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No quarto mês da sua existência, o regime de Fevereiro já sufocava nas suas próprias contradições. Junho começou pelo Congresso panrusso dos sovietes que tinha por tarefa dar uma cobertura política à ofensiva na frente. O início da ofensiva coincidiu, em Petrogrado, com uma grandiosa manifestação dos operários e dos soldados, organizada pelos conciliadores contra os bolcheviques, mas que se transformou em manifestação bolchevique contra os conciliadores. A indignação crescente das massas trouxe, quinze dias mais tarde, uma nova manifestação que rebentou sem qualquer apelo de cima, conduziu a encontros sangrentos e inscreveu-se na história sob o nome de «Jornadas de Julho». Inserindo-se exactamente entre a Revolução de Fevereiro e a de Outubro, a meia-insurreição de Julho fechou a primeira e é de certa forma um ensaio geral da segunda. No meio das «Jornadas de Julho» terminaremos este volume. Mas antes de voltar aos acontecimentos cujo Petrogrado foi o palco em Junho, é indispensável de considerar mais perto os processos que tiveram lugar nas massas.
A um liberal que afirmava, no início de Maio, que mais o governo ia à esquerda, mais o país ia para a direita, Lenine respondeu:
«O «país» dos operários e dos camponeses pobres, asseguro-lhe, cidadão, está mil vezes mais à esquerda que os Tchernov e os Tseretelli, e cem vezes mais à esquerda que nós próprios. Quem viverá verá.»
Lenine considerava que os operários e os camponeses estavam «cem vezes» mais à esquerda que os bolcheviques. Isso podia parecer para o menos motivado: porque enfim os operários e os soldados apoiavam ainda os conciliadores e, em maioria, mantinham-se reservados em relação em relação aos bolcheviques. Mas Lenine cavava mais fundo. Os interesses sociais das massas, seu ódio e suas esperanças ainda procuram a sua própria definição. A conciliação era para elas uma primeira etapa. As massas eram infinitamente mais à esquerda que os Tchernov e os Tseretelli mas não se davam conta do seu próprio radicalismo. Lenine tinha também razão em dizer que as massas estavam mais à esquerda que os bolcheviques, porque o partido, na sua esmagadora maioria, ainda não tinha consciência da potência das paixões revolucionárias que ferviam nas entranhas do povo despertado. A revolta das massas era alimentada pela prolongação da guerra, por desespero económico e pela inacção perniciosa do governo.
A imensa planície euro-asiática tornou-se um país graças ao caminho de ferro. A guerra batia mais fortemente as vias férreas. Os transportes estavam cada vez mais desorganizados. O número de locomotivas em mau estado atingia, em certas linhas, até 50%. No Grande Quartel General, sábios engenheiros liam relatórios prevendo que dentro de seis meses os transportes por via férrea estariam completamente paralizados. Esses cálculos eram, conscientemente por uma boa parte, destinados a semear o pânico. Mas o desespero dos transportes tomava efectivamente proporções ameaçadoras, criando nas linhas engarrafamentos, desorganizando a circulação de mercadorias e mantendo a vida cara.
O abastecimento das cidades tornava-se cada vez mais difícil. O movimento agrários já tinha podido criar focos nas quarenta e três províncias. O afluxo de trigo ao exército e às cidades diminuía de maneira alarmante. Nas regiões mais férteis do país existiam ainda, na verdade, dezenas e centenas de milhões de libras de trigo excedente. Mas as operações de armazenamento aos preços com taxa incluída davam resultados completamente insuficientes; além disso, mesmo o grão armazenado chegava dificilmente aos centros, por causa das perturbações no serviço de transportes. A partir de Outono de 1916, a frente recebia em média cerca da metade do abastecimento previsto. A ração de Petrogrado, de Moscovo e de outros centros industriais não ultrapassava 10% do indispensável. Quase que não havia reservas. O nível da vida das massas urbanas oscilava entre a subalimentação e a fome. A formação do governo de coligação foi marcada pela proibição democrática de fazer pão branco. Desde então, passaram vários anos antes que o «pão francês» aparecesse de novo na capital. Faltava a manteiga. Em Junho, o consumo de açúcar foi limitado por normas determinas para todo o país.
O mecanismo do mercado, quebrado pela guerra, não foi substituído pela regulamentação do Estado à qual foram obrigados a recorrer os países capitalistas avançados e que permitiu à Alemanha de se manter durante os quatro anos da guerra.
Sintomas catastróficos de deterioração económica manifestaram-se a cada passo. A queda da produção das fábricas foi provocada independentemente do mau estado dos transportes, pelo desgaste extremo das ferramentas, pela insuficiência das matérias primas e dos materiais complementares, pela instabilidade da mão-de-obra, pelo financiamento irregular, enfim, pela incerteza geral. As maiores empresas continuaram a trabalhar para a guerra. As encomendas eram repartidas em dois ou três anos com antecedência. Então os operários recusavam-se a acreditar que a guerra tivesse que se prolongar. Os jornais comunicavam os números vertiginosos dos lucros da guerra. A vida encarecia. Os operários esperavam mudanças. O pessoa técnico e administrativo das fábricas agrupava-se em sindicatos e formulou as suas reivindicações; nesse meio predominavam os mencheviques e os socialistas-revolucionários. O regime das fábricas deslocava-se. Todos alicerces cediam.
As perspectivas da guerra e da economia geral escureciam, os direitos de propriedade tornavam-se incertos, os lucros baixavam, os perigos cresciam, os patrões perdiam gosto de produzir em condições de revolução. A burguesia no seu conjunto comprometia-se na via do derrotismo económico. As percas e prejuízos temporariamente sofridos, pelo facto da paralisia económica, eram, aos seus olhos, as falsas despesas da luta contra a revolução que ameaçava as bases da «cultura». Ao mesmo tempo a imprensa bem falante, a cada dia, acusava os operários de sabotar insidiosamente a indústria, de furtar os materiais, de queimar inconsideradamente o combustível para fazer obstrução. A falsidade das acusações ultrapassava todos os limites. E como era a imprensa de um partido que se encontrava à cabeça do governo de coligação, a indignação dos operários transpunha-se naturalmente sobre o governo provisório.
Os industriais não tinham esquecido a experiência da Revolução de 1905, na qual um lock-out bem organizado, com apoio activo do governo tinha não só quebrado a luta dos operários pelo dia de oito horas, mas prestou à monarquia um serviço inestimável pelo esmagamento da revolução. A questão do lock-out foi, ainda mais esta vez, examinada pelo Conselho dos congressos da indústria e do comércio, assim se chamava inocentemente o órgão de combate do cartel capital e sindicalizado. Um dos dirigentes da indústria, o engenheiro Auerbach, explicou mais tarde, nas suas memórias, porquê a ideia do lock-out tinha sido rejeitada: «Isso teria sido a punhalada nas costas do exército … As consequências de tal atitude, dado a falta de apoio do lado do governo, pareciam extremamente sombrias à maioria.» A infelicidade vinha da ausência de um «verdadeiro» poder. O governo provisório estava paralizado pelos sovietes; os líderes razoáveis dos sovietes pelas massas; os operários, em cada fábrica, estavam armados; além disso, quase cada fábrica contava na vizinhança um regimento ou um batalhão amigo. Nessas condições, o lock-out parecia a esses senhores industriais «odioso do ponto de vista nacional». Mas sem renunciar completamente à ofensiva, eles adaptaram-no às circunstâncias, dando-lhe um carácter larvado e não simultâneo. Segundo a expressão diplomática de Auerbach, os industriais «chegaram à conclusão que a lição das coisas seria dada pela própria via: pelo inevitável e progressivo encerramento das fábricas, cada um agindo de certa forma isoladamente – o que, logo se pôde observar». Por outras palavras, rejeitando o lock-out demonstrativo, como comportando «uma enorme responsabilidade», o conselho da indústria unificada convidou os seus membros a fecharem as companhias isoladamente, procurando pretextos plausíveis.
