. Era composta de novos encouraçados, que não estavam terminados ainda ao se iniciarem as hostilidades, navios do último modelo, mas de construção russa, o que significava que, ao serem utilizados, se havia roubado mais do que gastou na construção. Além disso, foram terminados apressadamente, e isto não redundava em garantia de sua solidez. A tripulação, tanto oficiais como marinheiros, era de qualidade inferior à da esquadra de Porto Artur; para a segunda esquadra foi necessário empregar reservistas, de maneira que, sob esse aspecto, recordava o exército de Kuropatkin. Habituados a navegar nos velhos navios os homens mal se adaptavam à última palavra da técnica naval.

Má, especialmente, era a preparação da artilharia: para não estragar projéteis durante todo o extenso trajeto, compreendido entre o golfo da Finlândia e as costas do Japão, só uma vez se fizeram exercícios de tiro, que eram insuficientes para o preparo dos marinheiros.

O comandante da esquadra não podia ser mais adequado. Irascível e intratável, muito impopular entre os seus subordinados o almirante Rojdestvenski, — marinheiro de outros tempos – não compreendia as condições da guerra marítima moderna. Nessa guerra, com os materiais explosivos de invenção recente, o mais perigoso para o navio é o incêndio: por essa razão, a regra mais elementar é preservar todas as partes de madeira do navio que se prepara para entrar em combate. Rojdestvenski, que colocava acima de tudo a “ordem” exterior e a formosura dos seus encouraçados, proibiu terminantemente a destruição das construções de madeira e dos móveis. Veremos logo qual foi o resultado disso.

A qualidade da “segunda esquadra” evidenciou-se com todo o esplendor muito antes de chegar aos limites da Ásia Oriental. Apenas saíra do mar Báltico para entrar no mar do Norte, entre a Inglaterra e a Alemanha, pela noite, a esquadra avistou uns barcos de pesca ingleses que haviam saído de Hull. Um dos oficiais de guarda imaginou tratar-se de destroyers japoneses e deu ordem de atirar. Deu-se, então, uma confusão e um pânico vergonhosos. Os navios russos puseram-se a disparar para a direita e para a esquerda, matando e ferindo os próprios marinheiros e oficiais. Caíram, também, naturalmente, projéteis sobre os barcos de pesca, uma parte dos quais foi a pique, com toda a tripulação. O governo russo foi submetido depois a um Tribunal Internacional e teve que pagar uma enorme indenização às famílias das vítimas inglesas.

A queda de Porto Artur, que, na realidade, deveria determinar o regresso da esquadra russa, foi mais um motivo para conduzi-la a um fracasso irremediável. Como não pudesse contar com o apoio da esquadra de Porto Artur, resolveram reforçá-la com novas unidades marítimas da Rússia. Mas aqui não haviam ficado senão navios inservíveis, apenas aptos para a defesa da costa, de marcha lenta, couraça débil e artilharia envelhecida. Formou-se, com esses navios, a “terceira esquadra”. Seu comandante, o almirante Niebogatov, era pouco mais competente que Rojdestvenski, porém a única vantagem disso foi não permitir que seus navios fossem afundados: fê-los passar intactos às mãos dos japoneses.

Sobrecarregada de almanjarras de diferentes calibres, que para nada serviam e, pelo contrário, dificultavam enormemente a manobra dos encouraçados russos do novo tipo, esgotada por uma navegação de seis meses, com uma tripulação inexperta, — sem nenhum preparo —, a esquadra de Rojdestvenski encontrou-se no estreito da Coreia com a esquadra japonesa — saída dos reparos — que fora perfeitamente selecionada e cuja tripulação, instruída maravilhosamente desde o início da guerra, contava com um ano de experiência. Como sempre, os japoneses, quantitativamente inferiores aos russos, possuíam qualidades que compensavam a desigualdade numérica.

Aconteceu, para os espíritos pouco experimentados, um verdadeiro milagre: os navios de aço dos russos foram incendiados pelas bombas japonesas. Por que? Sabemo-lo. O culpado pela catástrofe, ferido, não desejava, entretanto, perecer nas fogueiras que havia preparado, e tentou salvar-se num destroyer alcançado, porém, pelos japoneses, entregou-se sem combate. Niebogatov, no dia seguinte, seguiu o exemplo de Rodjdestvenski; entretanto, apesar de depois ter sido julgado severamente, tinha muitos motivos para se justificar: em primeiro lugar, nos seus velhos navios, não podia alimentar a esperança de escapar à perseguição dos rápidos cruzadores japoneses, e, depois, a madeira fora lançada ao mar, e, por isso, nenhum dos seus navios se incendiara. Devido, unicamente, a essa circunstância, foram salvas as vidas de alguns milhares de marinheiros russos. Quase toda a tripulação da “segunda esquadra” pereceu: os russos perderam 8.000 homens enquanto os japoneses não perderam mais de 600. Só alguns cruzadores e navios auxiliares conseguiram fugir e refugiar-se em portos neutros; um pequeno cruzador pôde chegar a Vladivostok.

