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O que se criou, no 27 de Fevereiro, no palácio Tauride, sob a dominação do «Comité executivo do Soviete dos deputados operários», tinha essencialmente pouco em comum com esta denominação. O Soviete dos deputados operários de 1905, primeiro ascendente do sistema, nasceu da greve geral. Ele representa directamente as massas em luta. Os dirigentes da greve tornaram-se deputados do Soviete. A selecção dos efectivos produziu-se debaixo de fogo. O órgão de direcção foi eleito pelo Soviete para dirigira ulteriormente a luta. É precisamente o comité executivo de 1905 que meteu ordem na insurreição armada.
A Revolução de Fevereiro, graças ao levantamento dos regimentos, saiu vitoriosa antes que os operários tivessem constituído os sovietes.
O comité executivo formou-se arbitrariamente, antes do Soviete independentemente das fábrica e dos regimentos, após a vitória da revolução. Vemos aqui a clássica iniciativa dos radicais que se mantêm afastados da luta revolucionária, mas dispõem-se a recolher os frutos. Os verdadeiros dirigentes operários ainda não tinham deixado a rua, desarmando uns armando outros, consolidavam a vitória. Os mais previdentes foram imediatamente alarmados pelas informações anunciando que no palácio Tauride criava-se um certo Soviete de deputados operários. Assim como a burguesa liberal, esperando uma revolução palaciana que alguém deveria cumprir, tinha preparado, durante o Outono de 1916, um governo de reserva para o impor, em caso de sucesso, ao novo czar - os intelectuais radicais constituíam o seu governo sombra no momento da vitória de Fevereiro. E como, pelo menos no passado, eles aderiram ao movimento operário e estavam inclinados a referir-se às suas tradições, deram ao filho o título de «comité executivo do Soviete». Foi uma das falsificações meio premeditadas que a história está cheia, nomeadamente a história dos levantamentos populares.
Quando os elementos tomam uma feição revolucionária e que se quebra a ordem de sucessão, as camadas «instruídas», chamadas a participar no poder, confiscam decididamente os nomes e os símbolos que se associam às lembranças heróicas das massas. As palavras, frequentemente, dissimulam a essência das coisas, sobretudo quando estão em jogo os interesses das camadas mais influentes. A enorme autoridade do comité executivo, desde do dia da sua criação, apoiava-se no seu pretendido direito de sucessão em relação ao Soviete de 1905. O comité, rectificado pela primeira e caótica assembleia do Soviete, exerceu seguidamente uma influência decisiva, tanto sobre a composição do Soviete como sobre a sua política. Esta influência foi tanto mais conservadora que a selecção natural dos representantes revolucionários, habitualmente assegurado por uma atmosfera incandescente de luta, não se produzia mais. A insurreição pertencia já ao passado, todos exaltavam-se da vitória, dispunham-se em organizar a sua existência: as almas amoleciam-se, e certas cabeças também. Era necessário meses de novos conflitos e de luta nas novas condições, determinando um reagrupamento de homens, para que os sovietes, órgãos que concretizavam a vitória, tornaram-se verdadeiros órgãos de luta e de preparação para um novo levantamento. Insistimos tanto mais sobre este aspecto do assunto que ele até ao presente ficou completamente na sombra.
Todavia, não eram somente as condições nas quais se formaram o comité executivo e o Soviete que determinaram o seu carácter moderado e conciliador: existiam causas mais profundas e duráveis que agiram no mesmo sentido.
Havia em Petrogrado mais de cem cinquenta mil soldados. Como operários e operárias de todas as categorias, pelo menos quatro vezes mais. Contudo, contra dois delegados operários no Soviete, contavam-se cinco delegados soldados. As normas da representação eram extremamente extensíveis, todas as proveniência eram dos soldados. Enquanto que os operários elegiam um só representante por mil indivíduos, pequenos contingentes militares enviavam frequentemente dois delegados. O tecido cinzento dos uniformes constituiu o principal fundo do quadro do Soviete.
Mas mesmo entre os civis, nem todos foram eleito pelos operários, longe disso! No Soviete foram admitidos um bom número de indivíduos por convite pessoal, ou por protecção, ou simplesmente graças às suas próprias maniganças - advogados, e médicos radicais, estudantes, jornalista - que representavam diversos grupos problemáticos, mas, muitas vezes, as suas ambições particulares. Esta evidente alteração do carácter do Soviete era bem tolerada por dirigentes que esperavam diluir a essência demasiado acre das fábricas e das casernas com a água morna da pequena burguesia instruída. Números desses novatos ocasionais, aventureiros, impostores, palradores habituados à tribuna, acotovelando com autoridade, mantiveram durante muito tempo em xeque os operários silenciosos e os soldados irresolutos.
