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No exército, como no país, tinha lugar um interrupto agrupamento político das forças: as camadas inferiores evoluíam para a esquerda, as cimeiras para a direita. Ao mesmo tempo que o comité executivo se tornava um instrumento da Entente para dominar a revolução, os comités do exército que se tinham criado na qualidade de representação dos soldados contra a oficialidade tornavam-se os apoios da oficialidade contra os soldados.
A composição dos comités era muito diferenciada. Havia um bom número de elementos patrióticos que identificavam sinceramente a guerra e a revolução, caminhavam corajosamente para a ofensiva imposta do alto e davam vida por uma causa que não era a sua. Ao lado deles se encontravam heróis da frase, Kerensky de divisão e de regimento. Enfim, um bom número de medíocres espertos e desenrascados que procurando privilégios, emboscavam-se nos comités para escapar às trincheiras. Todo o movimento de massas, sobretudo na sua primeira fase, leva inevitavelmente à superficie todas essas variedades humanas. Só o período dos conciliadores foi particularmente rico em babosos e camaleões. Se as gentes formam um programa, o programa forma também as gentes. A escola da política de contacto torna-se, na revolução, a escola da briga e das intrigas.
O regime da dualidade de poderes excluía a possibilidade de criar uma força militar. Os cadetes, sendo alvo do ódio das massa populares, eram obrigadas, no exército, a tomar o falso nome de socialistas-revolucionários. Quanto à democracia, ela não podia regenerar o exército pela própria razão que o impedia de agarrar o poder: isto é inseparável de isso. Como facto curioso que, todavia, esclarece bastante a situação, Sokhanov nota que o governo provisório não organizou em Petrogrado uma só revista das tropas: os liberais e os generais não queriam a participação do Soviete numa revista, mas compreendiam bem que, sem o Soviete, uma revista seria irrealizável.
Os oficiais superiores ligavam-se cada vez mais aos cadetes – esperando que os partidos mais reaccionários tivessem levantado a cabeça. Os intelectuais pequeno-burgueses podiam dar ao exército os efectivos consideráveis de oficiais subalternos, tal como eles tinham dado tempo no czarismo. Mas não eram capazes de criar um corpo de comando à sua própria imagem, porque eles próprios não tinham figura própria. Como mostrou toda a marcha ulterior da revolução, o comando não podia ser recolhido senão tal que o dava a nobreza e a burguesia (assim fizeram os Brancos), ou recrutado e educado na base da selecção proletária, como fizeram os bolcheviques. Para os democratas pequeno-burgueses, nem isto nem aquilo era praticável. Eles deviam persuadir, solicitar, enganar toda a gente, e quando não chegavam a qualquer resultado, remetiam, em desespero de causa, o poder aos oficiais reaccionários para inspirar o povo das ideias justas revolucionárias.
Um após outro revelavam as úlceras da velha sociedade, arruinando o organismo do exército. A questão das nacionalidades, sob todos os seus aspectos – e a Rússia tinha abundância disso – penetrava cada vez mais profundamente a massa dos soldados, que, em mais de metade, não se compunha de Grã-Russos. O antagonismos nacionais se conjugavam e intercalavam-se, sobre diversos planos, com os antagonismos de classe. A política do governo no domínio nacional como em todos os outros hesitava, confuso e, seguidamente, parecia duplamente mentirosa. Certos generais namoricavam com formações nacionais do género do «corpo muçulmano disciplinado à francesa», sobre a frente romena. Os novos contingentes nacionais mostravam-se habitualmente mais resistentes que os do antigo exército, porque estavam reunidos à volta de novas ideias, sob uma nova bandeira. Esta união nacional, todavia, não se aguentou por muito tempo: ela rebentou logo pelo desenvolvimento ulterior da luta de classes. Mas, já, o próprio processo das formações de efectivos nacionais, ameaçando estender-se a metade do exército, metia esta num estado de liquefacção, decompondo os antigos contingentes, enquanto que os novos ainda não se tinham constituídos. Assim, as calamidades surgiam de todas as partes.
Miliokov escreveu na sua História que o exército foi devastado «pelo conflito entre as ideias de disciplina revolucionária e a disciplina militar normal, entre «a democratização» do exército e a manutenção da sua capacidade combativa», e aí, pela disciplina «normal», é preciso compreender a que existia no tempo do czarismo. O historiador teria sabido, parece, que toda grande revolução causou a perca do antigo exército, resultado de uma coligação não entre os principios abstractos da disciplina, mas entre as classes vivas. A revolução não admite somente uma severa disciplina no exército, ela cria-a. Todavia, esta disciplina não pode ser estabelecida por representantes da classe que derruba a revolução.