O plano do lock-out larvado foi aplicado com uma metodologia notável. Os líderes do capital, tais que o cadete Kutler, antigo ministro do governo Witte, faziam grandes conferências sobre a ruína da indústria, que aliás eles metiam na conta não de três anos de guerra, mas de três meses de revolução. «Ainda duas ou três semanas – previa o impaciente Rietch – e os fabricantes e fábricas começarão a fechar uma após outra.» Sob a forma de predição se cobria aqui a ameaça. Engenheiros, professores, jornalistas abriram na imprensa técnica e na imprensa corrente uma campanha demostrando que derrotar os operários era a condição essencial da salvação. O ministro Konovalov, industrial, declarou no 17 de Maio, na véspera de sair do governo
: «Se, muito brevemente, não voltam à razão os espíritos perturbados, … testemunharemos o encerramento de dezenas e de centenas de empresas.»
Em meados de Junho, o congresso do comércio e da indústria exige do governo provisório «um corte radical com o sistema de desenvolvimento da revolução». Já ouvimos a mesma reclamação do lado dos generais: «Parai a revolução.» Mas os industriais são mais precisos: «A fonte do mal está não somente nos bolcheviques, mas também nos partidos socialistas. A Rússia não pode ser salva senão por um punho sólido, uma mão de ferro.»
Depois de ter preparado a situação política, os industriais passaram da palavra à acção. No decorrer de Março e de Abril, cento e vinte e nove pequenas empresas encerraram; no decorrer de Maio, cento e oito empresas com o mesmo número de operários; em Junho, fecharam já cento e vinte e cinco empresas trinta e oito mil operários; em Julho, duzentas e seis empresa meteram na rua quarenta e oito mil operários. O lock-out estendeu-se progredindo geometricamente. Mas era só o principio. Moscovo textil agita-se após Petrogrado, a província após Moscovo. Os patrões alegavam falta de combustível, de matérias primas, materiais auxiliares, crédito. Os comités de fábrica intervieram e, em muitos casos assinalaram, de maneira absolutamente incontestável, uma desorganização pérfida da produção, visando pressionar os operários ou a extorquir subsídios ao governo. Particularmente impudentes mostraram-se os capitalistas estrangeiros que agiam por intermédio das suas embaixadas. Em certos casos, a sabotagem era de tal forma evidente que daí resultou revelações feitas pelos comités de fábrica, os industriais viram-se forçados a reabrir as companhias. Assim, ao revelar as contradições sociais, uma após outra, a revolução logo se encontrou na presença da principal dentre elas; entre o carácter social da produção e a propriedade privada dos meios de produção. Para vencer os operários, o empresário fecha a fábrica como se tratasse somente da sua janela e não de um estabelecimento indispensável à vida de toda a nação.
Os bancos, tendo boicotado com sucesso o empréstimo da liberdade, tomaram uma atitude combativa em relação aos atentados do fisco dirigidos contra o grande capital. Na carta dirigida ao ministro das Finanças, os banqueiros «previam» a evasão de capitais para o estrangeiro e a transferência de títulos do tesouro para os cofres fortes em caso de reformas financeiras radicais. Por outras palavras, os patriotas da banca ameaçavam com o lock-out financeiro completando o da indústria. O governo apressou-se: os organizadores da sabotagem não eram pessoas sólidas que arriscaram, por causa da guerra e da revolução, seus capitais, e não esses marinheiros de Cronstadt que não arriscavam nada senão a sua própria vida?
O comité executivo não podia dispensar-se de compreender que a responsabilidade dos destinos económicos do país, sobretudo após a adesão aberta dos socialistas ao poder, recaíam aos olhos das massas sobre a maioria soviética dirigente. A secção económica do comité executivo elaborou um grande programa de regulação pelo Estado da vida económica. Sob a pressão de uma situação ameaçadora, as proposições de economistas muito moderados mostraram-se mais radicais que os seus autores. «Em muitos domínios da indústria dizia o programa – os tempos são bons para um monopólio do Estado do comércio do pão, metais, açúcar, papel) e, enfim, para quase todas os ramos da indústria, as condições actuais exigem uma participação reguladora do Estado na repartição das matérias-primas, na elaboração dos produtos, assim como o estabelecimento de preços … Ao mesmo tempo, convém estabelecer um controlo de todos os estabelecimentos de crédito.»
No 16 de Maio, o comité executivo, os líderes políticos perdendo a cabeça, adoptou as proposições destes economistas quase sem debate e reforçou com um aviso original ao governo: este deve tomar «tarefa de uma organização racional da economia pública e do trabalho», lembrando-se bem que, sem ter preenchido essa tarefa, «o antigo regime derrubado» e que o «governo provisório teve que se transformar». Para se encorajarem, os conciliadores metiam-se medo a eles próprios.
«Programa magnifico – escrevia Lenine – e um controlo, e trustes estatizados, e a luta contra a especulação, e o serviço obrigatório do trabalho… Somos obrigados a reconhecer o programa do «medonho» bolchevismo, porque não pode haver outro programa, outra saída diante do desastre espantoso que ameaça efectivamente…»
Toda a questão é, porém, saber quem realizará esse magnifico programa. Seria a coligação? A resposta vem imediatamente. Um dia após a adopção pelo comité executivo do programa económico, o ministro do Comércio e da Indústria Konovalov demitiu-se e saiu batendo com porta. Foi provisoriamente substituído pelo engenheiro Paltchinsky, não menos fiel mas mais enérgico representante do grande capital. Os ministros socialista nem mesmo ousaram propor o programa do comité executivo aos seus colegas liberais. Porque Tchernov tinha em vão tentado admitir ao governo a proibição da venda de terras!
Respondendo às dificuldades crescentes, o governo apresentou, pelo seu lado, um programa de desanuviamento de Petrogrado, isto é transferir as fábricas e oficinas para o interior do país. O projecto era motivado por considerações militares – perigo de ver a capital tomada pelos alemãs – assim como por considerações económicas: Petrogrado estava demasiado afastado das fontes de combustível e de matérias-primas. O desanuviamento teria significado a liquidação da indústria da capital por meses e anos. O objectivo político era dispersar pelo país a vanguarda da classe operária. Paralelamente a isso, as autoridades militares encontravam pretextos, um após outro, para afastar de Petrogrado as tropas do espírito revolucionário.
Paltchinsky esforçou-se bastante para persuadir a secção operária do Soviet das vantagens do desanuviamento. Era impossível proceder à evacuação contra a vontade operária e os operários portanto não consentiam. O desanuviamento da capital avançava tão pouco que as regulamentação da indústria. O desespero agravava-se, os preços subiam, o lock-out larvado aumentava e o desemprego crescia. O governo marcava passo. Miliokov escreveu mais tarde:
«O ministério deixa-se ir simplesmente, e a corrente conduz ao bolchevismo.» Sim, a corrente levava ao bolchevismo.
O proletariado era a principal força motriz da revolução. Ao mesmo tempo, a revolução formava o proletariado. O que ele bem precisava.