Tsu-Sima produziu uma impressão muito mais forte que Mukden na “sociedade”, isto é, na parte mais folgada da população. As autoridades, prevendo essa impressão, ocultaram a notícia da catástrofe o mais que puderam: a censura militar, ao mesmo tempo que fazia circular nos jornais diversos boatos absurdos (mas favoráveis aos russos) da imprensa estrangeira, durante três dias guardou os telegramas oficiais do almirante japonês Togo. Com isso, só conseguiu que a impressão fosse mais forte quando se conheceu a verdade.

A assembleia de zemstvos, mais direitistas que os osvobojdentsi, reunida justamente naqueles dias em Moscou, e que tinha como objetivo trocar ideias sobre a organização da futura “representação popular” (à base do manifesto de Nicolau), e fora convocada com fins mais moderados, inesperadamente, com horror da minoria, carregada das melhores intenções, falou imediatamente “da convocação inadiável da representação popular”, eleita “mediante o sufrágio universal, igual, secreto e direto”.

Custou grandes trabalhos à minoria atenuar esta última fórmula, absolutamente imprópria de uma assembleia de fazendeiros, tendo um dos seus membros observado amargamente:

“Tinha-se a impressão de que a maioria esmagadora dos oradores, assim como a da assembleia, não estava inspirada tanto pela consciência da necessidade de atenuar as discórdias existentes entre o governo e a sociedade e de consagrar todas as suas forcas para estabelecer a unidade entre um e outra, para o reforçamento do prestígio do nosso Estado, como por um sentimento, talvez justo, de indignação pelos atos do governo, que arrastou a Rússia a uma guerra mal-aventurada e incompreensível com a consciência popular, e conduzindo o país à ruína no interior e no exterior”.

Animados pela impotência do governo, os fazendeiros, reunidos em assembleia, propunham, no primeiro momento, apresentar-se coletivamente a Nicolau, e exigir a convocação da representação popular à base da fórmula acima aludida. A minoria conseguiu, com grande dificuldade, que se desistisse dessa “manifestação” e que, em vez dela, mandassem uma pequena delegação ao czar com a incumbência de lhe entregar uma mensagem mais ou menos “decente”, isto é, escrita nos habituais termos servis. Em 6 de julho, Nicolau escreveu no seu Diário:

“Recebi 14 representantes da Assembleia dos zemstvos, que se celebrou recentemente em Moscou”.

Nada mais. Do que lhe disseram os representantes e do que ele lhes respondeu, nem uma palavra. Só uma semana depois, o seu verdadeiro estado de espírito acho a ocasião de se manifestar. Figuram no Diário as seguintes linhas, datadas de 21 de junho (todas as datas segundo o antigo calendário):

“Recebi o senador Narischkin, os condes Bobrinski, Kireev, Paulo Scherenlietev e outros, além de alguns camponeses da Liga dos Russos, os quais me fizeram uma declaração oposta à dos representantes dos zemstvos”.

Os “representantes” achavam-se dispostos a falar sem reservas ao czar, mas não levaram à prática esse propósito. Os intelectuais “nem queriam falar”. A “Associação das Associações”, retinida naqueles dias em Moscou, aconselhava a não falar, mas a “agir”, “agir como cada qual julgasse necessário, de acordo com as suas convicções políticas, como quisesse — mas agir. Todos os meios são agora legítimos contra o terrível perigo que representa a continuação do governo atual, e todos os meios devem ser tentados. Dirigimo-nos a todos os grupos da opinião pública, a todos os partidos, a todas as organizações, a tudo o que há de vivo e capaz de reagir diante da dor atual, e lhes dizemos: consagrai todas as forcas, todos os meios, para conseguir a deposição dos bandidos que se assenhorearam do poder e substituí-los pela Assembleia Constituinte...”

