Os Khrushchevistas

Enver Hoxha


4. A pedra de toque


Khrushchev está de olho na Iugoslávia. O primeiro sinal do flerte: a carta soviética de junho de 1954; Khrushchev culpa a Cominform pela traição dos dirigentes iugoslavos. Intensa troca de correspondência cordial entre Krushchev e Tito. Khrushchev decide reabilitar os renegados. Nossa oposição clara: as cartas de maio e junho de 1955. Conversa com o embaixador Levichkin: “Como essas decisões podem ser tomadas tão levianamente e de forma unilateral?” – Convites insistentes para ir à União Soviética nas férias. Reunião com Suslov. Mikoyan telefona à meia-noite: “Encontre Svetozar Vukmanović-Tempo, resolva suas divergências”. A reunião com S.V. Tempo.

Todas essas coisas que ocorreram na União Soviética após a morte de Stálin preocuparam nosso partido e seus dirigentes. É claro que, naquele período, especialmente antes do 20º Congresso, nossas suspeitas se baseavam em fatos isolados, que os dirigentes soviéticos encobriam com torrentes de demagogia. No entanto, as posições que mantinham em suas reuniões conosco e suas ações no país e no exterior nos deixavam desconfiados. Os flertes de Khrushchev com Tito foram particularmente desagradáveis para nós. De nossa parte, continuamos a combater o revisionismo iugoslavo titoísta com a maior severidade e defendemos as posições marxista-leninistas justas de Stálin e do Cominform em relação aos dirigentes revisionistas iugoslavos. Fizemos isso não apenas enquanto Stálin estava vivo, mas também no período de transição pelo qual a União Soviética passou após a sua morte, quando Khrushchev triunfou com seu Golpe de Estado e fez a lei, bem como após a queda de Khrushchev. E essa é a posição que sempre manteremos em relação ao revisionismo iugoslavo, até que ele seja completamente destruído ideológica e politicamente.

Observamos cada ação de Khrushchev com grande vigilância e atenção. Por um lado, vimos que, de modo geral, nada estava sendo dito contra Stálin, na verdade, o que se falava era da unidade do campo socialista liderado pela União Soviética. Khrushchev falava contra o imperialismo americano em termos “fortes” e fazia algumas críticas superficiais ao titoísmo, enquanto, por outro lado, ele agitava a bandeira branca da reconciliação e da submissão a eles. Nessa situação, seguimos o curso da amizade com a União Soviética, lutamos para salvaguardar e fortalecer essa amizade, e isso não era uma tática, mas uma questão de princípios. No entanto, não permitimos que os erros e os desvios de linha não fossem criticados quando apareciam.

Para o nosso partido, a luta contra o imperialismo americano e o titoísmo iugoslavo era uma pedra de toque para avaliar as verdadeiras posições de Khrushchev e dos khrushchevistas com um olhar marxista. De fato, Khrushchev tagarelava contra o capitalismo e o imperialismo americano, mas não gostávamos daquelas meias dúzias de reuniões diárias e priyoms(1) com todos os tipos de senadores, multimilionários e empresários americanos. Khrushchev tornou-se um palhaço que se apresentava o dia inteiro em todos os dias da semana, rebaixando a dignidade e a autoridade da União Soviética.

— Estamos com o pé no pescoço do inimigo estrangeiro, ele não se move, podemos transformá-lo em cinzas com bombas atômicas. — gabava-se ele em discursos de manhã até tarde da noite. Sua tática era criar euforia dentro do país, aumentar o prestígio de sua camarilha nos países de democracia popular e, independentemente de suas palavras bombásticas, dar a entender aos americanos e à reação mundial que “não somos mais a favor da revolução proletária internacional. Nós, na verdade, queremos conciliar com vocês, nós precisamos que vocês entendam que estamos mudando nossas cores e fazendo grandes transformações em nossa direção. Teremos dificuldades em fazer essas transformações, portanto, vocês devem nos ajudar de uma forma ou de outra”.

Quanto à questão iugoslava, que estava mais do que clara para nós, – e é por isso que não mudamos de posição –, os khrushchevitas mudavam e mudavam, e iam e vinham como a maré. Os khrushchevistas às vezes mordiam e as vezes assopravam os dirigentes iugoslavos. Quando mordiam os titoístas, os revisionistas soviéticos diziam que estávamos certos; por outro lado, quando assopravam, tentavam nos fazer abrandar nossa linha em relação aos revisionistas titoístas.

Khrushchev tinha os olhos fixos na direção da Iugoslávia e a queria a todo custo, se não a subjugar, alinhá-la ao seu lado. É claro que, em Tito, ele estava procurando um aliado ideológico e um líder que pudesse ter sob suas asas como o “irmão mais velho” que era. Em outras palavras, Tito era muito querido por Khrushchev, porque foi o primeiro a atacar Stálin e a rejeitar o marxismo-leninismo. Nesse sentido, eles estavam totalmente de acordo, mas enquanto o chefe de Belgrado agia abertamente, Khrushchev queria manter seu disfarce. Na arena internacional, Tito havia se tornado o “comunista” querido pelo imperialismo americano e pelo capitalismo mundial, que lhe concedia créditos e ajuda para que ele latisse contra o regime soviético e o Estado soviético e, ao mesmo tempo, vendesse a Iugoslávia ao capital estrangeiro.

Khrushchev queria manobrar Tito para o seu lado, para que esse agente americano em Belgrado baixasse um pouco a bola contra o regime soviético e reduzisse a grande energia que estava demonstrando para minar a influência soviética nos países de democracia popular, para disseminar a influência de suas ideias revisionistas khrushchevistas na Iugoslávia e para restringir os dirigentes de Belgrado em sua orientação para o modo de vida ocidental e o capital americano.

Tito, por sua vez, há muito tempo já sonhava em mudar o epicentro da liderança desse suposto “comunismo” de Moscou para Belgrado, e que Belgrado substituísse Moscou no leste e sudeste da Europa. O esquema de Tito não avançava desde o momento em que ele se viu diante de Stálin, do qual detectou e atacou severamente o trabalho obscuro desse renegado. Com a ajuda dos americanos, Tito retomou esse plano original quando viu que Nikita Khrushchev e sua quadrilha estavam destruindo o trabalho de Lênin e Stálin.