«É evidente – escrevia a 26 de Setembro de 1851 um sábio alemão a um outro – que a desorganização dos exércitos e o relaxamento total da disciplina é tanto a condição como o resultado de todas as revoluções vitoriosas.» Mas, seguindo os liberais, os socialistas russos, que tinham atrás deles 1905, não compreenderam nada, mesmo se reconheceram mais de uma vez que os seus dois mestres alemãs, um era Frederico Engels e o outro Karl Marx. Os mencheviques acreditavam a sério que o exército que tinha feito a insurreição continuaria sob o seus antigos chefes da antiga guerra. E essa gente denunciava os bolcheviques como utopistas.
O general Brussilov caracterizou muito nitidamente, no início de Maio, numa conferência no Grande Quartel General, o estado da opinião do comando: de quinze a vinte por cento tinham-se adaptado à nova ordem das coisas por convicção; uma parte dos oficiais começou a lisonjear os soldados e a incitá-los contra o comando; quanto à maioria, cerca de setenta e cinco por cento, ela não sabia o que fazer. A esmagadora maior da oficialidade não valia aliás absolutamente nada do ponto de vista estritamente militar.
Em conferência com os generais, Kerensky e Skobelev levavam todas as suas desculpas pela revolução que, infelizmente! «continuava» e que era preciso ter em conta. Sobre isso, um general Cem Negro, Gurko, respondeu como um moralizador: «Vocês dizem que a «revolução continua». Entendamo-nos bem... Parai a revolução e deixai-nos, nós militares, fazer o nosso dever até ao fim.» Kerensky, com todo o seu ser, correu diante dos generais até ao momento onde um deles, o valente Kornilov, por pouco o estrangulou com abraços.
A política de conciliação em tempos de revolução é uma política de oscilações febris entre classes. Kerensky era a oscilação em pessoa. Colocado à cabeça do exército que não se podia geralmente conceber desprovido de um regime claro, Kerensky tornou-se o instrumento directo da sua decomposição. Denikine dá uma curiosa lista de personagens do alto comando que foram revocados por não terem sabido se colocar na linha, ainda se na verdade ninguém soubesse, e Kerensky menos que qualquer um, onde se encontrava a linha, Alexeiev destituiu o comandante em chefe da frente Rossky e o comandante do exército Radko-Dmitriev por fraqueza e grande tolerância em relação aos comités. Brussilov, por motivos identiques, afastou o medroso Iodenitch. Kerensky despediu o próprio Alexeiev e os comandantes da frente Gurko e Dragomirov por se oporem a democratização do exército. Pela mesma razão, Brussilov afastou o general Kaledine e, a seguir, foi ele próprio afastado por ter tido complacências excessivas em relação aos comités. Kornilov abandonou o comando da região militar de Petrogrado por incapacidade em entender-se com a democracia. Isso não o impediu de ser nomeado comandante da frente e, no seguimento, generalíssimo. Denikine foi libertado das suas funções de chefe do estado-maior de Alexeiev por tendências nitidamente esclavagistas, mas logo foi nomeado comandante em chefe da frente Oeste. Esse jogo do eixo, que provava que em cima não sabiam o que queriam, descia por degraus até em baixo, até às companhias regimentares, e acelerava a decomposição do exército.
Ao mesmo tempo que exigia dos soldados obediência aos oficiais, os próprio comissários não tinham confiança nestes últimos. No mais alto da ofensiva, numa sessão do Soviete em Mohilev, do Grande Quartel General, em presença de Kerensky e de Brussilov, um dos membros do Soviete declarou: «Noventa por cento dos oficiais do Grande Quartel General criavam, pelos seus actos, um perigo de manifestação dos contra-revolucionários». Não era um segredo para os soldados. Eles tinham tido suficientemente tempo de conhecer os seus oficiais antes da insurreição.
No decurso de todo o mês de Maio, quando as tropas tomavam já suas posições para a ofensiva, o comissário ligado ao 7º exército telegrafava a Kerensky; «Na 12ª divisão, o 48º regimento avançou completo, os 45º e 46º regimentos avançaram em metade das suas companhias de linha; o 47º recusou avançar. Entre os regimentos da 13ª divisão, o 50º regimento avançou completamente. O 51º prometeu avançar amanhã; o 49º não avançou, não estando de serviço; o 52º recusou marchar e prendeu todos os oficiais.» O mesmo quadro se encontrava quase por todo o lado. Em relatório do comissário, o governo respondeu: «Dissolver o 45º, 46º, 47º e 52º regimentos, levar a julgamento os oficiais e soldados instigadores da insubordinação.» O tom era ameaçador, mas isso não fazia medo. Os soldados que não tinham vontade de se bater ne temiam nem a dissolução de seus regimentos nem o tribunal. Para desdobrar a frente, era preciso frequentemente alinhar efectivos contra outros. Na maior parte das vezes, eram os cossacos que serviam de instrumentos da repressão, como do tempo do czar, mas agora eles eram dirigidos por socialistas: não se tratava, com efeito, de defender a revolução?