A aduladora comparação dos “Romanov” a uma corja de bandidos não chegou aos ouvidos de Nicolau, mas mesmo que houvesse chegado é pouco provável que essa tempestade num copo d'água lhe causasse qualquer temor. Mas pouco tardaram notícias que não podiam deixar de amedrontá-lo. Se dedicou uma linha no seu Diário aos representantes dos zemstvos, e nem uma só aos intelectuais, em compensação, páginas inteiras do Diário são consagradas ao encouraçado Potenkin Tavricheski. Para não mencionar o nome dos “representantes”, Nicolau lembrou-se do nome do encouraçado.

Não houve necessidade de demonstrar que a guerra não deixaria de repercutir no espírito das tropas. Há tempo já que se manifestavam sintomas funestos para os Romanov. Por ocasião da batalha de Mukden, alguns soldados haviam fuzilado oficiais que, com disparos de revólveres, tentavam conter a retirada das tropas, para conduzi-las de novo ao combate. Em Tsu-Sima, a rápida rendição de Niebogatov explica-se não só pelo absurdo, sob o ponto de vista técnico, de continuar o combate, como também por se negarem terminantemente os marinheiros a morrer sem proveito e precisamente no melhor dos encouraçados da esquadra de Niebogatov; os oficiais achavam-se neste dilema: arriar a bandeira ou ser lançados ao mar pela tripulação.

Um estado de espírito que ainda não se podia qualificar de revolucionário, mas que se transformava irresistivelmente, manifestava-se muito mais intensamente na esquadra que nas forcas de terra. Isto explica-se pela composição social da massa dos marinheiros.

O navio moderno, com seus numerosos mecânicos de todas as espécies (seus enormes canhões, por exemplo, são movidos à máquina), parece-se muito com uma fábrica. Mover-se nessa fábrica é incomparavelmente mais fácil ao operário fabril que ao camponês que nunca viu máquina. Além disso, a frota nunca é empregada contra o “inimigo interior”: por isto a “segurança” do marinheiro parecia muito menos necessária que a do soldado de terra, que se podia achar na contingência de disparar contra os grevistas ou contra quaisquer manifestantes. Por todos esses motivos, enviavam-se de preferência os operários para a esquadra e os camponeses para as forcas de terra. De sorte que a esquadra de Nicolau II era a parte mais proletária de suas forcas armadas.

Os marinheiros, que estavam constantemente em contacto com as tripulações dos navios estrangeiros (onde não era raro encontrar emigrantes russos), com os operários dos portos, menos conscientes que os fabris, mas mais “revoltosos”, impregnados do anarquismo espontâneo da massa esfarrapada, era a facção mais revolucionária dessas forcas. Especialmente os reservistas, arrancados ontem de suas fábricas, por assim dizer, levavam para os navios o espírito de greve. A disciplina da esquadra era mais severa que a das forcas de terra. No quartel, os oficiais acham-se separados dos soldados, encontrando-se com eles só durante o serviço. No navio, todos vivem juntos; os marinheiros conheciam todos os segredos da vida privada dos oficiais e os desprezavam, ao mesmo tempo que o jugo da oficialidade se fazia sentir mais intenso, pesando na existência do marinheiro. Acrescente-se a isso que a oficialidade da marinha do czar era muito mais aristocrática que a de terra (os elementos burgueses, por tradição, quase não ingressavam na Marinha), e compreender-se-á porque a esquadra se achava melhor disposta à explosão revolucionária do que os componentes da forca armada de Nicolau.

O motivo da explosão foi, como na véspera de 9 de janeiro, aparentemente pouco importante e acidental. A comida fornecida aos marinheiros era péssima, enquanto os oficiais se nutriam excelentemente e — o que era pior —, os marinheiros sabiam que a oficialidade se alimentava, em grande parte, à custa do rancho da tripulação. Antes, isso era suportado silenciosamente; porém, agora, a tripulação começava a considerar que não era justo que a oficialidade comesse melhor que “os homens” e não deixava, de vez em quando, de manifestar o seu desagrado.

Um dia, em meados de junho, os marinheiros do Potenkin, o melhor encouraçado da esquadra do mar Negro, construído há pouco tempo, segundo o tipo japonês, negaram-se a comer a sopa, condimentada de um modo excessivamente “russo”. Um oficial “ameaçou” os descontentes, a tripulação respondeu com “insolências” e, a um gesto excessivamente insolente do marinheiro Vakulinchuk, seguiu-se um disparo, que o matou. Um segundo depois, o oficial que disparara deixava de existir e, após alguns minutos, toda a oficialidade era arrojada ao mar. O encouraçado, em poder da tripulação amotinada, e, com a bandeira vermelha içada, dirigiu-se ao porto de Odessa.