Entre esses dois chefes do revisionismo moderno, Khrushchev e Tito, um confronto longo e complexo se desenvolveria, às vezes gentil, às vezes duro, às vezes com ataques e ofensas, e às vezes com elogios e sorrisos. Porém, independentemente dos discursos e das palavras de ordem supostamente marxistas, independentemente das promessas de Khrushchev de que estava lutando para convencer Tito das justezas das posições marxista-leninistas, tanto quando brigavam quanto quando se abraçavam, nenhum dos lados agia com base ou no interesse do marxismo-leninismo. O anticomunismo continuou sendo a base de suas relações; cada um desses dois irmãos siameses revisionistas deveria fazer o máximo para subjugar o outro em seus próprios interesses individuais, a partir da ideologia anticomunista.

Nosso partido deveria acompanhar esse processo, passo a passo, com a maior vigilância. À medida que esse processo se desenvolvesse, nosso partido ia se convencendo cada vez mais do que Khrushchev e os khrushchevistas eram na realidade e do que eles representavam, tanto na União Soviética, quanto no movimento comunista e operário internacional.

Recebemos o primeiro sinal de alerta de que os novos dirigentes soviéticos estavam mudando o curso e indo na direção do revisionismo iugoslavo a partir de junho de 1954.

Durante os dias de nossa estada em Moscou, os dirigentes soviéticos nos entregaram uma longa carta, assinada por Khrushchev, endereçada aos comitês centrais dos partidos irmãos, na qual nos informavam sobre as conclusões a que os dirigentes soviéticos haviam chegado sobre a questão iugoslava. Embora a carta fosse datada de 4 de junho, e nós estivéssemos em Moscou há vários dias e, de fato, em 8 de junho, tivéssemos concluído as conversas oficiais com os principais líderes soviéticos, eles nem sequer nos mencionaram o problema muito importante que levantaram nessa carta. Aparentemente, Khrushchev, que estava bem ciente de nossa posição resoluta e inabalável em relação aos traidores de Belgrado, queria agir com cautela e gradualmente em relação a nós.

Distorcendo a verdade histórica, Khrushchev e sua quadrilha chegaram à conclusão de que o rompimento da Iugoslávia com o campo socialista e o “isolamento da classe trabalhadora iugoslava das fileiras do movimento operário internacional” foram inteiramente devidos ao “rompimento das relações entre o SKJ e o movimento comunista internacional” em 1948. De acordo com eles, a posição adotada em 1948 e 1949 em relação ao partido iugoslavo foi errada, porque essa posição supostamente “forçou os círculos dirigentes da Iugoslávia a fazer aproximações com os EUA e a Grã-Bretanha” (!), a concluir o “acordo político-militar com a Grécia e a Turquia” (o Pacto dos Bálcãs), a fazer uma “série de concessões sérias ao capitalismo”, a avançar “em direção à restauração do capitalismo”, etc. Em resumo, de acordo com Khrushchev, como a Cominform tomou uma posição severa em relação à Iugoslávia, esta última, por ressentimento ou por desejo, foi se vender ao imperialismo, como a noiva que foi dormir com o noivo para irritar a sogra.

De acordo com essa lógica de Khrushchev, quando o PTA entrou em confronto aberto e rompeu o contato com o revisionismo khrushchevista, nós teríamos que nos vender e vender toda a Albânia ao imperialismo, pois, caso contrário, não poderíamos existir! E ouvimos isso mais tarde da boca do próprio Khrushchev quando ele nos acusou de nos vendermos “ao imperialismo por 30 moedas de prata”!

Isso não passava de uma lógica antimarxista e capitalista. Nosso partido se opôs heroicamente ao revisionismo khrushchevista, assim como se opôs ao revisionismo iugoslavo anteriormente, e assim como lutou resolutamente contra qualquer outra variante do revisionismo, mas não se vendeu e nunca se venderá ao imperialismo ou a qualquer um, porque enquanto um partido se considerar e se respeitar como um genuíno partido marxista-leninista, quaisquer que sejam as condições e situações em que se encontre, ele nunca se deixará comprar ou vender, mas seguirá resolutamente seu curso, o curso da luta intransigente contra o imperialismo, o revisionismo e a reação.

Portanto, mesmo que os dirigentes iugoslavos tivessem sido injustamente condenados em 1949, como Khrushchev afirmava, nada poderia permitir ou justificar sua queda no colo do imperialismo. Pelo contrário, o fato de ela ter fortalecido ainda mais seus contatos com o imperialismo e a reação mundial provou claramente que Stálin, o Partido Comunista da União Soviética, a Cominform, nosso partido e todos os outros partidos estavam certos quando a denunciaram e a condenaram.

Porém, Nikita Khrushchev, consistente em sua decisão de reabilitar os revisionistas de Belgrado, em sua carta fez a acusação contra a Cominform, obviamente sem mencioná-la pelo nome, de que em 1948 e 1949, “todas as possibilidades não foram exploradas até o fim [...] não foram feitos esforços para resolver os problemas e desacordos não resolvidos”, algo que, segundo ele, “teria evitado que a Iugoslávia passasse para o campo inimigo”. Na carta que nos entregou, Nikita Khrushchev chegou a dizer abertamente que “muitos dos problemas que serviram para causar diferenças entre o Partido Comunista da União Soviética e o Partido Comunista da Iugoslávia [...] não constituíam motivos sérios de disputa e até mesmo os mal-entendidos que surgiram poderiam ter sido resolvidos”. Nada poderia ter agradado mais a Tito e à dirigentes iugoslavos! Com uma única pincelada, Khrushchev anulou os principais problemas de princípios que haviam sido a base da luta contra o revisionismo iugoslavo, descreveu-os como “razões não sérias” e “mal-entendidos” e, portanto, pediu perdão aos traidores por terem sido supostamente atacados por trivialidades!

Mas quem foi o culpado por esses “mal-entendidos”? Em sua carta, Khrushchev não atacou nominalmente o Cominform, Stálin, o Partido Comunista da União Soviética ou os outros partidos que apoiaram as decisões da Cominform de 1949. Aparentemente, ele considerou que ainda era muito cedo para fazer esses ataques. E os culpados foram Beria, entre os soviéticos, que, com suas ações, causou “insatisfação justificável entre os dirigentes iugoslavos”, e Djilas, entre os iugoslavos (que, nesse meio tempo, havia sido condenado por Tito), que “propagava abertamente pontos de vista liquidacionistas”, de que era “um partidário ativo da ideia de que a Iugoslávia deveria virar seus olhos aos países ocidentais” etc.!

Assim, de acordo com Khrushchev, o problema acabou sendo muito simples. O rompimento com a Iugoslávia não se baseava em motivos reais, mas em pretextos fabricados, de modo que “nós os prejudicamos por nada e os culpados foram encontrados: Beria, do nosso lado, e Djilas, do outro. Agora nós dois condenamos esses inimigos, portanto, tudo o que temos a fazer é nos abraçar, fazer as pazes e esquecer o passado”.