Vimos qual foi o papel decisivo dos operários de Petrogrado nas jornadas de Fevereiro. No ponto mais alto do combate encontravam-se os bolcheviques. Após a insurreição, porém, eles retiraram-se subitamente para qualquer lugar atrás. O proscénio político é ocupado pelos partidos conciliadores. Eles transmitem o poder à burguesia liberal. A bandeira do bloco é o do patriotismo. O assalto que ele dá é tão violento que a direcção do partido bolchevique, pelo menos a metade, capitula diante do ataque. À chegada de Lenine, o curso do partido modificou-se bruscamente e, ao mesmo tempo, a sua influência aumentou rapidamente. Na manifestação armada de Abril, a vanguarda dos operários e dos soldados tenta quebrar as cadeias da conciliação. Mas, após o primeiro esforço, ela bate em retirada. Os conciliadores continuam ao leme.
Mais tarde, após as insurreição de Outubro, escreveu-se bastante sobre, que os bolcheviques deviam a vitória ao exército camponês, cansado da guerra. É uma explicação muito superficial. Uma afirmação contrária seria mais próxima da verdade: se os conciliadores obtiveram na Revolução de Fevereiro uma situação dominante, é, antes de mais, em virtude do lugar exceptional que o exército camponês ocupava na vida do país. Se a revolução tinha eclodido em tempo de paz, o papel dirigente do proletariado teria tido, desde do início, um carácter mais marcante.
Sem guerra, a vitória revolucionária teria vindo mais tarde, e, abstracção feita das vítimas da guerra, teria tido um preço mais elevado. Mas ela não teria deixado lugar a uma profusão de opiniões conciliadoras e patrióticas. De qualquer modo, os marxistas russos que tinham prognosticado, muito antes os acontecimentos, a conquista do poder pelo proletariado no decurso da revolução burguesa, baseavam-se não sobre o estado da opinião passageira do exército camponês, mas sobre a estrutura de classes da sociedade russa. Esta previsão foi totalmente confirmada. Mas as relações essenciais entre classes reflectiram-se através da guerra, e pour um tempo, transpuseram-se sob a pressão do exército, isto é de uma organização de camponeses sem ligações de classe e armados. É precisamente esta formação social artificial que consolida extremamente as posições da pequena-burguesia conciliadora e criou para ela a possibilidade de fazer, durante oito meses, experiências que enfraqueceram o país e a revolução.
Todavia, a questão da política conciliadora não tem todas as suas raízes no exército camponês. No próprio proletariado, na sua composição, no seu nível político, é preciso procurar as causas complementares da preponderância passageira dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. A guerra tinha trazido formidáveis mudanças na composição e no estado de espírito da classe operária. Se os anos precedentes tinha sido um período de ascenso do fluxo revolucionário, a guerra tinha bruscamente interrompido esse processo. A mobilização tinha sido concebida e aplicada não somente num sentido militar, mas antes de mais, de um ponto de vista policial. O governo apressou-se a limpar as regiões industriais de seus elementos operários mais activos e os mais turbulentos. Pode-se considerar como perfeitamente estabelecido que a mobilização, nos primeiros meses da guerra, retirou à indústria cerca de 40% dos operários, na maior parte qualificados. A sua ausência, muito dolorosamente ressentida na produção, apelou ao protesto dos industriais, tanto mais vivas que os lucros das indústrias da guerra eram elevados. Seguidamente, a destruição dos quadros operários foi interrompida. Os operários indispensáveis à indústria continuaram na qualidade de mobilizados nas fábricas. As rachas abertas pela mobilização eram preenchidas pelos recém-chegados dos campos, pela gente das cidades, por operários pouco qualificados, por mulheres e adolescentes. A percentagem de mulheres na indústria subiu de trinta a quarenta.
O processo de transformação e de dissolução do proletariado tomou proporções excepcionais precisamente na capital. Durante a guerra, de 1914 a 1917, o número de grandes companhias que ocupavam mais de quinhentos operários quase que dobrou no governo de Petrogrado. No seguimento da liquidação de fábricas e de oficinas na Polónia e sobretudo nas províncias do Báltico, em consequência do aumento geral das indústrias da guerra, houve, em Petrogrado, por volta de 1917, uma concentração de cerca de quatrocentos mil operários nas fábricas e oficinas. Desse número, trezentos e cinco mil estavam ligados a cento e quarenta fábrica gigantes. Os elementos mais combativos do proletariado de Petrogrado desempenharam na frente um papel não negligente na formação da mentalidade revolucionária do exército. Mas os que os tinham substituído na véspera, recém-chegados do campo, frequentemente camponeses ricos e logistas, disfarçados nas fábricas para escapar à frente, mulheres e adolescentes, eram muito mais dóceis que os operários do quadro. A isso é preciso acrescentar que os operários qualificados, encontrando-se na situação de mobilizados nas fábricas – que se contavam por centenas de milhar – conduziram-se com extrema prudência, temendo serem enviados para a frente. Tal é a base social da mentalidade patriótica que ganhou uma parte dos operários já no tempo do czar.
Mas esse patriotismo não era estável. A implacável opressão militar e policial, a exploração duplicada, as derrotas na frente e o desespero económico levavam os operários à luta. As greves, durante a guerra, tiveram portanto um carácter principalmente económico e diferenciaram-se muito por mais moderação das de antes da guerra. O enfraquecimento da classe agravava-se pelo enfraquecimento do seu partido. Após a prisão e a deportação dos deputados bolcheviques, procedeu-se com ajuda de agentes provocadores hierarquicamente organizados antecipadamente, à destruição geral das organizações bolcheviques e o partido não pode levantar-se até à insurreição de Fevereiro. Durante os anos 1915 e 1916, a classe operária desagregada teve que passar por uma escola elementar de luta, isso até Fevereiro 1917, onde as greves económicas parciais e manifestações de mulheres esfomeadas puderam fundir numa greve geral e arrastar o exército na insurreição.
Assim, na Revolução de Fevereiro, o proletariado de Petrogrado entrou não somente com efectivos extremamente hetereogenes que não tinham podido ainda amalgamar-se, além de terem um nível político diminuído mesmo nas suas camadas as mais avançadas. Na província, a coisa era pior. Foi somente esta recaída, causada pela guerra, na ignorância ou na meia ignorância política do proletariado, que criou uma segunda condição para a dominação provisória dos partidos conciliadores.
Aterrorizados pelo trovão da revolução que bateu em cheio no bacanal dos lucros da guerra, os industriais, nas primeiras semanas, fizeram concessões aos operários. Os fabricantes de Petrogrado consentiram mesmo, com reservas e restrições, ao dia de oito horas. Mas isso não trouxe a calma, visto que o nível das condições de vida baixava constantemente. Em Maio, o comité executivo foi forçado a constatar que, a vida tornando-se cada vez mais cara, a situação dos operários «estava, para muitas categorias no limite da fome crónica». Nos bairros operários, a nervosidade e a tensão dos espíritos tornava-se cada vez maiores. Era a falta de perspectivas que pesava mais. As massas são capazes de suportar as mais penosas privações quando elas compreendem a causa. Mas o novo regime desmascarava-se cada vez mais diante delas como uma camuflagem das antigas relações sociais contra as quais elas tinham se erguido em Fevereiro. Elas não podiam tolerar isso.