No 4 de Junho, menos quinze dias antes do início da ofensiva, o chefe do estado-maior do Grande Quartel General enviou esse relatório: «A frente Norte encontra-se ainda em estado de fermentação, a confraternização com o inimigo continua, a atitude da infantaria em relação à ofensiva é negativa... Sobre a frente Oeste, a situação é indeterminada. Sobre a frente Sudoeste, nota-se um certo melhoramento do estado de espírito... Sobre a frente romena, não se observa melhoramentos particulares, a infantaria não quer avançar... »
No 11 de Junho 1917, o coronel comandando o 61º regimento escreve: «Só nos resta, a mim e aos oficiais, salvar-nos, dado que de Petrogrado, chegou um soldado da 5ª companhia, um leninista... Muitos dos meus melhores soldados e oficiais já fugiram.» O aparecimento de um só leninista num regimento era o suficiente para que os oficiais se metessem em fuga. É evidente que o soldado recém-chegado desempenhava o papel de primeiro cristal numa solução saturadas. Não se pense, aliás, que se trata aqui obrigatoriamente de um bolchevique. Nesta época, o comando chamava leninista a todo o soldado que, mais ousadamente que outros, levantava a voz contra a ofensiva. Numerosos eram, entre esses «leninistas», os que acreditavam sinceramente que Lenine tinha sido enviado por Guilherme. O comando do 61º regimento tentou intimidar os seus soldados ameaçando-os com a repressão governamental. Um desses homens respondeu: «Derrubámos o antigo governo, faremos o mesmo com Kerensky.» Aí estava uma nova linguagem. Os soldados alimentavam-se da agitação dos bolcheviques, procedendo-a de longe.
A frota do mar Negro, que se encontrava sob a direcção dos socialistas-revolucionários e era considerada, ao contrários das tripulações de Cronstadt, como uma cidadela do patriotismo, desde do fim de Abril foi enviada através do país uma delegação especial de trezentos homens, tendo à cabeça o expeditivo estudante Batkine, que se disfarçou em marinheiro. Esta delegação tinha o aspecto de uma mascarada; mas via-se aí também um entusiasmo sincero. Ela circulava pelo país a ideia da guerra até à vitória, mas, semana a semana, os auditores tornavam-se cada vez mais hostis. Enquanto que os do mar Negro baixavam cada vez mais o tom na sua pregação ofensiva, uma delegação do Báltico chegou a Sebastopol para pregar a paz. Os homens do Norte tiveram mais sucesso que os do Sul não tiveram no Norte. Sob a influência dos marinheiros de Cronstadt, os de Sebastopol tomaram a iniciativa, no 8 de Junho, de desarmar o comando e prender os oficiais mais detestados.
Na sessão do Congresso dos sovietes, no 9 de Junho, Trotsky perguntava como era possível que, «na frota-modelo do mar do Norte tinha sido enviada a todo o país delegações patrióticas, nesse ninho de patriotismo organizado, uma tal explosão ter-se-ia podido dar num momento tão crítico. O que é que isso demonstrava?» Ele não obteve resposta. No exército, a falta de autoridade e confusão era um suplício para todos, soldados, oficiais, membros dos comités. Todos sentiam a necessidade imediata de encontrar uma saída. Parecia aos de cima que a ofensiva teria venceria a incoerência e esclarecia a situação. Num sentido, era justo. Se Tseretelli e Tchernov se pronunciavam em Petrogrado pela ofensiva, conformando-se a todas as modulações da retórica democrática, por outro lado, na frente, os membros dos comités deviam, de acordo com os oficiais, iniciar a luta contra o novo regime no exército sem a qual a revolução era inconcebível, mas que era incompatível com a guerra. Os resultados da evolução manifestavam-se rapidamente. «Cada dia os membros dos comités orientava-se para a direita conta um oficial da marinha – mas, ao mesmo tempo, perdiam claramente a autoridade entre os marinheiros e os soldados. » Todavia, para a guerra, eram necessários soldados e marinheiros.