Como esse palhaço fazia malabarismos com as questões! Mas nós, comunistas albaneses, que lutamos com unhas e dentes contra a quadrilha de traidores de Belgrado por mais de dez anos, que experimentamos suas maldades e resistimos corajosamente a elas, não estávamos e nunca poderíamos estar de acordo com essa solução do problema iugoslavo. Entretanto, ainda estávamos em 1954. O ataque aberto a Stálin ainda não havia começado. Nada de ruim sobre ele havia sido dito abertamente, Khrushchev ainda estava usando uma demagogia muito astuta e habilmente disfarçada, e aos nossos olhos a União Soviética mantinha as cores da época de Stálin, embora um pouco desbotadas. Além disso, nessa carta, que nos perturbou profundamente, Khrushchev jurou que tudo o que ele fazia era “a favor do marxismo-leninismo e do socialismo”, que, em sua nova visão do problema iugoslavo, os dirigentes soviéticos e os outros partidos irmãos não tinham outro objetivo a não ser “arruinar os planos dos imperialistas anglo-americanos e utilizar todas as possibilidades para fortalecer sua própria influência sobre o povo da Iugoslávia”, “exercer uma influência positiva sobre a classe trabalhadora iugoslava” etc. Ele acrescentou, também, que os esforços do lado soviético e de outros partidos e países de democracia popular serviriam como uma nova etapa para testar “o quanto os dirigentes iugoslavos estão prontos e determinados a seguir o caminho do socialismo”.

Todas essas coisas nos tornaram muito cautelosos e prudentes em nossa resposta. Durante os dias em que estivemos em Moscou, o camarada Hysni, os outros camaradas da delegação e eu discutimos longamente o problema e, por fim, demos nossa resposta por escrito aos dirigentes soviéticos.

Nessa resposta, sem nos opormos abertamente a Khrushchev, enfatizamos nossa posição permanente em relação à direção revisionista de Belgrado, destacamos a importância das decisões do Cominform de 1948 e 1949, e não permitimos qualquer alusão à reavaliação da posição adotada anteriormente em relação aos desvios de linha dos dirigentes iugoslavos.

Em nossa resposta por escrito, rebatemos a ideia de Khrushchev de que o “rompimento das relações levou os dirigentes iugoslavos para o colo do imperialismo”, com a tese de que foram os próprios dirigentes iugoslavos que traíram o marxismo-leninismo e colocaram seu povo e sua pátria no caminho da escravidão e sob o comando dos imperialistas anglo-americanos, que foi a linha antimarxista deles o fator que prejudicou gravemente os interesses vitais dos povos da Iugoslávia, que foram eles que tiraram a Iugoslávia do campo socialista, que transformaram o partido iugoslavo em um partido burguês e o isolaram do movimento internacional do proletariado.

Ao mesmo tempo em que apontamos claramente essas verdades, continuamos a enfatizar que concordávamos que os partidos comunistas deveriam fazer esforços para ajudar a resgatar os povos da Iugoslávia da escravidão e da pobreza, mas enfatizamos mais uma vez que, em nossa opinião, os dirigentes iugoslavos haviam percorrido um longo caminho em sua estrada antimarxista, o caminho da submissão aos imperialistas americanos e britânicos.

Com isso, dissemos indiretamente a Khrushchev que não concordávamos com as esperanças e ilusões que ele nutria em relação aos dirigentes iugoslavos e especialmente em relação ao “camarada Tito”, como ele começou a chamá-lo. Expressei essas opiniões a Khrushchev também na conversa seguinte que tive com ele, em 23 de junho de 1954. No entanto, ele fingiu não notar as diferentes posições que cada um de nós adotou em relação ao problema da Iugoslávia. Talvez ele não quisesse criar conflitos conosco nas primeiras reuniões oficiais que tivemos com ele. Talvez ele tenha nos menosprezado e não tenha se preocupado com nossa oposição. Lembro-me de que ele estava todo eufórico e falava com a segurança de alguém que tem tudo funcionando sem problemas. Ele tinha acabado de voltar de uma visita relâmpago à Tchecoslováquia (ele era mestre em todo tipo de visita: relâmpago, incógnita, oficial, amigável, muito divulgada, secreta, diurna, noturna, anunciada e não anunciada, curta, longa, com sua suíte ou completamente sozinho etc.).

— Em Praga, — disse-me ele, — retomei o problema da Iugoslávia com representantes de vários partidos irmãos que estavam lá. Todos concordaram plenamente comigo e consideraram os esforços do nosso partido muito importante.

Então, olhando-me diretamente nos olhos, acrescentou:

— Recentemente, nós, os húngaros, os búlgaros, os romenos e outros, demos bons passos em direção à normalização das relações com a Iugoslávia...

Percebi por que ele enfatizou isso. Ele queria me dizer: “Veja, estamos todos de acordo; portanto, vocês albaneses também devem se juntar a nós”.

Disse-lhe brevemente que há uma longa história de nossas relações com o partido iugoslavo e afirmei que os próprios dirigentes iugoslavos era a culpada por arruinar nossas relações, e que se as relações entre o Estado albanês e o iugoslavo estavam em baixa, isso não era culpa nossa, mas uma consequência das incessantes posições e ações antimarxistas e antialbanesas dos dirigentes em Belgrado.

Konechno, konechno!(2) — disse Khrushchev dando um pulo e eu entendi que ele não queria que eu prosseguisse com a discussão desse problema.

— Tomamos todas as medidas, — disse ele, — amanhã, nosso embaixador na Iugoslávia se encontrará com Tito em Brioni. Acreditamos que há grandes possibilidades de alcançarmos nosso objetivo. Se nada for alcançado, — concluiu — ainda temos outros métodos.

Foi assim que começou o romance do caso de amor entre Khrushchev e Tito. Alguns dias depois, Khrushchev entregou suas opiniões ou “conclusões” sobre a “nova análise” do problema iugoslavo por escrito a Tito. Este último, é claro, estava se regozijando com o fato de que as coisas estavam se desenvolvendo com Khrushchev exatamente como ele havia imaginado, mas, como a velha raposa astuta que era, não se mostrou tão tolo a ponto de se jogar nos braços de Khrushchev. Pelo contrário, Tito planejou e trabalhou para garantir que Khrushchev, que havia sido o primeiro a recuar, também fosse o primeiro a implorar abertamente por seu perdão em Belgrado. Além disso, Tito estava atolado até o pescoço na lama do imperialismo, com as mãos e os pés atados e, portanto, se ele dissesse alguma palavra sobre “socialismo” e “marxismo”, teria de fazê-lo apenas na medida em que fosse permitido por seus senhores ocidentais, principalmente os imperialistas americanos. Depois de deixar Khrushchev em banho-maria por algum tempo, a fim de tocar as cordas que estavam desafinadas, Tito finalmente respondeu a ele em meados de agosto de 1954, também por escrito.