As greves tomam um carácter particularmente violento nas camadas operárias mais atrasadas e as mais exploradas. As lavadeiras, os operários das tinturarias, os tanoeiros, os empregados do comércio e da indústria, da construção, operários da bronzagem, pintores, trolhas, sapateiros, artesãos do cartão, operários da charcutaria, marceneiros, fazem greve, sucessivamente, durante todo o mês de Junho. Os metalúrgicos, contrariamente, começam a desempenhar o papel moderador. Para os operários avançados, torna-se cada vez mais claro que as greves económicas parciais, nas condições de guerra, de desespero e de inflação, não podiam trazer melhoramentos importantes, que era necessário modificar de qualquer maneira as próprias bases. O lock-out não abria somente o espírito dos operários à reivindicação do controlo da indústria, mas levava-os à ideia da necessidade de colocar as fábricas à disposição do Estado. Esta dedução parecia tanto mais natural que a maior parte das fábricas privadas trabalhavam para a guerra e que ao lado delas existiam empresas do Estado do mesmo tipo. A partir do verão de 1917 chegaram à capital vindas de diferentes lugares da Rússia, delegações de operários e de empregados que pediam que as fábricas fossem colocadas à disposição do Tesouro, visto que os accionarios deixaram de cotizar. Mas o governo nem queria ouvir falar nisso. Era preciso, em consequência, mudar de governo. Os conciliadores opuseram-se a isso. Os operários voltaram-se contra os conciliadores.
A fábrica Potilov, contando quarenta mil operários, pareceu, nos primeiros meses da revolução, ser a cidadela dos socialistas-revolucionários. Mas a sua guarnição não resistiu muito tempo aos bolcheviques. À cabeça dos assaltantes, podia-se ver muitas vezes Volodarsky. Judeu, alfaiate de profissão, tendo vivido vários anos na América e falando bem inglês, Volodarsky era um excelente orador para as massas, lógico, inventivo e corajoso. Certo acento americano dava uma impressão particular à sua voz sonora que soava nitidamente nas reuniões de milhares de homens.
«A partir do momento onde ele se mostra no distrito de Narva – conta o operário Mintchev – na fábrica Potilov, o chão começou a tremer debaixo dos pés dos senhores socialistas-revolucionários, e, em apenas dois meses, os operários de Potilov seguiram os bolcheviques.»
O crescimento das greves e, em geral, da luta de classes aumentava quase autenticamente a influência dos bolcheviques. Todas as vezes que se tratava dos seus interesses vitais, os operários compreendiam bem que os bolcheviques não tinham segundas intenções, que eles não escondiam nada e que se podia contar com eles. Nas horas de conflitos, todos os operários, sem partido, socialistas-revolucionários, mencheviques, dirigiam-se aos bolcheviques. Assim se explica o facto que os comités de fábrica e de oficinas que conduziam a luta pela sobrevivência de seus lugares de trabalho contra a sabotagem da administração e os proprietários, passaram para o lado dos bolcheviques mais cedo que o Soviete. Na conferência dos comités de fábrica e de oficina de Petrogrado e dos arredores, no principio de Junho, trezentos e trinta e cinco votos sobre quatrocentos e vinte e um pronunciaram-se pela resolução bolchevique. Esse facto passou completamente despercebido da grande imprensa. Portanto, significava que, nas questões essenciais da vida económica, o proletariado de Petrogrado, sem ter ainda tido tempo de romper com os conciliadores alinhou efectivamente do lado dos bolcheviques.
Na conferência dos sindicatos, em Junho, aconteceu que existia em Petrogrado mais de cinquenta sindicatos, contando pelo menos duzentos e cinquenta mil membros. O sindicato dos metalúrgicos reunia cerca de cem mil operários. Somente no mês de Maio, o número dos seus membros tinha duplicado. A influência dos bolcheviques nos sindicatos aumentava ainda mais rapidamente.
Todas as eleições parciais nos sovietes davam a vitória aos bolcheviques. No primeiro de Junho, no soviete de Moscovo, havia já duzentos e seis bolcheviques contra cento e setenta e dois mencheviques e cento e dez socialistas-revolucionários. Os mesmos avanços produziam-se na província, ainda se mais lentamente. O número de membros do partido aumentava constantemente. No fim de Abril, a organização de Petrogrado contava cerca de quinze mil membros, no fim de Junho mais de trinta e dois mil.
A secção operária do Soviete de Petrogrado tinha já nesse momento uma maioria bolchevique. Mas, nessas sessões onde se juntavam duas secções, os bolcheviques eram esmagados pelos delegados soldados. A Pravda reclamava, com cada vez maior insistência, novas eleições:
«Os quinhentos mil operários de Petrogrado têm no Soviete quatro vezes menos delegados que os cento e cinquenta mil homens de guarnição.»
No Congresso dos sovietes, em Junho, Lenine reclamava medidas sérias de luta contra os loock-out a pilhagem e os disturbios da vida económica organizados pelos industriais e os banqueiros.
«Publiquem os lucros dos senhores capitalistas, prendam cinquenta ou cem dos maiores milionários. Basta prendê-los durante algumas semanas, mesmo com um regime de favor como o que é feito a Nicolau Romanov, com o objectivo de os obrigar a descobrir os subterfúgios, armadilhas, a canalha, o mercantilismo que, mesmo sob o novo governo, custam milhões ao nosso país.»
Os líderes do Soviete consideravam a proposição de Lenine como monstruosa. «É possível, ao exercer violências sobre tal ou tais capitalistas, modificar as leis da vida económica?» Acontece que os industriais ditam suas leis ao conspirarem contra a nação era aceite como estando na ordem das coisas. Kerensky, projectando sobre Lenine as iras da sua indignação, não hesitou, um mês mais tarde, em prender numerosos milhares de operários que não concordavam com os industriais no que diz respeito às «leis da vida económica.»
A ligação entre o económico e a política desvendava-se. O Estado, sendo habituado a agir como príncipio místico, utilizava agora cada vez com mais frequência sob a forma mais primitiva, os destacamentos armados. Os operários, em diversos pontos do país, levavam à força ao Soviete ou prendiam no domicílio o capitalista que recusava fazer concessões ou mesmo de estabelecer negociações. Não era de admirar que a milícia operária se tornasse alvo de aversão particular das classes possuidoras.
A decisão do comité executivo, de ordenar primitivamente o armamento de 10% dos operários, não foi executada. Mas os operários não foram impedidos de se armar parcialmente, e nas fileiras da milícia, infiltraram-se os elementos mais activos. A direcção da milícia operária concentrava-se nas mãos dos comités de fábrica, e a direcção desses comités passava cada vez mais para as mãos dos bolcheviques. Um operário da fábrica Postavchtchik, em Moscovo, conta o seguinte:
«No primeiro de Junho, logo que foi eleito o novo comité de fábrica, composto em maioria por bolcheviques, formou-se um destacamento de cerca de oitenta homens, o qual, por falta de armas, fazia o exercício com paus sob a direcção de velho soldado, o camarada Levakov.»
A imprensa acusava a milícia de violências, de requisições e prisões ilegais. Sem dúvida, empregava a violência: ela era precisamente para isso. O seu crime era, porém, de usar a violência em relação aos representantes da classe que não estava habituada a sofrer e não queria acostumar-se a isso.
A fábrica Potilov, que desempenhava um papel dirigente na luta pela subida dos salários, uma conferência reuniu-se no dia 23 de Junho, com a participação dos representantes do Soviete central dos comités de fábricas e oficinas, do comité central dos sindicatos e de setenta e três fábricas. Sob a influência dos bolcheviques, a conferência reconheceu que a greve de fábrica, nas condições presentes, podia trazer «uma luta política desorganizada dos operários de Petrogrado», e, por consequência, propôs aos operários de Potilov «de conter a sua legítima indignação» e de preparar suas forças para uma acção geral.