Brussilov, com o acordo de Kerensky, comprometeu-se na formação de batalhões de choque, formados por voluntários, reconhecendo assim, abertamente a incapacidade combativa do exército. Neste empreendimento juntaram-se imediatamente os elementos mais diversos, na maior parte das vezes aventureiros do género do capitão Moraviev que após a insurreição de Outubro, deitou-se ao lado dos socialistas-revolucionários de esquerda, para enfim, após certas proezas brilhantes do seu género, trair o povo soviético e cair com uma bala, seja executado pelos bolcheviques, seja por ele próprio. Inútil de dizer que os oficiais contra-revolucionários apoderaram-se avidamente dos batalhões de choque que eram para eles a forma legal de reunião de suas forças. A ideia na encontrou, todavia, quase nenhum eco na massa dos soldados. As aventureiras criaram batalhões de mulher, «as hussardas negras da Morte». Acontece que um desses batalhões, em Outubro, foi a última força armada de Kerensky para defender o palácio de Inverno. Mas tudo isso não foi de grande ajuda para abater o militarismo alemão. Ora, estava aqui precisamente o problema.
A ofensiva, prometida pelo Grande Quartel General aos Aliados para o principio da Primavera, foi adiada de semana a semana. Mas agora a Entente recusava categóricamente em consentir novos prazos. Ao exigir pela força uma ofensiva imediata, os Aliados não hesitaram na escolha dos meios. Ao lado das adjurações patéticas de Vandervelde, ameaçavam interromper o abastecimento de munições. O consulado geral da Itália em Moscovo declarou à imprensa, não à italiana mas à russa, que em caso de uma paz separada do lado da Rússia, os Aliados cederiam ao Japão toda liberdade de acção na Sibéria. Os jornais liberais, não os de Roma, mas de Moscovo, imprimiam com um entusiasmo patriótico essas insolentes ameaças, fazendo-as não sobre a paz separada mas sobre o adiamento da ofensiva. Os Aliados não se embaraçavam com cerimónias sobre outras relações: enviavam, por exemplo, material de artilharia que mereciam ir para a sucata: trinta e cinco por cento das peças de campanha recebidas de estrangeiro não resistiram a quinze dias de tiro moderado. A Inglaterra metia obstáculos aos empréstimos. Em contrapartida, a América, nova protectora, cedeu, sem que a Inglaterra soubesse, ao governo provisório, como adiantamento sobre a próxima ofensiva, um crédito de setenta e cinco milhões de dolares.
Dando o seu apoio aos ultimatos dos Aliados e desenvolvendo uma agitação furiosa pela ofensiva, a burguesia russa não dava ela própria qualquer confiança a esta ofensiva, recusando apoiar o empréstimo da liberdade. A monarquia derrubada aproveitou da ocasião para se remeter em acção: numa declaração dirigida ao governo provisório, os Romanov exprimiram a intenção de subscrever o empréstimo, mas acrescentaram que «a importância da subscrição dependeria do facto de saber se o Tesouro daria o dinheiro para a manutenção da família imperial». Tudo isso era lido no exército, que sabia que a maioria do governo provisório, tal como a maioria dos oficiais superiores, continuaria a esperar a restauração da monarquia.
Deve-se notar que, no campo dos Aliados, toda a gente não estava de acordo com os Vandervelde, os Thomas, e os Cachin, que empurravam o exército russo para o abismo. Avisos faziam-se ouvir. «O exército russo só é uma fachada – dizia o general Pétain – ele se desmoronará se mexer.» No mesmo sentido exprimia-se, por exemplo, a missão americana. Mas outras considerações levaram a melhor. Era preciso extirpar a própria alma da revolução. «A fraternização germano-russa – explicava mais tarde Painlevé – fazia tais desgastes, que deixando o exército russo imóvel arriscar-se-ia da o ver decompor-se rapidamente.»
A preparação da ofensiva sobre o plano político foi conduzida por Kerensky e Tseretelli que, no início, escondiam-se mesmo dos seus próprios partidários. Enquanto que os líderes meio informados continuavam a perorar sobre a defesa da revolução, Tseretelli insistia cada vez mais resolutamente na necessidade para o exército de estar pronto a agir. Tchernov, mais demoradamente que todos, resistiu, isto é fingia. Na sessão do governo provisório do 17 de Maio, o «ministro dos camponeses», como ele próprio se nomeava, foi pressionado por uma serie de questões; perguntavam-lhe se era verdade que, numa reunião política, sem o assentimento necessário, ele se pronunciara sobre a ofensiva. Acontece que Tchernov falou assim: «A ofensiva não lhe dizia respeito, a ele, como homem político; era um assunto dos estrategas da frente.» Essa gente brincava às escondidas com a guerra como com a revolução. Mas isso durou pouco tempo.