A essência da carta do revisionista em Belgrado era mais ou menos essa: “Fico feliz que você, Nikita Sergeyevich, esteja provando ser um homem razoável e de mente aberta, mas vá um pouco mais longe, defenda mais claramente o novo curso de reconciliação e abraços. Nós, iugoslavos, concordamos que devemos nos reconciliar... — diria Tito a Khrushchev, — mas, como o senhor sabe, nós nos aproximamos de novos amigos com os quais temos laços fortes e profundos, portanto, a reconciliação com o senhor ‘deve se desenvolver na direção que corresponda à nossa política de cooperação internacional’, ou seja, os laços dos iugoslavos com o imperialismo não devem ser prejudicados, mas sim fortalecidos”.

Da mesma forma, em tom ditatorial, Tito não deixou de estabelecer a Khrushchev uma série de outras condições para suas futuras relações:

Em primeiro lugar, Tito exigiu que o lado soviético trabalhasse mais para eliminar os “elementos negativos” e remover os obstáculos que haviam exercido influência sobre a ruptura em 1948 e, obviamente, com isso o “mestre” em Belgrado estava exigindo abertamente que toda a linha correta e baseada em princípios seguida pela Cominform, por Stálin e pelos outros partidos comunistas em 1948 fosse reavaliada.

Em segundo lugar, a reconciliação que se aproxima, ditada por Tito, não deve implicar em “completa unanimidade em nossa avaliação e posição em relação aos acontecimentos da conjuntura”, portanto, vamos nos reconciliar, mas que cada um de nós aja por conta própria, de acordo com suas próprias ideias.

Em terceiro lugar, o caminho que eu sigo e o caminho que você segue para a construção do “socialismo” é uma questão que cabe a cada um de nós decidir e não deve influenciar a normalização das relações; portanto, eu construirei um “socialismo específico” e você deve aceitar isso sem qualquer problema.

Em quarto lugar, as causas do conflito, diria Tito, não são nem Beria nem Djilas. As causas são mais profundas, portanto, vocês, soviéticos e seus aliados, devem abandonar completamente a linha da época de Stálin, abandonar seus princípios anteriores, porque dessa forma as verdadeiras causas do conflito são automaticamente superadas.

Por fim, Tito rejeitou a proposta de Khrushchev de uma reunião bilateral de alto nível, condicionando-a “à obtenção de sucessos preliminares na direção da normalização”. A mensagem era bem clara: se quiser se encontrar comigo e chegar a um acordo, você deve dar mais passos no caminho que estabeleceu, deve agir de forma mais rápida e ousada na União Soviética, em outros países e partidos, deve divulgar e estender esse “novo” caminho, porque por enquanto você ainda se mantém no seu antigo caminho.

E Khrushchev, às vezes aparentemente ressentido e às vezes entusiasmado em suas ações, começou a se submeter e a aplicar zelosamente as condições e ordens de Tito.

Entre nós, que acompanhamos esse processo com atenção e preocupação, aumentaram as suspeitas de que essas posições estavam levando a União Soviética a um rumo antimarxista. Dia após dia, estávamos cada vez mais convencidos de que Khrushchev estava encobrindo um jogo diabólico com suas palhaçadas. Vimos que ele estava diminuindo o prestígio do PCUS e do Estado soviético ao se ajoelhar diante de Tito. Observamos isso com pesar, mas, afinal de contas, a melhoria das relações entre os soviéticos e os iugoslavos era um problema interno deles e não tínhamos motivos para nos opor a isso. No entanto, não concordamos e nunca poderíamos concordar com seus esforços para apagar o passado e tratar as causas e os motivos da condenação dos revisionistas iugoslavos como algo muito diferente do que eram de fato. Da mesma forma, não poderíamos concordar em nos tornar parceiros de Khrushchev nessa duvidosa e perigosa aposta ideológica e política. O que os romenos, os húngaros e os búlgaros faziam era assunto deles. De nossa parte, não iríamos abraçar e fazer as pazes com os titoístas.

Além de suas próprias convicções revisionistas, Khrushchev foi, sem dúvida, pressionado por Tito a dar esse passo antimarxista. Tito não queria se ajoelhar diante de Khrushchev e, por isso, persistiu em sua exigência de que Khrushchev viesse e se ajoelhasse diante dele em Belgrado, que fizesse uma autocrítica em Canossa (Belgrado). E foi isso que aconteceu. Depois de mais ou menos um ano de contatos secretos e públicos por meio de enviados especiais, depois de uma intensa e muito íntima troca de correspondências entre o “camarada Khrushchev” e o “camarada Tito”, no final, em abril de 1955, Tito enviou a boa notícia a seu novo namorado de que estava pronto para o casamento e o convidou a realizar a “cerimônia” em um “navio no Danúbio ou, se você concordar, em Belgrado. Em nossa opinião”, — continuou o kralj(3) de Belgrado, — “a reunião deve ser aberta e pública”. Khrushchev mal pôde esperar para correr para Belgrado, onde beijou e abraçou Tito, fez uma autocrítica e, “resolutamente”, eliminou os “acúmulos do passado” e inaugurou a “época de amizade entre os dois povos e os dois partidos”.

Nosso partido condenou a ida de Khrushchev a Belgrado e, especialmente, sua decisão de limpar a suja imagem de Tito. Apenas dois ou três dias antes de partir para Canossa, Khrushchev nos informou sobre o passo que estava prestes a dar, mas já esperávamos isso, porque as águas nas quais Khrushchev havia mergulhado estavam fadadas a levá-lo para aquele moinho. Ir ou não ir a Belgrado era problema dele, que fizesse o que quisesse. O que nos revoltou e perturbou profundamente foi o anúncio que ele fez na mesma carta de que havia decidido anular a decisão do Cominform de novembro de 1949, como se fossem injustas, em conexão com a condenação dos dirigentes iugoslavos, para comunicar essa nova decisão a Tito e publicar um novo comunicado sobre ela no órgão Pela Paz Duradoura, pela Democracia Popular, Nesse comunicado, Khrushchev disse que os partidos comunistas e dos trabalhadores, que eram membros da Cominform, haviam supostamente revisado a questão da 3ª Resolução da reunião da Cominform sobre o “problema iugoslavo” adotada em novembro de 1949, e haviam decidido que as acusações contidas nessa resolução contra a direção do Partido Comunista Iugoslavo (SKJ) deveriam ser consideradas sem fundamento, que a resolução da Cominform sobre a questão iugoslava deveria ser anulada.