Na véspera desta importante conferência, a fracção dos bolcheviques avisava o comité executivo: «Uma massa de quarenta mil pessoas … pode de um dia ao outro meter-se em greve e descer à rua. Ela seria já em movimento se ele não fosse retida pelo nosso partido, mas nada garante que possamos ainda retê-la. Ora, o desencadeamento dos operários de Potilov – sobre isso, não pode haver dúvida – provocará inevitavelmente a entrada em acção da maioria dos operários e soldados.»
Os líderes do comité executivo viam tais avisos como sendo demagogia, ou então, simplesmente, fingiam que não ouviam, salvaguardando a tranquilidade. Eles próprios quase que tinham completamente parado de frequentar as fábricas e os quartéis, tornando-se já personalidades odiadas pelos soldados e operários. Só, os bolcheviques gozavam de uma autoridade que lhes permitia prevenir uma acção dispersa. Mas já a impaciência das massas, por vezes, voltava-se mesmo contra os bolcheviques.
Nas fábricas e na frota apareceram os anarquistas. Como sempre, na presença de grandes acontecimentos e de grandes massas, eles manifestavam sua inconsistência orgânica. Negavam tanto mais facilmente o poder de Estado que não compreendiam de forma nenhuma a importância do Soviete como órgão do novo Estado. Eles manifestavam sua economia, principalmente, no domínio de um medíocre golpismo. O impasse económico e a exasperação crescente dos operários de Petrogrado criavam para os anarquistas certas posições de apoio. Incapazes de avaliar seriamente a relação de forças sobre a escala nacional, prontos a considerar cada avanço de baixo como o último golpe de libertação, acusavam por vezes os bolcheviques de pusilanimidade e mesmo de conciliação. Mas como habitualmente, limitavam-se a rosnar. A reacção das massas diante das manifestações dos anarquistas permitia por vezes aos bolcheviques medir o grau de pressão do vapor revolucionário.
Os marinheiros que tinham festejado a chegada de Lenine na gare da Finlandia declararam, quinze dias mais tarde, sob o desenvolvimento do patriotismo vindo de todo o lado:
«Se soubéssemos … por quais caminhos ele nos chegaria, teríamos ouvido, em vez dos hurras de entusiasmo, os nossos gritos de indignação: «Abaixo! Volta para o país pelo qual tu voltás-te! … »
Os sovietes de soldados, na Crimeia, uns após outros, ameaçavam opor-se pelas armas à entrada de Lenine na quase ilha patriota que aliás ele não tinha qualquer intenção de visitar. O regimento volhyniano, corifeu do 27 de Fevereiro, decidiu mesmo, na sua efervescência, prender Lenine, ainda se o comité executivo julgou-se forçado a tomar medidas de salvaguarda. Tais estados de espírito não se dissiparam definitivamente até à ofensiva de Junho e eles tiveram reacções vivas após as Jornadas de Julho. Nesse mesmo tempo, nas guarnições mais isoladas, nos longínquos sectores da frente, os soldados falavam cada vez mais ousadamente a linguagem do bolchevismo, na maior parte das vezes sem se duvidarem.
Os bolcheviques, nos regimentos, contavam-se por unidades, mas as palavras de ordem do bolchevismo penetravam cada vez mais profundamente. Eles nasciam de certa forma espontaneamente sobre todos os pontos do país. Os observadores liberais não viam nisso senão ignorância e caos. A Rietch escrevia:
«A nossa pátria transforma-se positivamente numa especie de casa de loucos onde agem e comandam enraivecidos, enquanto que os ainda não perderam o tino afastam-se assustados e encostam-se contra as paredes.»
É exactamente nestes termos que «os moderados» aliviavam a alma em todas as revoluções. A imprensa conciliadora consolava-se a dizer que os soldados, apesar de todos os desentendidos, não queriam saber dos bolcheviques. Ora, o bolchevismo inconsciente da massa, reflectindo a lógica do desenvolvimento, constituía a força irresistível do partido de Lenine.
O soldado Pireiko conta que nas eleições da frente para o congresso dos sovietes, não houve eleitos, após três dias de debates, senão os socialistas-revolucionários, mas imediatamente, apesar dos protestos dos líderes, os deputados soldados adoptaram uma resolução sobre a necessidade de confiscar as terras dos nobres sem esperar a Assembleia constituinte.
«Em geral, nas questões acessíveis aos soldados, eles estavam mais à esquerda que os mais extremistas dos extremos bolcheviques.»
É precisamente o que Lenine tinha em perspectiva quando dizia que as massas estavam «cem vezes mais à esquerda que nós».
Um empregado da escritura numa oficina de motocicletas, num lugar do governo de Tauride, conta que, frequentemente, após ter lido um jornal burguês, os soldados invectivam os bolcheviques desconhecidos e começam a conversar sobre a necessidade de terminar a guerra e de confiscar as terras dos nobres. E são esses mesmos patriotas que juravam não deixar Lenine penetrar em Crimeia.
Os soldados das formidáveis guarnições de retaguarda elanguesciam. Uma imensa aglomeração de homens desocupados, esperando com impaciência que a sorte mudasse, mostravam um nervosismo que se manifestava numa constante predisposição em dar a conhecer o seu descontentamento, em idas e voltas sem limite em trólei, mastigando sementes de girasol como se fossem atingidos por uma epidemia. O soldado, com o seu capote negligentemente pelas costas, uma casca colada ao lábio, tornou-se, pela imprensa burguesa, a personagem detestada de todos. É ele que durante a guerra, tinham-no lisonjeado grosseiramente, tratando-o como herói – o que não impedia que na frente lhe fizessem sofrer a esse herói o suplício das vergastadas; àquele que após a insurreição de Fevereiro o tinham louvado como um emancipador tornou-se de repente um traidor, um medroso, um zaragateiro e um vendido à Alemanha. Na verdade, não houve qualquer infâmia que a imprensa patriótica não tivesse atribuído aos soldados e aos marinheiros russos.
O comité executivo não fazia outra coisa senão justificar-se, de combater a anarquia, de abafar os excessos, de expedir, no seu sobressalto, folhas de inquérito e de advertências. O presidente do Soviete de Tsaritsyne – esta cidade era considerada como o ninho do «anarco-bolchevismo» - a uma questão do centro sobre a situação, respondeu pela frase lapidária: « Mais a guarnição vai para a esquerda, mais o burguês vai para a direita.» A formula de Tsaritsybe pode ser estendida a todo o país. O soldado para a esquerda, o burguês para a direita.
Alguém, entre os soldados, que ousasse mais que qualquer outro exprimir o que todos sentiam, era inflexivelmente invectivado como bolchevique pelos superiores que acabava por acreditar nisso. Entre a paz e a guerra, o pensamento do soldado levava-o à questão do poder. O eco de tais ou tais palavras de ordem do bolchevismo transformava-se numa simpatia consciente pelo partido bolchevique. No regimento volhyniano que, em Abril, dispunha-se a prender Lenine, o estado de espírito, em dois meses, tinha tido tempo de se modificar em favor dos bolcheviques. O mesmo acontecia no regimento dos Caçadores (Jagersky) e no regimento lituano. Os caçadores letões tinham sido formados pela autocracia com o intuito de utilizar na guerra o ódio dos pequenos camponeses e dos operários agrícolas contra os barões da Livónia. Os regimentos batiam-se muito bem. Mas o espírito de hostilidade entre classes sobre o qual queria apoiar-se a monarquia tinha traçado a sua própria via. Os caçadores letões foram entre os primeiros a romper com a monarquia e a seguir com os conciliadores. A partir do 17 de Maio, os representantes de oito regimentos letões adoptaram quase à unanimidade a palavra de ordem bolchevique: «todo o poder aos sovietes». No caminho ulterior da revolução, eles desempenharam um papel considerável.