O porto estava, naquele momento, numa das greves que, naquele período, atravessavam rapidamente a Rússia, propagando-se de cidade a cidade. O aparecimento de um grande navio de guerra com a bandeira revolucionária provocou uma explosão indescritível de entusiasmo entre os grevistas. Foi organizado, em homenagem ao marinheiro assassinado, um enterro como nunca Odessa viu outro. As autoridades locais mantinham-se inativas, sobretudo depois que o Potenkin respondeu às tentativas da Polícia com uma bomba de canhão de 12 polegadas. É inegável que, se os marinheiros estivessem organizados, a cidade cairia em suas mãos em 2 horas. A guarnição de terra começava já a ser atacada pelo “micróbio” revolucionário. Mas faltava organização; no navio, não havia mais que 2 ou 3 revolucionários conscientes; todo o movimento se baseava exclusivamente no entusiasmo, que principiou a decair, quando foi necessário passar a uma ação revolucionária séria e prolongada.

Houve ainda, no entanto, entusiasmo suficiente para uma brilhante ação. Toda a esquadra do mar Negro foi enviada a Odessa para submeter os revoltosos. O Potenkin saiu valorosamente ao encontro da mesma e teve então lugar um acontecimento imprevisto. Ao ver o navio revolucionário, que se dirigia a todo vapor para a esquadra, os marinheiros dos demais navios, abandonando os seus postos, precipitaram-se sobre as cobertas aos gritos de “Hurrah!” em honra do Potenkin. O almirante que comandava a esquadra considerou-se feliz em poder voltar para trás e fugir do terrível encouraçado que desfraldava a bandeira vermelha. Quase toda a esquadra do mar Negro, posta em fuga por um só encouraçado! Mas não toda: outro grande encouraçado, o Gueorgui Pobedonosests, içando a bandeira vermelha, seguiu a esteira do Potenkin e com este entrou na baia de Odessa.

Este foi o momento culminante da insurreição na esquadra do mar Negro, que produziu extrema depressão espiritual nos governantes e o florescimento das mais lisonjeiras esperanças entre os dirigentes do movimento.

“Deus sabe o que sucede na esquadra do mar Negro — escrevia ansiosamente Nicolau no seu Diário, ao receber a notícia dos acontecimentos de Odessa — Se ao menos se pudesse manter em obediência a tripulação dos demais navios da esquadra!”

A situação para Nicolau era melhor do que ele imaginava. A adesão de Gueorgui Pobedonosests não reforçou os insurretos. O ânimo da tripulação deste encouraçado era ainda menos firme que o dos marinheiros do Potenkin. Os oficiais e suboficiais que ficaram no Gueorgui puseram-se imediatamente a preparar às ocultas uma agitação contrarrevolucionária. Aos marinheiros, que começavam a assustar-se do que haviam feito, davam a entender que nada havia a temer, pois existia ainda um meio de salvação; entregar-se às autoridades e delatar os “cabeças do motim”. Para inutilizar o navio, os contrarrevolucionários encalharam-no. O Gueorgui rendeu-se, e, ao mesmo tempo, terminou a greve. A inconsistência da população operária semi-esfarrapada do porto, pôs-se de manifesto em toda sua amplitude; no terceiro dia de greve, uma parte dos grevistas embebedou-se; no porto começou um incêndio; as autoridades, animadas, movimentaram as tropas que abriram fogo contra uma massa não muito composta de proletários em greve, mas de homens embriagados. Restabeleceu-se a “ordem” em Odessa.

Entrementes, fazia uma semana quase que o Potenkin navegava com a bandeira vermelha. Os víveres e o carvão estavam para acabar. Em busca de um e de outro, o Potenkin fundeou, a principio, no porto romeno de Constantina, onde os marinheiros foram bem recebidos, porém foi-lhes negado o fornecimento de qualquer coisa; depois, em Feodosia, conseguiram alguns víveres, mas foi impossível obter carvão; além disso, alguns marinheiros foram mortos pelos disparos feitos por tropas de terra. O entusiasmo da tripulação foi arrefecendo cada vez mais. Em 25 de junho, Nicolau, que seguia dia por dia a marcha da insurreição, pôde escrever triunfalmente no seu Diário:

“O Potenkin fundeou novamente em Constantina, onde a tripulação se entregou às autoridades romena e desembarcou...”

A primeira insurreição das forcas armadas de Nicolau II contra a autocracia terminou com a vitória desta. Mas o czarismo não pôde esquecer durante muito tempo a vergonha e o medo sofridos.