Escrevemos uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética sobre isso e protestamos veementemente. Tal decisão sobre um inimigo do comunismo internacional, que havia sido condenado conjuntamente por todos os partidos, não poderia ser tomada unilateralmente pelo Partido Comunista da União Soviética sem consultar os outros partidos, inclusive o nosso. Os outros partidos se submeteram à decisão de Khrushchev e ao desejo de Tito de que, depois de Khrushchev, os líderes dos partidos do campo socialista fossem a Belgrado, beijassem a mão de Tito e implorassem seu perdão. Dej e companhia foram até lá, mas nós não. Continuamos a luta contra os revisionistas. Foi em vão que Levichkin, o embaixador soviético em Tirana, veio e tentou nos convencer a retirar nossa oposição.

Recebi Levichkin e, mais uma vez, apresentei a ele os princípios que havíamos escrito na carta à dirigentes soviéticos.

Entre outras coisas, eu disse:

— O Partido Comunista da União Soviética nos ensinou a expressar nossa opinião aberta e sinceramente, como internacionalistas, sobre qualquer questão que tenha a ver com a linha do partido. O Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética nos informou com antecedência e pediu nossa opinião também sobre todas as questões relacionadas à nossa política comum em relação à Iugoslávia. Estudamos cuidadosamente as opiniões dos dirigentes soviéticos, expressamos nossa opinião sobre esses problemas e, como sabem, concordamos que devemos nos esforçar para melhorar as relações com a Iugoslávia.

— Mas em sua resposta de ontem você se opõe à nova medida do camarada Khrushchev. — disse Levichkin.

— Sim, — eu disse, — e temos motivos para isso. Achamos que, em relação à questão da Iugoslávia, há muitas diferenças entre o conteúdo das cartas anteriores dos dirigentes soviéticos e o da última carta.

— A que diferenças você se refere? — perguntou Levichkin. — Acho que a visão de nosso partido não mudou.

— Vejamos, — disse eu, e peguei as cartas dos dirigentes soviéticos. — Aqui, por exemplo, na carta de 4 de junho de 1954, sua direção escreve: “Reexaminando os materiais que têm a ver com a história do rompimento das relações entre o Partido Comunista Iugoslavo (SKJ) e os partidos comunistas e operários, bem como a subsequente saída da Iugoslávia do campo democrático, o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) sustenta que o núcleo dirigente do SKJ, sem dúvida, fez sérios desvios do marxismo-leninismo, desviou para as posições nacionalistas burguesas e lançou ataques contra o Estado soviético. Os dirigentes do SKJ também estendem sua política hostil, em relação à União Soviética, aos países de democracia popular, em relação aos quais, até antes do rompimento das relações, mantiveram uma posição de alarde e desdém, enquanto buscavam para si o reconhecimento de prioridades e méritos especiais que não possuíam.

— Essa carta também enfatiza, — eu disse a Levichkin, — que a crítica que os partidos comunistas e operários fizeram aos desvios nacionalistas e outros desvios do marxismo-leninismo dos dirigentes do Partido Comunista Iugoslavo foi necessária e completamente justa. Ela contribuiu para preparar os partidos comunistas e operários do ponto de vista marxista, para aguçar a vigilância dos comunistas e para sua educação no espírito do internacionalismo proletário.

— Isso é verdade... — murmurou Levichkin.

— Mesmo após os esforços iniciais dos dirigentes soviéticos para melhorar as relações com a Iugoslávia, — continuei, — os dirigentes iugoslavos persistiram em seu antigo curso e posição e, há apenas dois ou três meses, em fevereiro deste ano, os camaradas soviéticos nos escreveram que “a direção do partido iugoslavo está seriamente envolvida com o campo capitalista em suas relações políticas e econômicas”.

— Isso é verdade, isso é verdade! — repetiu Levichkin em voz baixa.

— Então, como a opinião e a posição dos dirigentes soviéticos em relação a esses problemas tão importantes mudaram de forma tão surpreendente e repentina? — perguntei. — E como eles podem tomar tão prontamente uma decisão unilateral como essa de descartar a decisão de 1949 da Cominform?

— Nosso Birô Político discutiu os problemas levantados em sua carta de 23 de maio com grande atenção e preocupação e, em nossa resposta, expressamos aberta e sinceramente uma série de opiniões ao camarada Khrushchev.

— Em primeiro lugar, achamos que a linha geral, o conteúdo principal e o princípio da Resolução da Reunião da Cominform de novembro de 1949 estão corretos e o conteúdo dessa resolução não deve ser considerado separadamente da resolução de julho de 1948. A experiência diária do nosso partido em nossas relações com os iugoslavos, tanto antes do rompimento com eles em 1948 quanto até hoje, confirma essa justeza.

— Em segundo lugar, o procedimento proposto para o cancelamento da Resolução de novembro de 1949 da Reunião do Cominform não nos parece correto. Parece-nos que o tempo muito curto concedido aos partidos comunistas e dos trabalhadores, membros da Cominform, para expressarem seus pontos de vista em relação ao conteúdo de sua carta é inadequado para decidir uma questão tão importante como a que foi levantada na carta. Em nossa opinião, uma decisão tão precipitada sobre uma questão de princípio de grande importância, sem antes fazer uma análise completa, juntamente com todas as partes interessadas nessa questão e, além disso, a publicação dessa decisão na imprensa e seu anúncio nas conversações de Belgrado, não seria apenas prematura, mas causaria sérios danos à orientação geral em relação à Iugoslávia.

— No que diz respeito ao nosso Partido do Trabalho, há sete anos ele vem lutando para implementar sua linha geral em relação à Iugoslávia, que se baseia nas resoluções da Cominform e foi endossada pelo 1º Congresso do nosso partido. Estamos convencidos de que a linha geral de nosso partido em relação às relações com a Iugoslávia está correta, mas mesmo que pensássemos por um momento que há algo a ser mudado nessa linha, para isso o congresso do partido teria de ser convocado, ou pelo menos uma conferência do partido, e a mudança só poderia ser feita depois de analisarmos minuciosamente a linha geral de todos os partidos comunistas e operários em relação à Iugoslávia, bem como as decisões e conclusões da Cominform.

— Portanto, — disse eu a Levichkin, concluindo, — propomos que as questões levantadas na recente carta dos dirigentes soviéticos sejam analisadas em uma reunião dos partidos que participam da Cominform, na qual nosso partido também poderia participar e dar sua opinião. Somente lá poderá ser tomada uma decisão conjunta sobre essa questão.