Um soldado desconhecido escreveu da frente:
«Hoje, 13 de Junho, houve no nosso destacamento uma pequena reunião e falou-se de Lenine e de Kerensky; os soldados estão, na maioria com Lenine, mas os oficiais dizem que Lenine é um burguês enfeudado.»
Após o falhanço catastrófico da ofensiva, o nome de Kerensky, no exército, tornou-se absolutamente odioso.
No 21 de Junho, os junkeres percorreram as ruas de Peterhof com bandeiras e cartazes dizendo: «Abaixo os espiões!» «Viva Kerensky e Brossilov!» Os junkers, bem entendido, tiravam por Brossilov. Os soldados do 4º batalhão lançaram-se sobre os junkers, empurrando-os, dispersando a manifestação. A irritação forte provocada pelo cartaz em honra de Kerensky.
A ofensiva de Junho acelerou extremamente a evolução política do ano. A popularidade dos bolcheviques, o único partido que tinha a antecipadamente levantado a voz contra a ofensiva, começou a aumentar com extraordinária rapidez. Na verdade, os jornais bolcheviques dificilmente tinha acesso ao exército. A tiragem do seu jornal continuava extremamente limitada, comparativamente ao da imprensa liberal e patriota em geral. « … Mesmo que em parte nenhuma se encontre um só jornal vosso – escreve com destino a Moscovo a mão calosa de um soldado – e nós aproveitamos o vosso jornal somente pelo ouvi dizer. Aqui, inundam-nos com os jornais burgueses gratuitos, distribuem-nos sobre a frente por pacotes inteiros.» Mas é precisamente a imprensa patriótica que cria aos bolcheviques uma popularidade incomparável. Cada protesto dos oprimidos, cada confiscação de terras, cada caso de represália sobre um oficial odiado, eram atribuidos pelos jornais aos bolcheviques. Os soldados concluíam que os bolcheviques falavam como homens justos.
O comissário da 12º exército enviava a Kerensky, no principio de Julho, um relatório sobre o estado de espírito dos soldados: «Tudo, no fim de contas, é atribuído aos ministros burgueses e ao Soviete vendido aos burgueses. Em resumo, a imensa massa, são as trevas impenetráveis; infelizmente, devo constatar que mesmo os jornais, nestes últimos tempos, são pouco lidos, que se desconfie completamente da palavra imprimida: «são os bem falantes», «eles procuram encher-nos a cabeça» … Nos primeiros meses, os relatórios dos comissários patriotas eram, habitualmente, ditirâmbicos em honra do exército revolucionário, da sua alta consciência e da sua disciplina. Mas quando, depois de quatro meses de decepções sem fim, o exército retirou a sua confiança aos oradores e publicistas governamentais, os mesmos comissários descobriram nela «trevas impenetráveis».
Mais a guarnição vai para a esquerda, mais o burguês volta à direita. Sob a impulsão da ofensiva, as uniões contra-revolucionárias cresciam em Petrogrado como cogumelos depois de uma chuvada. Elas tinham nomes sonantes, todas, umas mais que outras: União para a honra da pátria, União do dever militar, Batalhão da liberdade, Organização dos valentes, etc.. Sob esses magníficos nomes dissimulavam-se as ambições e as pretensões da nobreza, dos oficiais, da burocracia, da burguesia. Algumas dessas organizações, como a Liga militar, a União dos cavaleiros de Santo Jorge ou a Divisão dos voluntários, estavam prontas a toda a conjura militar. Agiam com ardentes patriotas, os cavaleiros da «honra» e da «valentia» não somente abriam-lhes as portas facilmente, mas recebiam de tempos em tempos um subsídio governamental que outrora recusariam ao Soviete, considerado como «organização privada».
Um dos rebentos da família de Sovorine, um magnata do jornalismo, iniciou então a publicação da Malenkaia Gazeta (Pequeno Jornal) que, na qualidade de órgão do «socialismo independente» pregava uma ditadura de ferro, preconizando como candidato o almirante Koltchak. A imprensa mais séria, sem ainda ter metido os pontos nos i, utilizava tudo para dar popularidade a Koltchak. O que, a seguir, se tornou o almirante prova que, desde do início do verão de 1917, tratava-se de um enorme plano ao qual se ligava o seu nome e que por detrás de Sovarine mantinham-se círculos influentes.
Obedecendo a um simples cálculo de táctica, a reacção, excepção feita de alguns ataques bruscos, fingiam não atacar os leninistas. O nome de «bolchevique» tornou-se sinónimo de um elemento infernal. Tal como antes da revolução, os chefes do exército do czar rejeitavam a responsabilidade de todas as infelicidades, e nomeadamente das suas próprias asneiras, sobre os espiões alemãs, particularmente sobre os judeus – assim, após o fiasco da ofensiva de Junho, os insucessos e as derrota foram invariavelmente imputadas aos bolcheviques. Nesse domínio, os democratas, do tipo de Kerensky e de Tseretelli quase que não se distinguiam em nada dos liberais tais que Miliokov, nem mesmo dos partidários confessos da servidão tais como o general Denekine.
Como acontecia sempre, quando os antagonismos atingem o seu ponto mais alto, mas que o momento de explosão ainda não chegou, os agrupamentos de forças políticas manifestam-se mais abertamente e nitidamente, não sobre questões essenciais, mas sobre questões acidentais e acessórias. Um dos pára-raios designados às paixões políticas, nessas semanas, foi Cronstadt. A velha fortaleza que devia servir de sentinela fiel aos portos marítimos da capital imperial, tinha levantado mais de uma vez, outrora, a bandeira da insurreição. Apesar das repressões implacáveis, a chama da revolução nunca se apagou em Cronstadt. Ela flama ameaçadora após a insurreição. O nome da fortaleza marítima tornou-se logo, nas páginas da imprensa patriótica, o sinónimo dos piores aspectos da revolução, isto é do bolchevismo. Na realidade, o Soviete de Cronstadt ainda não era bolchevique: contava-se aí, em Maio, cento e sete bolcheviques, cento e douze socialistas-revolucionários, trinta mencheviques e noventa e sete sem partido. Mas eram os socialistas-revolucionários e os sem partido de Cronstadt, vivendo sob alta pressão: a maioria dentre eles, por questões importantes, seguiam os bolcheviques.
No domínio da política, os marinheiros de Cronstadt não se inclinavam nem às manobras, nem à diplomacia. Eles tinham como único princípio: logo dito, logo feito. Não era de espantar que em relação ao governo fantasma eles eram levados a métodos de acção extremamente simplificados. No 13 de Maio, o Soviete tomou essa decisão: «O único poder em Cronstadt é o Soviete dos deputados operários e soldados.»
A expulsão do comissário do governo, o cadete Pepeliaev, cujo papel era o da quinta roda numa carrossa passou na fortaleza completamente despercebido. Uma ordem exemplar foi mantida. Na cidade, foi proibido jogo de cartas, fecharam todas as tascas, evacuando-as. Sob ameaça de «confiscação dos bens e do envio imediato para a frente», o Soviete proibiu a circulação nas ruas em estado de embriaguez. A ameaça foi executada mais de uma vez.