A preparação da ofensiva era acompanhada, bem entendido, de um reforço da luta contra os bolcheviques. Acusavam cada vez mais estes últimos de querer uma paz separada. A possibilidade de uma paz separada devia ser a única saída existente naquela situação, isto é, na fraqueza e no esgotamento da Rússia, em comparação com os outros países beligerantes. Mas ninguém ainda não tinha medido as forças do novo factor: a revolução. Os bolcheviques consideravam que se escaparia às perspectivas de uma paz separada na condição de opor ousadamente e até ao fim à guerra a força e a autoridade da revolução. Para isso, era preciso antes de tudo romper a aliança com a própria burguesia do país. No 9 de Junho, Lenine declarou ao Congresso dos sovietes:
«Quando se diz que nós tendemos a uma paz separada, não é verdade. Nós dizemos: nenhuma paz separada, com nenhum dos capitalistas, antes de tudo com os capitalistas russos. Ora, o governo provisório está em paz separada com os capitalistas russos. Abaixo esta paz separada!»
O processo-verbal nota «aplausos». Eram aplausos da pequena minoria do Congresso, e eram calorosos.
No comité executivo, a uns faltava-lhes resolução, outros queriam meter-se debaixo da cobertura de um órgão mais autorizado. No último momento, decidiu-se dizer a Kerensky que a ordem da ofensiva seria indesejável antes de uma decisão do Congresso dos sovietes. A declaração entregue na primeira sessão do Congresso dizia: «A ofensiva só pode desorganizar definitivamente o exército opondo alguns dos seus efectivos a outros»; e também: «O Congresso deve opor uma resistência imediata ao avanço contra-revolucionário, ou tomar a responsabilidade desta política, integralmente e abertamente.»
A decisão do Congresso dos sovietes em favor da ofensiva não era uma formalidade democrática. Tudo já estava pronto. Os artilheiros já há muito que estavam prontos a disparar sobre as posições inimigas. No 16 de Junho, numa ordem ao exército e a frota, Kerensky referindo-se ao generalíssimo, «com a aura das vitórias de um grande capitão», demonstrava a necessidade de dar «um golpe imediato e decisivo» e terminava assim: «Ordeno-vos – em frente!»
Num artigo redigido na véspera da ofensiva e comentando a declaração da fracção bolchevique no Congresso dos sovietes, Trotsky escrevia: «A política do governo arruína radicalmente as possibilidades de sucesso de uma acção militar... As premissas materiais da ofensiva são extremamente desfavoráveis. A organização do abastecimento do exército reflecte a desorientação económica geral, contra a qual o governo, na sua decomposição actual, não pode tomar nenhuma medida radical. As premissas morais da ofensiva são ainda mais desfavoráveis. O governo... viu diante do exército... a sua incapacidade em determinar a política da Rússia independentemente da vontade dos Aliados imperialistas. O resultado não podia ser senão a decomposição progressiva do exército... As deserções em massa... deixam, nas presentes condições, de ser o resultado simples de uma vontade viciosa individual, mas tornam-se a expansão de uma completa incapacidade do governo a ligar o exército revolucionário numa íntima unidade de pontos de vista ...» Indicando mais que o governo não se decidisse «em abolir imediatamente a propriedade fundiária dos nobres, isto é a única medida que provaria ao camponês mais atrasado que esta revolução era a sua revolução», o artigo conclui assim: «Em tais condições materiais e morais, a ofensiva deve inevitavelmente ter o carácter de uma aventura.»
Quase todo o comando considerava que a ofensiva, sem esperança do ponto de vista militar, era provocada exclusivamente por um cálculo político. Denikine, após ter percorrido a frente, declarou ao Brussilov: «Não creio que haja qualquer sucesso na ofensiva.» Além disso, aos elementos de dúvida, era necessário acrescentar a incompetência do próprio comando. Stankevitch, oficial e patriota, testemunha que a preparação técnica do assunto excluía a vitória, independentemente do estado moral das tropas: «A ofensiva foi organizada acima de toda a crítica.» Os líderes do partido cadete receberam a visita de uma delegação de oficiais, à cabeça da qual se encontrava o presidente da União dos oficiais, o cadete Novosiltsev, avisando-os que a ofensiva estava condenada ao fracasso e conduziria somente à exterminação das melhores tropas. Diante desses avisos, as altas autoridades safaram-se por frases: «Resta uma pequena esperança, disse o chefe do estado-maior do Grande Quartel General, o general reaccionário Lukomsky: um feliz princípio dos combates modificaria a psicologia da massa e os chefes teriam a possibilidade de retomar as rédeas que lhe caíam nas mãos.» Tal era o objectivo essencial: retomar as rédeas.