Levichkin, que havia ficado pálido ao me ouvir, tentou me convencer a mudar de opinião, mas quando viu minha insistência, recuou:

— Vou relatar o que você me disse para a direção do partido.

— Escrevemos tudo o que eu lhe disse em nossa carta ao camarada Khrushchev — concluí. — Mas repeti tudo para você também, para deixar claro o que nos levou a adotar essa posição.

Nossa oposição foi totalmente correta e dentro das normas marxista-leninistas de relações entre partidos. Estávamos bem cientes de quão corretas, fundamentadas e bem embasadas foram as análises e decisões da Cominform e do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética em relação ao problema da Iugoslávia durante os anos de 1948 e 1949. Quando foi tomada a decisão de condenar a atividade antimarxista dos dirigentes iugoslavos, nós não éramos membros da Cominform. No entanto, durante esse período, Stálin, o PCUS e os outros partidos que eram membros da Cominform frequentemente nos consultavam e ouviam atentamente o que tínhamos a dizer em relação às nossas relações com os dirigentes iugoslavos. Stálin e seus camaradas fizeram isso, não apenas porque nossos partidos eram irmãos e, de acordo com as normas leninistas, deveria haver uma ampla e exaustiva troca de opiniões, mas também devido ao importante fato de que, por causa dos vínculos especiais que tínhamos desde os anos de guerra com os dirigentes iugoslavos, tínhamos muito a dizer sobre eles.

Entre as muitas reuniões e consultas sobre esse problema, estava meu encontro incógnito com Vyshinsky em Bucareste, no qual Dej também estava presente. Lá, trocamos opiniões sobre a posição comum que deveríamos adotar em relação à atividade traiçoeira dos dirigentes iugoslavos. Os muitos argumentos e fatos incontestáveis que levei para essa reunião foram muito apreciados por Vyshinsky e Dej, que os descreveram como uma contribuição valiosa do nosso partido para um melhor conhecimento da atividade hostil e antimarxista dos líderes de Belgrado. Este não é o lugar para falar longamente sobre essa reunião, da qual tenho muitas lembranças. Menciono-a apenas para mostrar o grande cuidado e a sabedoria com que Stálin e o Cominform agiram naquela época nas análises que fizeram e nas decisões que tomaram.

Agora estava ocorrendo exatamente o contrário com Khrushchev e os outros líderes soviéticos. Justamente aqueles que agora estavam condenando a Cominform e Stálin por supostamente terem agido e julgado as questões de forma incorreta, estavam pisoteando com os dois pés as regras mais elementares das relações entre os partidos, estavam se colocando como mestres indiscutíveis que não se dignavam a buscar a opinião dos outros. Isso não poderia deixar de nos desanimar e preocupar.

Levichkin veio nos visitar várias outras vezes durante esses dias. Aparentemente, eles estavam exigindo urgentemente do centro que ele nos convencesse a desistir de nossas opiniões e nos reconciliar com as posições de Khrushchev. Esses foram momentos muito difíceis e graves. Pelo que pudemos ver, Khrushchev deve ter chegado a um acordo prévio com as direções de outros partidos sobre o que faria em Belgrado. Assim, nossa proposta de que a Cominform se reunisse para examinar o problema detalhadamente não foi ouvida. Depois de discutirmos longamente o assunto no Birô Político, decidimos que eu deveria convocar Levichkin mais uma vez para deixar clara a nossa posição para ele. Eu o encontrei em 27 de maio, um dos dias em que Khrushchev estava em Belgrado, e as coisas que eu disse a Levichkin também foram escritas em uma segunda carta para os dirigentes soviéticos. Mais tarde, Khrushchev usou essa nossa carta como um “argumento” para supostamente provar que estávamos errados em nossa primeira carta de 25 de maio e que, dois dias depois, supostamente fizemos uma “autocrítica” e “recuamos” de nossa opinião anterior. Mas a essência da verdade não é como Khrushchev e sua quadrilha disseram.

Tanto na reunião com Levichkin em 27 de maio quanto na segunda carta aos dirigentes soviéticos, explicamos mais uma vez por que estávamos em oposição aberta a eles nessa ocasião.

Nessa carta, enfatizamos novamente para os dirigentes soviéticos que, embora tivéssemos concordado e concordássemos que todos os esforços deveriam ser feitos para resolver as divergências de princípios com a Iugoslávia de forma marxista-leninista, ainda estávamos convencidos de que os dirigentes iugoslavos não reconheceriam seus graves erros nem abandonariam seu curso.

Fomos e continuamos a ser particularmente sensíveis à questão iugoslava e, especialmente, à atividade antimarxista da direção do Partido Comunista Iugoslavo, dissemos na carta, porque essa atividade hostil contra a União Soviética, os países de democracia popular e todo o movimento do proletariado foi realizada de forma especialmente feroz contra nosso partido e a soberania de nossa pátria.

Vendo o problema dessa forma, continuamos, quando lemos a parte de sua carta que diz que, eventualmente, poderia ser comunicado aos iugoslavos que a Resolução do Cominform de novembro de 1949 deveria ser revogada e que um comunicado sobre isso seria publicado no órgão Pela Paz Duradoura, pela Democracia Popular, ficamos profundamente chocados e dissemos que, se isso fosse feito, seria um erro muito grave. Consideramos que essa resolução não deveria ser revogada, pois isso refletiria uma validação e o desenvolvimento lógico da atividade hostil e antimarxista da direção do Partido Comunista Iugoslavo na prática.

É assim que raciocinamos: se essa resolução for anulada, tudo o que foi escrito nela será cancelado, e os julgamentos de Rajk na Hungria e Kostov na Bulgária, por exemplo, também serão anulados. Por analogia, o julgamento da quadrilha de traidores, chefiada por Koçi Xoxe e companhia, também deveriam ser anuladas. A atividade hostil da quadrilha de traidores de Koçi Xoxe teve sua origem e estava ligada ao trabalho antimarxista, liquidacionista e nacionalista burguês da direção do Partido Comunista Iugoslavo. A luta justa e baseada em princípios contra essa atividade hostil foi uma das orientações da linha de nosso partido em seu 1º Congresso. “Nunca nos afastaremos dessa linha correta” enfatizamos na carta. Por isso, pensamos que, se essa resolução for anulada como errada, não apenas a verdade será distorcida, mas também será criada uma situação grave para o nosso partido, haverá confusão, elementos antipartidários e inimigos serão incentivados a se tornarem ativos contra o nosso partido e Estado, bem como contra a União Soviética. Não podemos jamais permitir que tal situação seja criada.