Endurecidos pelo terrível regime da frota czarista e da fortaleza marítima, acostumados a um trabalho rude, aos sacrifícios assim como às sevícias, os marinheiros, agora que se descortinava uma vida nova na qual sentiam que se tornariam os mestres, exercitaram os músculos para se mostrarem dignos da revolução. Jogaram-se avidamente, em Petrogrado, sobre os amigos e os inimigos, e levaram-nos quase à força até a Cronstadt para lhes mostrar o que eram os marinheiros revolucionários na realidade. Uma tal tensão moral não podia, bem entendido, subsistir perpetuamente, mas persistiu por muito tempo. Os marinheiros de Cronstadt constituíram uma especie de Ordem militar da revolução. Mas que revolução? Não qualquer uma, em todo o caso não era a do ministro Tseretelli com o seu comissário Pepeliaev. Cronstadt erguia-se como o anunciador de uma segunda revolução iminente. Foi por isso ela era profundamente detestada por todos os que estavam fartos e demasiado da primeira.
A expulsão pacífica e imperceptível de Pepeliaev foi apresentada na imprensa da ordem quase como um levantamento armado contra a unidade do Estado. O governo queixou-se ao soviete. Este designou imediatamente uma delegação para influenciar os marinheiros. A máquina do duplo poder meteu-se em movimento, rangendo. No 24 de Maio, o Soviete de Cronstadt, com a participação de Tseretelli e de Skobelev consentiu, sobre indicação dos bolcheviques, em reconhecer que ao continuar a luta pelo poder dos sovietes, era praticamente obrigado de subornar-se ao governo provisório tanto que o poder dos sovietes não seria estabelecido em todo o país. Todavia, no segundo dia depois, sob a pressão dos marinheiros indignados desta capitulação, o Soviete declarou que os ministros tinham somente recebido uma «explicação» do ponto de vista de Cronstadt que continuava invariável. Era uma falta evidente de táctica por detrás da qual, porém, não escondia nada de outro senão um ponto de honra revolucionário.
Entre os altos dirigentes, foi decidido aproveitar a ocasião para dar uma lição aos tipos de Cronstadt, forçando-os ao mesmo tempo a expiar as faltas cometidas por eles precedentemente. Foi, bem entendido, Tseretelli que fez de procurador. Evocando em termos patéticos as suas próprias prisões, incriminou particularmente os homens de Cronstadt do facto que eles guardavam nas casernas da fortaleza oitenta oficiais. Toda a imprensa bem pensante apoiou-o. Porém, os jornais conciliadores, isto é ministeriais, tiveram que eles próprios reconhecer que se tratava «de autênticos ladrões de tesourarias» e «pessoas que tinham exercido a um grau espantoso direito do punho» … Os marinheiros testemunhas – segundo Izvestia, folha oficial do próprio Tseretelli – declararam sobre o esmagamento (pelos oficiais agora presos) do levantamento de 1906, sobre os fuzilamentos de massa, dos botes cheios de cadáveres de suplicados que imergiam no mar, e sobre outros horrores …; eles contaram isso simplesmente, como coisas correntes».
Os homens de Cronstadt recusavam obstinadamente entregar os presos ao governo para o qual os carrascos e os concussionários da casta nobre eram infinitamente mais próximos que os marinheiros executados em 1906 e noutros anos. Não é por acaso, com efeito, que o ministro da Justiça Pereverzev, do qual Sokhanov dizia com indulgência que era «um dos personagens duvidosos do governo de coligação», libertava sistematicamente da fortaleza Pedro e Paulo os mais infames representantes da guarda czarista. Os novo-ricos da democracia esforçaram-se antes de tudo de provar à burocracia reaccionária sua magnanimidade.
Às acusações de Tseretelli, os homens de Cronstadt respondiam no seu manifesto: «Os oficiais, os guardas e os polícias que nós prendemos durante os dias revolucionários declararam eles próprios aos representantes do governo que nada têm a se queixar do tratamento que lhe fazem pelos guardas da prisão. É verdade de os edifícios da prisão de Cronstadt são terríveis. Mas são edifícios que foram justamente construidos pelo czarismo para nos fechar dentro. Não temos outros. E se guardamos nessas prisões os inimigos do povo, não é por vingança, é por motivos de salvaguarda revolucionária.»
No 27 de Maio, os homens de Cronstadt foram julgados pelo Soviete de Petrogrado. Tomando sua defesa, Trosky avisava Tseretelli que, em caso de perigo, isto é, «se um general contra-revolucionário tentasse passar a corda pelo pescoço da revolução, e então os marinheiros de Cronstadt viriam lutar e morrer connosco». Este aviso justificou-se três meses mais tarde com uma exactidão imprevista; quando o general Kornilov se revoltou e levou as tropas contra a capital, Kerensky, Tseretelli e Skobelev fizeram apelo aos marinheiros de Cronstadt para defenderem o palácio de Inverno. Mas então? Em Junho, os senhores democratas protegiam a ordem contra a anarquia, sem nenhum argumento, nenhuma predição não tinha efeito sobre eles. Com uma maioria de quinhentos e oitenta votos contra cento e sessenta e dois, com setenta e quatro abstenções, Tseretelli fez adoptar pelo Soviete de Petrogrado uma resolução declarando «a anárquico» Cronstadt desiludiu a democracia revolucionária.
Desde que o palácio Maria, que esperava com impaciência, soube que a bula da ex-comunicação tinha sido votada, o governo cortou imediatamente as comunicações telefónicas dos particulares entre a capital e a fortaleza, para impedir ao centro bolchevique de agir sobre os homens de Cronstadt, ordenou o afastamento imediato das águas da fortaleza de todos as embarcações escola e exigiu do Soviete «uma submissão incondicional». O Congresso dos deputados camponeses que se reunia nesses dias ameaçou «recusar aos homens de Cronstadt todos os produtos de consumo». A reacção que se mantinha atrás dos conciliadores procurava uma conclusão definitiva e, se possível, sangrenta.
«O acto inconsiderado do Soviete de Cronstadt – escreve Iogov, um dos jovens historiadores – podia ter consequências indesejáveis. Era preciso encontrar um meio conveniente de sair da situação criada. É precisamente com esse objectivo que Trotsky foi a Cronstadt, tomou a palavra no Soviete, e redigiu uma declaração que foi adoptada pelo Soviete, e seguidamente por unanimidade, ratificada, pelos cuidados de Trotsky num comício na praça da Tinta.» Conservando a sua posição de princípio, os homens de Cronstadt faziam concessões na prática.
O acordo amigável do conflito exasperou definitivamente a imprensa burguesa: a anarquia reina na fortaleza, imprime-se aí dinheiro especial – cujas cópias eram reproduzida nos jornais – os bens do Estado são pilhados, as mulheres em socialização, entregam-se ao banditismo e a orgias de bêbados. Os marinheiros, que estavam orgulhosos de ter instaurado em sua casa uma ordem severa, apertavam os punhos sólidos ao lerem os jornais que propagavam por milhões de exemplares, a calúnia sobre eles em toda a Rússia.
Tendo obtido a entrega dos oficiais de Cronstadt, as autoridades judiciárias de Pereverzev libertava-os uns a seguir de outros. Seria extremamente edificante estabelecer quais foram, entre os libertados, os que mais tarde participaram na guerra civil, e quantos marinheiros, soldados, operários e camponeses foram fusilados e enforcados por eles. Infelizmente, nós não temos possibilidade de nos entregar aqui a esses cálculos instrutivos.