“É preciso castigar fortemente os chefes e os rebeldes”

— consignou Nicolau no seu Diário nos momentos culminantes da insurreição, quando duvidava que se pudesse

“manter em obediência as demais tripulações da esquadra”.

No que diz respeito aos “rebeldes”, este desejo do czar foi realizado na medida do possível: 67 marinheiros do Gueorgui foram fuzilados ou enviados à prisão. Contra os do Potenkin nada se podia fazer, pois estavam no estrangeiro. Mas, quando um dos dirigentes da insurreição, o marinheiro Matiuschenko, voltou, dois anos depois, à Rússia, foi enforcado, apesar de já ter sido promulgada uma anistia geral. A autocracia não podia esquecer essa bofetada. O nome do navio rebelde foi riscado das listas da esquadra russa: o Potenkin foi rebatizado com o nome de Panteleimon.

A revolta militar recordou mais uma vez a necessidade de terminar a guerra, o que aliás já fora demonstrado pelos acontecimentos de Tsu-Sima. De toda a esquadra russa no mar Báltico, só restavam alguns navios-escola e 2 encouraçados por acabar. A esquadra do mar Negro, é certo, estava íntegra. Mas — sem falar do estado de espírito da tripulação — não podia sair do mar Negro(14).

Em 25 de maio (antigo calendário) Nicolau registrava no seu Diário:

“Recebi o embaixador Meyer com uma missão do presidente Roosevelt”.

O presidente dos Estados Unidos, com a sua proposta de mediação, adiantou-se à Inglaterra e à França, com as quais a diplomacia russa já entabulara negociações. Há tempo que se renunciara à orgulhosa afirmação:

“Da guerra não se pode voltar vencido”,

 porém a coisa caminhava lentamente. A insurreição do Potenkin apressou-a; em primeiro de julho Nicolau escrevia:

“Recebi Witte que vai a Washington com poderes para levar a cabo as negociações de paz com o Japão”.

Eis como o Potenkin determinou a tática de Nicolau. E, na tática revolucionária, o ato de Nicolau determinou mais um passo à frente: a partir do verão de 1905 entra na ordem do dia uma questão em que seria insensato pensar em dezembro de 1904: a insurreição armada.



Notas de rodapé:

(1) Sojus Osvobojdenie, em russo. Os membros dessa Liga eram chamados osvobojdentsi, termo russo que empregamos constantemente em vez de uma tradução que não poderia ser mais que aproximada. (retornar ao texto)

(2) A “Organização de Combate”, estritamente conspiradora, dirigia, e organizava todas as ações terroristas do Partido. (retornar ao texto)

(3) Burtsev, revolucionário ligado aos socialistas-revolucionários, foi o primeiro a desmascarar Azev. Depois da revolução de outubro, Burtsev adotou uma atitude puramente reacionária, apoiando Kornilov, aliando-se com kadetes e outubristas e pregando a intervenção militar contra a União das Republicas Socialistas Soviéticas. (retornar ao texto)

(4) Schipov presidiu o congresso dos zemstvos celebrado em novembro de 1904, pertenceu à minoria desse congresso, que se pronunciou contra o sufrágio universal e participou de uma representação popular com atribuições legislativas. (retornar ao texto)

(5) Procurador do Sínodo e alma da reação. Durante o reinado de Alexandre III foi o chefe efetivo do governo e, já no tempo de Nicolau II, continuou desempenhando um grande papel. (retornar ao texto)

(6) O autor fala detalhadamente desta reforma na segunda parte da sua Historia. Em substancia, essa reforma reduzia-se a substituição dos juízos em segredo de justiça pelos juízos públicos, à instituição do jurado e à abolição dos castigos corporais por sentença do Tribunal. Entretanto, esses castigos continuavam a ser aplicados aos camponeses por decisão dos Tribunais Comuns. Para os processos políticos importantes continuou em vigor o antigo processo judicial. (retornar ao texto)

(7) Só me refiro à Historia do partido, em suas relações com a Historia geral do movimento revolucionário. (N. do A.). (retornar ao texto)

(8) Está provado que a matança dos operários não foi um ““equivoco fatal”; tratava-se de uma armadilha preparada conscientemente, de uma provocação, no verdadeiro sentido da palavra. Eis o que relatava naquela época um correspondente inglês e ex-professor russo, que gozava da confiança das rodas palacianas, o Dr. Dillon:

“Perguntei a um dos palacianos o motivo por que se matavam operários e estudantes indefesos, sem a observância de nenhuma formalidade. Respondeu-me: “Porque foram abolidas as leis civis e se acham em vigor as leis militares. Surpreende-o que ninguém saiba disso e essa surpresa é inteiramente natural; mas na Rússia não podemos considerar as coisas como vocês as consideram na Inglaterra. À noite, S. Majestade resolveu abolir o Poder Civil e confiar ao grão-duque Wladimir o encargo de velar pela ordem publica, pois este conhece muito bem a Historia da Revolução Francesa e não tolerará nenhuma fraqueza insensata. O grão- duque não incorrerá nos erros que muitos dos homens que cercavam Luis XVI cometeram; não dará provas de debilidade. Considera o melhor meio de curar o povo das fantasias constitucionais enforcar uma centena de descontentes em presença dos companheiros; porém, até agora, não o haviam escutado. Hoje, S. Alteza dispõe do poder supremo e pode ensaiar o seu processo in anima vili... O grão-duque Wladimir tem uma excelente oportunidade de mostrar as suas aptidões de homem de Estado e suas qualidades napoleônicas, e não esconde a menor duvida sobre os resultados... Suceda o que suceder, domesticará o espírito revoltoso da multidão, embora para isso seja necessário enviar contra a população todas as tropas de que dispõe”.

O autor russo, do qual reproduzimos este trecho, acrescenta: “Há uma serie de fatos que atestam que o governo se achava deliberadamente disposto a autorizar a manifestação, com o fim de fazer represálias sangrentas contra os operários: o governo estava informado — pelas noticias da Policia, pelas cartas do próprio Gapon — da manifestação que se estava preparando; estavam ao corrente dela: o governo Fulon; o substituto do Ministro do Interior; Sviatopol, Mirski, Witte, Muraviov; numa palavra, todo o mundo sabia disso, alguns dias antes da matança. O governo não tomou nenhuma medida, nem sequer anunciou o seu propósito de proibir a manifestação; finalmente, não se valeu do seu meio favorito de prevenção, as prisões, o que era muito fácil, visto a Okrana conhecer perfeitamente todos os dirigentes do movimento. Bem antes, para organizar a matança da multidão indefesa, em 9 de janeiro, Petrogrado foi dividida em distritos, cada um dos quais contava com um Estado Maior. Tudo foi organizado como para uma operação militar. Colocaram-se camas de campanha. Os oficiais e ajudantes, sentados nos Estados Maiores, com o capote posto — como em campanha — bebiam e fumavam. De vez em quando, davam-se ordens para o dia seguinte, indicavam-se as tropas que deviam entrar em ação. No tocante ao direito de atirar, confiara-se aos oficiais a faculdade de agir de acordo com as necessidades; nesse sentido, falou-lhes o príncipe Vasilchikov, comandante do corpo da guarda. Em 9 de janeiro, não se autorizava a multidão a aproximar-se a cinquenta passos, em 10, a 300 passos. (V. I. Nevski. O 9 de Janeiro. Os anais vermelhos, em russo). (N. do A.). (retornar ao texto)

(9) Eram assim explicados pelos manuais czaristas aqueles tempos brumosos. (N. do A.). (retornar ao texto)

(10) Fugiu para o estrangeiro, depois de ter passado alguns dias oculto em Petrogrado. Regressou à Rússia, após a greve de outubro, entrando novamente ao serviço do governo. Sendo desmascarado por seus ex-companheiros, foi executado como provocador. (N. do A.). (retornar ao texto)

(11) “Dezembristas”: os revolucionários, principalmente oficiais do exercito, que em dezembro de 1823 se revoltaram em Petrogrado, sob a bandeira da Constituição. A orientação de Pestel — um dos chefes mais eminentes do movimento — era puramente republicana. O movimento, que tinha ramificações em diversos pontos do país, pode ser considerado como a primeira tentativa de revolução burguesa, na Rússia. (retornar ao texto)

(12) Grande industrial têxtil, que, em mais de uma ocasião, prestou apoio financeiro aos partidos operários revolucionários. Pertenceu á extrema direita do Conselho de Estado (1851-1919). (retornar ao texto)

(13) Esta teoria pertencia a Lavrov, um dos mais notáveis publicistas populistas (1823-1900). (retornar ao texto)

(14) Nenhum navio de guerra — segundo a convenção estipulada em 1841 — exceção feita aos turcos, podia passar pelo Bósforo e pelos Dardanelos. (N. do A.). (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015