Em seguida, dissemos à dirigentes soviéticos:

— Estamos em uma situação grave e lamentamos que, nesse ponto, não possamos ter a mesma opinião que vocês.

Essa era a essência do conteúdo de nossa segunda carta aos dirigentes soviéticos.

Se há algum espaço para usar a palavra “recuo” em relação a isso, a única coisa que fizemos foi não repetir a proposta de que uma reunião da Cominform deveria ser organizada primeiro. A essa altura, essa proposta não teria mais valor, porque Khrushchev havia transformado todo o caso em um fato consumado e havia partido para Belgrado. Por outro lado, embora expressássemos nossa opinião em defesa dos princípios, não podíamos nos manifestar abertamente contra os dirigentes soviéticos e os outros em um momento em que o problema ainda estava se desenvolvendo. Entretanto, tornamos nossa vigilância ainda mais aguçada e mantivemos nossos olhos ainda mais abertos. Para nós, tanto no passado quanto depois disso, a posição em relação aos revisionistas de Belgrado foi e ainda é a pedra de toque para provar se um partido está seguindo uma linha marxista sólida ou uma linha antimarxista errada. No futuro, colocaríamos Khrushchev e os khrushchevistas à prova.

Pouco tempo depois desse evento, no verão de 1955, recebi um convite insistente para ir “passar férias na União Soviética”.

Na época de Stálin, eu ia para lá a trabalho e muito raramente para tirar férias. Na época de Khrushchev, eles começaram a nos pressionar tanto para que fôssemos de férias que era difícil recusar, porque os soviéticos, por sua vez, colocavam a questão no plano político. No entanto, eu não gostava de ir porque, na verdade, não conseguia descansar lá e tudo demorava. Para ir a Moscou, tivemos de viajar oito dias de navio de Durrës a Odessa, e os navios (“Kotovsky” e “Chiatura”) não eram grandes e enrolavam muito. Eram necessários mais dois dias para a viagem de trem de Odessa a Moscou e um dia de avião de Moscou ao Cáucaso (para ir a Kislovodsk etc.), ou seja, uma viagem de onze dias em cada sentido, além de vários dias de reuniões, para que vocês possam ver que tipo de férias eram essas.

Uma vez em Moscou, começavam as reuniões com os dirigentes soviéticos, mas essas reuniões não eram mais agradáveis como as com Stálin. Agora elas eram realizadas, às vezes com raiva sufocada, às vezes com explosões abertas.

Foi o que ocorreu nessa ocasião. Assim que cheguei a Moscou, tive duas reuniões com Suslov.

Em suas primeiras palavras, ele me disse que falaríamos sobre o problema da Iugoslávia e enfatizou em um tom ditatorial:

— A direção do seu partido deve levar em conta essa questão com cuidado; ela não deve encarar o problema da Iugoslávia de forma rígida.

Não tirei meus olhos dele enquanto ouvia. Ao perceber meu descontentamento, ele recuou um pouco:

— Os erros deles continuam sendo erros, — disse ele, — mas nosso objetivo é nos tornarmos camaradas e promover a amizade com a Iugoslávia. Em nossa última reunião, nosso Comitê Central analisou mais uma vez nossas relações com a Iugoslávia, — continuou ele, — e daremos o relatório entregue pessoalmente a você, pois ele é ultrassecreto.

Ele ficou em silêncio por um momento, tentando avaliar a impressão que suas palavras estavam causando em mim, e depois continuou:

— O principal problema é que o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética examinou a questão iugoslava sob uma luz realista, tendo em mente o trabalho traidor de Beria, e fizemos uma autocrítica sobre isso. Nosso Comitê Central chegou à conclusão de que o rompimento das relações com a Iugoslávia foi um erro, ou seja, fomos precipitados.

— De que forma apressado?! — falei. — Naquela época, foram feitas análises minuciosas, longas e completas discussões foram realizadas e as verdadeiras causas ideológicas e políticas das divergências existentes foram descobertas.

— A principal causa desse rompimento, — continuou Suslov, — não foram as questões ideológicas, embora eles estivessem cometendo erros, e eles foram apontados abertamente para os iugoslavos. A principal causa está nas calúnias que foram feitas contra os dirigentes iugoslavos e na nossa falta de paciência. Os erros de princípio dos iugoslavos deveriam ter sido discutidos, respaldados por fatos e corrigidos. Isso não foi feito.

— De todos os fatos examinados, — continuou ele, — conclui-se que não há base alguma para dizer que os camaradas iugoslavos se desviaram e venderam a Iugoslávia, assim como não se conclui que a economia iugoslava dependa dos imperialistas.

— Perdoe-me, — eu disse, — mas não vamos voltar às coisas que analisamos e decidimos em 1948 e 1949. Vejamos apenas a sua correspondência com os dirigentes iugoslavos nos últimos dois anos. Não apenas em várias de suas cartas, mas os próprios iugoslavos admitem em suas cartas que criaram fortes vínculos com o Ocidente. O que devemos pensar agora de sua avaliação contrária sobre essas questões?

— Vários erros foram cometidos, mas eles devem ser examinados com cuidado, — disse Suslov, e começou a listar uma série de “argumentos” para me convencer de que os dirigentes iugoslavos não estavam, supostamente, em um caminho errado. Naturalmente, ele também tentou colocar a culpa em Beria e Djilas e nos esforços do imperialismo “para pender a Iugoslávia para seu lado”.

— Molotov também manteve uma posição muito sectária sobre esse problema. — continuou Suslov. — Ele cometeu erros individuais nas relações estatais com a Iugoslávia, insistindo que foram os camaradas iugoslavos que cometeram os erros. No entanto, o Comitê Central exigiu que Molotov provasse onde os iugoslavos haviam errado, e nós o criticamos severamente por sua posição. Por fim, ele também expressou sua solidariedade ao Comitê Central.

Comecei a falar e fiz uma apresentação detalhada de nossas relações com os dirigentes iugoslavos, desde os anos da Guerra de Libertação Nacional. Mencionei suas principais atividades como uma agência antialbanesa, que eles haviam empreendido e estavam empreendendo contra nós continuamente, e concluí dizendo:

— São esses e muitos outros fatos, um mais grave que o outro, que nos convencem de que os dirigentes iugoslavos não estiveram e não estão no caminho certo. No entanto, sempre fomos e continuamos a ser a favor do desenvolvimento normal das relações estatais com eles.

— Concordo, concordo! — disse Suslov. — Devemos agir com o coração aberto. Isso é do interesse do nosso campo; não podemos permitir que os imperialistas nos tirem a Iugoslávia.