A autoridade do governo estava salva. Mas os marinheiros obtiveram também satisfação pelos vexames sofridos. Em todos os pontos do país começaram a chegar resoluções felicitando Cronstadt vermelho: de diversos sovietes entre os mais à esquerda, de fábricas, de regimentos, de comícios. O primeiro regimento de metralhadoras, manifestou nas ruas de Petrogrado a sua estima para com os homens de Cronstadt «pela firme atitude de desconfiança em relação ao governo provisório.»
Cronstadt preparava-se porém a vingar-se ainda com mais significado. As humilhações da imprensa burguesa fizeram disso um factor de uma importância política geral . «Entricheirando-se em Cronstadt – escreve Miliokov – o bolchevismo lançava sobre a Rússia uma grande rede de propaganda, por intermédio de agitadores convenientemente instruídos. Os emissários de Cronstadt eram enviados e na frente, onde eles sapavam a disciplina, e na retaguarda, nos campos, onde eles provocavam a pilhagem de propriedades. O Soviete de Cronstadt munia os emissários de atestados especiais: «Um tal é enviado à província de … para tomar lugar, com voto deliberativo, nos comités de distrito, de cantão e de aldeia, como também para falar nos comícios e convocar reuniões, que lhes eram convenientes, em qualquer lugar», com «o direito de porte de arma, de passagem livre e gratuita sobre todas as linhas férreas e barcos». Além disso, «a inviolabilidade da pessoa dos agitadores designado é garantida pelo Soviete da cidade de Cronstadt».
Ao denunciar a obra subversiva dos marinheiros do Báltico, Miliokov esquece-se de explicar como e porquê, apesar da existência de autoridades, de instituições e de jornais de uma grande sabedoria, marinheiros isolados, armados do estranho mandato do Soviete de Cronstadt, percorriam todo o país sem obstáculos, encontravam por todo o lado cama e mesa, eram admitidos em toda as assembleias populares, em todo o lado atenciosamente escutados, e deixavam marca da sua rude mão sobre os acontecimentos históricos. O historiador ao serviço da política liberal nem sequer coloca esta questão simples. Ora, o milagre de Cronstadt era concebível unicamente porque os marinheiros exprimiam as exigências do desenvolvimentos histórico muito mais profundamente que os muito inteligentes professores. O mandato desprovido de ortografia encontrou-se, se empregarmos a linguagem de Hegel, real porque racional. Enquanto que os planos subjectivos mais perspicazes se tornaram ilusórios, porque não havia mesmo traço da razão histórica neles.
Os sovietes deixavam-se ultrapassar pelos comités de fábrica. Estes – pelas massas. Os soldados – pelos operários. Ainda em maior medida, a província estava atrasada em relação à capital. Tal era a inevitável dinâmica do processo revolucionário que engendra milhares de contradições para, a seguir, como por acaso, e de passagem, lançando-se, ultrapassa-os e logo criar outras. Sobre a dinâmica revolucionária atrasava-se também o partido, isto é a organização que, menos que qualquer outra, tem o direito de se deixar ultrapassar, sobretudo em tempo de revolução. Nos centros operários tais que Ekatarinburgo, Perm, Tula, Nijni-Novgorod, Sormovo, Kolomna, Iozovka, os bolcheviques só se separaram dos mencheviques no fim de Maio. Em Odessa, Nikolaiev, Elisavetgrad, Poltava e noutros pontos da Ucrânia, os bolcheviques, no meio de Junho, ainda não tinham organizações autónomas. Em Baku, Zlatoust, Bejtesk, Kostroma, eles só separaram dos mencheviques definitivamente no fim de Junho. Esses factos parecem muito surpreendentes se considerarmos que, já, nos quatro meses, os bolcheviques iam tomar o poder. Como se atrasou o partido, durante a guerra, no processo molecular das massas, e como a direcção Kamenev—Estaline em Março continuaram afastada das grandes tarefas históricas! O partido mais revolucionário que se conheceu até a esse dia na história humana foi contudo tomado de imprevisto pelos acontecimentos da revolução. Ele reconstituía-se sob o fogo e alinhava-se por força do desenvolvimento dos acontecimentos. As massas se encontraram, no momento da viragem, «cem vezes» mais à esquerda que o partido de extrema esquerda.
O progresso da influência dos bolcheviques, que se produziu com o vigour de um processo histórico natura, se examinarmos de perto, revela as suas contradições e os seus zigzagues, seus fluxos e refluxos. As massas não são homogéneas e, aliás, aprendem a atiçar o fogo da revolução queimando os dedos e recuando. Os bolcheviques podiam somente acelerar o processo de aprendizagem das massas. Eles explicavam pacientemente. Além disso, desta vez, a história não abusou da sua paciência.
Enquanto que os bolcheviques, irresistivelmente, tomavam as fábricas e os regimentos, as eleições às dumas democráticas davam um enorme e aparente crescimento aos conciliadores. Tal foi uma das contradições mais agudas e as mais enigmáticas da revolução. É verdade que a Duma do bairro de Vyborg, puramente proletário, prevalecia-se da sua maioria bolchevique. Mas era uma excepção. Nas eleições municipais de Moscovo, em Junho, os socialistas-revolucionários recolheram mais de 60% dos votos. Esse número admirou-os: eles não se impediam de sentir que a sua influência declinava rapidamente. Para compreender as relações entre o desenvolvimento real da revolução e os seus reflexos nos espelhos da democracia, as eleições de Moscovo apresentam um interesse extraordinário. As camadas avançadas dos operários e dos soldados apressavam-se já a libertar-se das ilusões conciliadoras. Durante esse tempo, as largas camadas da populaça começava a agitar-se. Para essas massas dispersas, as eleições democráticas abriam talvez uma primeira possibilidade e, de qualquer modo, uma das raras ocasiões de se pronunciar politicamente.
Enquanto que o operário, ainda ontem menchevique ou socialista-revolucionário, votava para o partido bolchevique, trazendo consigo o soldado – o cocheiro, o carregador, o moço de recados, o comerciante, o logista, o seu empregado, o mestre-escola, por um acto tão heróico como dar um voto aos socialistas-revolucionários, saíam pela primeira vez da sua insignificância política. As camadas pequeno-burguesas votavam atrasadas por Kerensky, porque ele encarnava a seus olhos a Revolução de Fevereiro que acabava, nesse dia, de chegar a elas. Com os seus 60% da maioria socialista-revolucionária, a Duma de Moscovo tinha o brilho de uma tocha que se extinguía. E foi assim o que aconteceu a todos os órgãos da administração autónoma da democracia. Mal surgiram, eles eram logo atingidos de impotência em virtude do atraso. Isso significava que a caminhadas da revolução depende dos operários e dos soldados e não da poeira humana que levantavam e faziam agitar as rabanadas de vento da revolução.
Tal é a dialéctica profunda e, ao mesmo tempo, simples despertar revolucionário das classes oprimidas. A mais perigosa das aberrações de uma revolução assenta no facto que o contador automático da democracia faz uma simples adição dos factos da véspera, do dia ao outro, e incita assim as democracias de pura forma a procurarem a cabeça da revolução lá onde se encontra na realidade o seu pesado rabo. Lenine instruía o seu partido a distinguir a cabeça do rabo.
Inclusão | 21/10/2010 |