Contavam dar um grande golpe, segundo um plano elaborado há muito tempo, com as forças da frente Sudoeste, na direcção de Lvov (Lemberg); as frentes Norte e Oeste tinham que preencher as tarefas de apoio. A ofensiva devia começar em todas as frentes. Tornou-se claro logo que esse plano ultrapassava em muito as forças do comando. Decidiu-se fazer avançar as frentes uma após outra, começando pelas menos importantes. Mas isso também isso não era realizável. «Então, o alto comando, diz Denikine, decidiu renunciar a toda a estratégia sistemática, foi forçado a deixar às frentes a iniciativa da operação na medida onde elas estavam prontas.» Remetiam-se à Providência. E não faltavam ícones da czarina. Tentaram substituí-los por ícones da democracia. Kerensky fazia passeios, exortava, benzia. A ofensiva começou: no 16 de Junho, na frente Sudoeste, no 7 Julho, na frente Oeste; no dia 8 no Norte, no 9 na frente romena. O avanço das três frentes, em resumo fictícia, coincidiu com o início do esmagamento da frente principal, a do Sudoeste.
Kerensky comunicou ao governo provisório: «Hoje marca um grande triunfo da revolução. O 18 Junho, o exército revolucionário russo, um imenso entusiasmo, tomou a ofensiva.» «O acontecimento há muito esperado realizou-se – escreveu a Rietch dos cadetes – acontecimento que de uma vez trouxe a revolução russa de volta aos seus melhores dias.» No dia 19 de Junho, o velho Plekhanov declamava diante de uma manifestação patriótica: «Cidadãos! Se vos pedir que dia estamos, vocês dirão-me que é segunda-feira. Mas é um erro: hoje é domingo, dia da ressurreição para o nosso país e para a democracia no mundo inteiro. A Rússia, após ter rejeitado o jugo do czarismo, decidiu rejeitar o jugo do inimigo.» Tseretelli dizia, no mesmo dia, no congresso dos sovietes: «Uma nova página abre-se na história da grande Revolução russa... Os sucessos do nosso exército revolucionário devem ser saudados não somente pela democracia russa, mas também... por todos os que se esforçam efectivamente de combater o imperialismo.» A democracia patriótica tinha aberto todas as válvulas.
Os jornais trouxeram durante esse tempo uma alegre notícia: «A Bolsa de Paris festa a ofensiva russa pelo aumento de todos os valores russos.» Os socialistas tentavam determinar a solidez da revolução segundo a cota de valores. Mas a história ensina que a Bolsa sente-se tanto melhor que a revolução vai mal.
Os operários e a guarnição da capital não se deixaram levar nem um só minuto pela vaga de patriotismo artificialmente aquecida. O seu terreno continuava na perspectiva Nevsky. «Saímos à Nevsky – conta nas suas lembranças o soldado Tchinenov – e tentámos de fazer a agitação contra a ofensiva. Logo, os burgueses caíram sobre nós com pancadas de guarda-chuva... Nós apanhávamos e levávamos para as casernas... e dizíamos-lhes que seriam, logo no dia seguinte, expedidos para a frente.» Eram já os síntomas da guerra civil: as jornadas de Julho aproximavam-se.
No 21 de Junho, o regimento de metralhadoras, em Petrogrado, tomou, em assembleia geral, esta decisão: «Doravante, não enviaremos contingentes à frentes só no caso onde a guerra terá um carácter revolucionário... » Como ameaçavam dissolver o regimento, ele respondeu que não hesitava em dissolver «o governo provisório e os outras organizações que o apoiam». De novo, ouvimos aí notas ameaçadoras que procediam muito a agitação dos bolcheviques.
A crónica dos acontecimentos marca no 23 de Junho: «Efectivos do 11º exército ampararam-se da primeira e da segunda linha das trincheiras do adversário... » E logo ao lado: «A fábrica Baranovsky (seis mil operários) tiveram lugar novas eleições no Soviete de Petrogrado. Em substituição de três socialistas-revolucionários, três bolcheviques foram eleitos.»
No fim do mês, a fisionomia do Soviete de Petrogrado modificou-se consideravelmente. Na verdade, no 29 de Junho, o Soviete ainda tinha adoptado uma resolução saudando o exército na sua ofensiva. Mas com que maioria? É uma relação de forças completamente nova, que ainda não contámos. Os bolcheviques com os pequenos grupos de esquerda mencheviques e socialistas-revolucionários constituem já dois quintos do Soviete. Isso significa que, nas fábricas e nos quartéis, os adversários da ofensiva formam uma maioria incontestável.
O Soviete do bairro de Vyborg adoptou, no 24 de Junho, uma resolução em que cada palavra parece ser metida por uma grande martelada: «Nós... protestamos contra a aventura do governo provisório que leva a ofensiva em nome de velhos tratados de pilhagem... e rejeitamos toda a responsabilidade desta política de ofensiva do governo provisório assim como sobre os partidos que o apoiam, mencheviques e socialistas-revolucionários.» Retrogradados para o segundo plano, o grupo de Vyborg tomava agora a certeza do primeiro lugar. No Soviete de Vyborg, os bolcheviques predominavam completamente.