No final dessa reunião, como se fosse de passagem, ele me disse:

— Nos últimos anos, vocês condenaram muitos inimigos, acusados de ligações com os iugoslavos. Dê uma olhada nos casos deles e reabilite aqueles que devem ser reabilitados.

— Nunca acusamos e condenamos ninguém por nada, — eu disse sem rodeios e, quando nos separamos, ele me instruiu a ser “mais amplo”.

Ficou claro por que eles me convidaram para passar férias. Entretanto, os khrushchevistas não se contentaram apenas com isso. Eles elaboraram planos diabólicos para obrigar nosso partido a seguir seu curso de conciliação com os revisionistas de Belgrado. Dessa vez, eles me colocaram em uma casa nos arredores de Moscou, que, como me disseram, havia sido a casa de Stálin. Era uma casa simples, todos os cômodos principais ficavam no andar térreo, inclusive nossa suíte, que era separada do hall de entrada por uma porta de vidro. À direita, ficavam a sala de jantar, o escritório e a sala de estar ou de recepção que, pelo que me lembro, tinha poucos móveis. À esquerda, passando por um corredor e uma sala com sofás ao redor das paredes, entrava-se na sala de cinema. O jardim externo havia sido negligenciado, havia muito pouca vegetação e flores. Não havia árvores para fazer sombra, mas eles haviam construído uma pequena besedka(4) semicircular com assentos, também semicirculares, presos aos pilares construídos ao redor da curva, onde as crianças brincavam. Ao lado da casa havia uma pequena horta. Uma noite, nessa casa, ouvimos uma batida forte na porta de vidro que dava acesso à nossa suíte. Minha esposa, Nexhmije, levantou-se rapidamente, pensando que nosso filho não estava bem, pois havia caído naquele dia e machucado a mão. Ela saiu, voltou imediatamente e me disse:

— É um dos oficiais da guarda, Mikoyan quer falar com você ao telefone.

Eu estava com sono e perguntei que horas eram.

— Meia-noite e meia. — disse Nexhmije.

Coloquei algo sobre os ombros e entrei no escritório para pegar o telefone. Mikoyan, do outro lado da linha, não me pediu perdão por me ligar depois da meia-noite, mas me disse:

— Camarada Enver, o camarada Svetozar Vukmanović-Tempo está aqui em Moscou e eu estive com ele até agora. Você o conhece e seria bom se vocês se encontrassem; ele está pronto para encontrá-lo amanhã.

Por um tempo, fiquei em silêncio ao telefone, enquanto Mikoyan, que não tinha intenção de perguntar, disse:

— Amanhã, então, você confirma? — em um tom como se ele estivesse dando uma ordem ao secretário do partido de um Oblast(5).

— Como eu poderia concordar com isso, camarada Mikoyan?! — eu disse. — Conversei com o camarada Suslov e expressei a opinião do nosso partido sobre a posição da Iugoslávia e de Tito.

Mikoyan começou a fazer um monólogo padrão sobre a “Iugoslávia socialista”, sobre Tito, que era “um bom sujeito”, sobre os erros de Beria e os erros que eles supostamente haviam cometido (a União Soviética e a Cominform), e então concluiu:

— Você deve dar esse passo, camarada Enver. Você conhece Tempo, converse com ele e tente resolver suas diferenças, porque isso é do seu interesse e do interesse do campo socialista. Você também deve ajudar a garantir que a Iugoslávia não vá para o campo imperialista... Então, você confirma, amanhã.

— Tudo bem, confirmo, amanhã, — respondi, cerrando os dentes de raiva. Voltei para a cama, mas estava tão enojado com essas manobras de bastidores e faits accomplis(6) que os khrushchevitas estavam tramando durante sua traição que não conseguia dormir. Encontrei Tempo duas vezes na Albânia durante a guerra e, nas duas vezes, brigamos porque ele era arrogante e um verdadeiro megalomaníaco. Ele fazia acusações infundadas contra nossa guerra e as pessoas que a lideravam, ou fazia propostas absurdas sobre a “Equipe dos Bálcãs”, sem mencionar como essa equipe deveria funcionar naquelas condições, quando podíamos nos comunicar de uma zona para outra dentro do país com dificuldade, e muito menos mencionar os motivos ocultos por trás da organização dessa “equipe”. O que eu deveria dizer à Tempo agora, depois de todas as coisas que Tito, Ranković, seus enviados Velimir Stoynić, Nijaz Dizdarević e seus agentes Koçi Xoxe e sua quadrilha haviam feito conosco? Temos de engolir isso também? Fiquei de um lado para o outro a noite toda, sem dormir, pensando no que deveria ser feito. Ainda não havia chegado o momento de acertar as contas com os revisionistas khrushchevistas.

No dia seguinte, nos encontramos com Tempo. Comecei a falar sobre as coisas que haviam acontecido.

— Que o passado seja passado, — disse ele e começou a falar sobre a situação na Iugoslávia.

Ele me disse que eles haviam progredido no setor industrial, mas que faltavam matérias-primas.

— Nossa agricultura está em um estado muito ruim, — disse ele, — estamos muito atrasados; portanto, achamos que devemos dedicar mais forças a ela. Os erros que cometemos na agricultura nos deixaram muito pressionados.

Ele continuou a me contar sobre as dificuldades que tiveram e disse que foram obrigados a aceitar ajuda dos países ocidentais a juros altos.

— Agora a União Soviética está nos ajudando e nosso acordo com os soviéticos está indo bem. — concluiu.

Eu também falei sobre o progresso que nosso país havia feito durante esse período e as dificuldades que tivemos e ainda temos. Falei sobre a comissão do lago Ohri, na qual as discussões estavam sendo arrastadas pelo lado deles, mas ele me disse que não sabia nada sobre isso porque “esses eram os planos dos macedônios”.

— No entanto, devemos analisar com mais cuidado a questão do lago Shkodër, onde os benefícios serão maiores para ambos os lados, especialmente para o seu lado. — acrescentou.

E foi assim que aconteceu a reunião que os soviéticos haviam marcado entre Tempo e eu. Depois dessa reunião, quando me encontrei com Mikoyan e Suslov, ambos me disseram:

— Você fez bem em se reunir com Tempo, quebraram o gelo...

De acordo com eles, a montanha de gelo criada entre nós e os revisionistas titoístas poderia ser quebrada com um encontro ou contato casual, mas essa não era a nossa opinião. Não haveria “degelo de primavera” no campo ideológico em nossas relações com a Iugoslávia e não tínhamos intenção de mergulhar nas águas turvas dos khrushchevistas e dos titoístas.