Doravante, tudo dependia da sorte da ofensiva, e dos soldados nas trincheiras. Quais modificações resultavam da ofensiva na consciência dos que deviam realizá-la? Eles tendiam irresistivelmente para a paz. Mas é precisamente esta tendência que os dirigentes conseguiram, numa certa medida, pelo menos num certo número de soldados, e para um curto período, transformar em vontade de ofensiva.
Desde da insurreição, os soldados esperavam do novo poder uma rápida conclusão da paz, e, no entanto, estavam dispostos a aguentar a frente. Mas a paz não vinha. Os soldados ao chegar a tentativas de confraternização com os alemãs e os austríacos, parcialmente sob a influência da agitação dos bolcheviques, mas sobretudo procurando por eles próprios a sua via para a paz. Todavia, contra a confraternização, começavam as perseguições por todo o lado. Além disso, descobriu-se que os soldados alemãs ainda estavam longe de se subtrair às ordens dos seus oficiais. A confraternização não tendo levado à paz, diminuía muito.
Na frente reinava, nesse tempo, um trégua de facto. Os alemãs aproveitaram para transferir enormes contingentes para a frente Oeste. Os soldados russos observavam como se despovoavam as trincheiras inimigas, como se retiravam as metralhadoras, como se retiravam os canhões. Sobre isso era construído um plano de preparação moral da ofensiva. Sistematicamente, tratavam de convencer os soldados que o inimigo estava completamente enfraquecido, que ele não tinha forças suficientes , que, do lado Ocidental, a América tinha a sua influência e que bastava, pelo nosso lado, exercer uma ligeira pressão para que a frente do adversário caia, depois disso teríamos a paz. Os dirigentes não acreditaram nisso mesmo uma só hora. Mas eles esperavam que o exército, no momento que teria metido a mão na engrenagem da guerra, não podia mais pará-la.
Não chegando ao fim, nem pela via diplomática do governo provisório, nem pela confraternização, um parte dos soldados tendeu sem dúvida para a terceira via; exercer um movimento que levaria ao fim da guerra. Foi assim precisamente que um dos delegados da frente no Congresso dos sovietes exprimia o estado de espírito dos soldados: «Nós temos, presentemente, diante de nós, uma frente alemã menos densa, não temos canhões diante de nós, e, se avançarmos empurramos o inimigo, aproximaremos-nos da paz desejada.»
O adversário, no princípio, encontrou-se extremamente fraco e recuou sem aceitar combater, aliás os atacantes não podiam travá-lo. Mas o adversário, em vez de se deslocar, reagrupou e voltoua a concentrar as suas forças. Tendo avançado uma vintena ou trintena de quilómetros de profundidade, os soldados russos descobriram um quadro que eles já conheciam suficientemente bem segundo as experiências dos anos precedentes: o adversário esperava-os em novas posições fortificadas. Aí, tornava-se evidente que, se os soldados consentiam ainda em avançar e favor da paz, eles rejeitavam a guerra. Levados às hostilidades por uma combinação de violência, de pressão moral e, sobretudo pelo engano, voltaram atrás bastante indignados.
«Segundo uma preparação da artilharia do lado russo, nunca vista pela sua potência e violência – disse um historiador russo da guerra mundial, o general Zaionczkowski – as tropas ocuparam quase sem percas a posição inimiga e não quiseram ir mais longe. Deserções começaram sobre todos os pontos e as posições foram abandonadas pelos contingentes inteiros.
Um homem político ucraniano, Dorochenko, antigo comissário do governo provisório em Galícia, conta que após a tomada das cidades de Halicz e de Kalusz, «houve imediatamente em Kalusz, um pavoroso progrom que atingiu exclusivamente os ucranianos e judeus – os polacos não foram atingidos. O progrom foi dirigido por não se sabe que mão experiente que indicou especialmente os estabelecimentos locais de cultura e de instrução ucranianos.» Participaram no progrom «os melhores efectivos, os menos pervertidos pela revolução», cuidadosamente seleccionados para a ofensiva. Mas, neste assunto, mostraram-se ainda mais claramente a sua verdadeira cara os dirigentes da ofensiva, os oficiais do czar, cheios de experiência para a organização de progroms.
No dia 9 de Julho, os comités e os comissários da 11º exército telegrafaram ao governo: a ofensiva alemã, iniciada a 16 de Julho, na frente do 11º exército tornou-se uma catástrofe incalculável... No estado de espírito das tropas que recentemente avançaram graças aos esforços heróicos da minoria, uma reviravolta brusca e desastrosa afirmou-se. O impulso da ofensiva foi rapidamente reduzida a nada. A maior parte dos efectivos encontram-se num estado crescente de decomposição. Não se trata já de falar de autoridade e de subordinação, as admoestações e a persuasão perderam força – responde-se pelas ameaças e por vezes mesmo por fuzilamentos.»
O comandante em chefe da frente Sudoeste, com o consentimento dos comissários e dos comités, publicou a ordem de disparar sobre os fugitivos.
No 12 de Julho, o comandante em chefe da frente Oeste, Denikine, voltava ao seu estado-maior «com a morte na alma e cheio de consciência da queda completa da última esperança... do milagre que ainda brilhava».
Os soldados não queriam bater-se. As tropas da retaguarda, às quais se dirigiram para a substituição dos contingentes enfraquecidos após a ocupação das trincheiras inimigas, responderam: «Porquê tomaram a ofensiva? Quem vos ordenou? É preciso terminar a guerra e não atacar.» O comandante do primeiro corpo siberiano, que era considerado como um dos melhores, comunicou que ao cair da noite os soldados, em multidão, companhias inteiras, afastaram-se da primeira linha que ainda não tinha sido atacada. «Compreendi que nós, chefes éramos impotentes em modificar a psicologia elementar das massas de soldados – e, amargamente, amargamente, por muito tempo, eu chorava.»
Uma das companhias recusou mesmo de passar um panfleto ao adversário sobre a tomada de Halicz enquanto que não se encontrasse um soldado que traduzisse em russo o texto alemão. Esse facto marca toda a desconfiança da massa dos soldados em relação ao dirigentes, antigos como novos, os de Fevereiro. Séculos de ultrajes e de violências faziam uma erupção vulcânica.
Os soldados sentiam-se de novo enganados. A ofensiva não levava à paz mas à guerra. Os patriotas emboscados na retaguarda perseguiam e maltratavam os soldados como cobardes. Mas os soldados tinham razão. O que os guiava, era um justo instinto nacional, reflectido através da consciência das pessoas oprimidas, enganadas, torturadas, insurgidas pela esperança revolucionária e de novo mergulhadas no sangrento desperdício. Os soldados tinham razão. A continuação da guerra não podia dar ao povo russo nada senão novas vítimas, humilhações, calamidades, nada senão o reforço da servidão interior e exterior.
A imprensa patriótica de 1917, não somente a dos cadetes, mas a dos socialistas, não deixou de assinalar o contraste entre os soldados russo, desertores e cobardes, e os heroicos batalhões da grande Revolução francesa. Essas confrontações testemunham não somente a incompreensão da dialéctica do processo revolucionário, mas da total ignorância da história.
Os notáveis grandes capitãs da Revolução do Império francês começavam, quase constantemente, em infringir a disciplina, como desorganizadores; Miliokov diria: como bolcheviques. O futuro marechal Davout, quando era tenente de Avout, durante longos meses, em 1789-1790, dissolvia a disciplina «normal» na guarnição de Aisdenne, expulsando os comandantes. Em toda a França teve lugar, até meados de 1790, um processo de total decomposição do velho exército. Os soldados do regimento de Vincennes obrigava os seus oficiais a tomar as refeições em comum com eles. A frota expulsava os seus oficiais. Uma vintena de regimentos submeteram os seus comandantes a violências de vários tipos. Em Nancy, três regimentos meteram na prisão os oficiais. A partir de 1790, os tribunos da Revolução francesa não pararam de repetir, a propósito dos excessos do exército: «É o poder executivo que é culpado de não ter destituído oficiais hostis à Revolução.» É notável que, para a dissolução do antigo corpo dos oficiais, se tenham pronunciado tão bem Mirabeau como Robespierre. O primeiro sonhava restabelecer o mais cedo possível uma forte disciplina. O segundo queria desarmar a contra-revolução. Mas todos os dois compreendiam que o antigo exército não podia mais durar.
Na verdade a Revolução russa, diferente disso da francesa, produzia-se em tempo de guerra. Mas não era razão para fazer uma excepção à lei histórica assinalada por Engels. Ao contrário, as condições de uma guerra prolongada e infeliz não podiam senão acelerar e agravar o processo da decomposição revolucionária do exército. A ofensiva falhada e criminosa da democracia fez o resto. Doravante, os soldados diziam todos: «Basta de efusão de sangue! Para que serve a liberdade e a terra se não existimos mais?» Quando os pacifistas cultivados tentavam suprimir a guerra com argumentos racionalistas, eles são simplesmente ridículos. Mas quando as massas armadas avançam contra a guerra com argumentos de razão, isso significa que a guerra está a chegar ao fim.
Inclusão | 17/09/2010 |