Se foi assim em Petrogrado, não era difícil imaginar como as coisas se passavam na província, onde a vitória chegou sem qualquer luta. Todo o país formigava de soldados. As guarnições de Kiev, de Helsingfors, de Tiflis não cediam em número à de Petrogrado: em Saratov, Samara, Tambov, Omsk, contavam-se de setenta mil a oitenta mil soldados: em Iaroslav, Ekaterinjlav, Ekatarinburgo, nos sessenta mil: numa longa serie de outras cidades, cinquenta, quarenta e trinta mil. A representação soviética era diversamente organizada segundo os lugares, mas colocava por todo o lado a tropa numa situação privilegiada. No sentido político, manifestava-se assim o esforço dos próprios operários para se aproximarem o mais possível dos soldados. Os dirigentes empenhavam-se de boa vontade em contentar os oficiais. Além de um número considerável de tenentes e alferes que, nos primeiros tempos, tinham saído das fileiras, davam frequentemente, sobretudo na província, uma representação particular no comando. Como resultado, os militares tinham, em numerosos sovietes, a maioria esmagadora. A massa dos soldados, que não tinham ainda fisionomia política, determinava, por intermediário dos seus representantes, a fisionomia dos sovietes.
Em toda a representação existe um elemento de desproporção. É um elemento particularmente considerável após insurreição. Muitas vezes, no início figuram como deputados soldados politicamente incapazes, gente absolutamente estrangeira à tropa e à revolução, intelectuais e meio intelectuais de toda a especie, emboscados nas guarnições da retaguarda e que se mostravam patriotas. Assim se criava uma divergência entre a mentalidade das casernas e a dos sovietes. O oficial Stankevitch, que os homens do seu batalhão acolhiam, após a insurreição, com um ar deprimido e desconfiado, falou com sucesso, numa secção de soldados, sobre o tema inflamado da disciplina. «Porquê, perguntava, as disposições dos espíritos, no Soviete, ainda são suaves, mais agradáveis, que as dos batalhões?» Esta ingénua incompreensão mostra mais uma vez como é difícil para os verdadeiros sentimentos da base caminharem para as cimeiras.
Contudo, desde do 3 de Março, as reuniões de soldados e de operários começam a exigir do Soviete que ele elimine imediatamente o governo provisório da burguesia liberal e tome ele próprio o poder. A iniciativa, ainda sobre este aspecto, pertence ao bairro de Vyborg. E, com efeito, qual reivindicação podia ser mais compreensível, mais aferente às massas? Mas logo esta agitação foi suspendida: não somente porque os partidários da defesa nacional opuseram-se violentamente, mas, coisa mais grave, porque a direcção bolchevique, desde da primeira quinzena de Março, inclinava-se de facto diante do regime do duplo poder. Ora, excepto os bolcheviques, ninguém não podia colocar descaradamente a questão do poder. Os dirigentes de Vyborg tiveram que bater em retirada. Os operários de Petrogrado, portanto, nem confiaram por uma hora no novo governo: não o consideram com o seu. Mas eles davam atenção aos soldados, esforçando-se para não se oporem a eles demasiado brutalmente. Os soldados que apenas balbuciavam as primeiras palavras de política, ainda como mujiques não confiassem em qualquer desses senhores, eles prestavam grande atenção aos seus representantes, os quais, por outro lado, escutavam respeitosamente os líderes autorizados do comité executivo: enquanto que estes últimos não faziam outra coisa senão apalpar o pulso ansiosamente da burguesia liberal. De alto a baixo, tudo assentava nessas atenções - provisoriamente.
Todavia, o estado de espírito da base surgia no exterior, e a questão do poder, artificialmente afastada, ressurgia cada vez, ainda que sob uma forma disfarçada. «Os soldados não sabem quem escutam», declararam os distritos e a província, levando assim as suas queixas ao executivo, sobre a dualidade de poderes. As delegações das frotas do Báltico e do mar Negro afirmam, no 16 de Março, que estão dispostas a considerar o governo provisório na medida onde este agirá em conformidade com o comité executivo. Noutros termos, esses delegados dispunham-se em não ter em conta o governo. Mais se avança, mais esta nota se torna insistente: «O exército e a população devem obedecer unicamente às decisões do Soviete», tal foi a resolução do Regimento 172 de reserva, que formulou ao mesmo tempo esse corolário: «As ordens do governo provisório que infringem as decisões do Soviete não estão sujeitas à execução.» Foi com um sentimento complexo de satisfação e inquietação que o executivo sancionou esta disposição. Foi em rangendo os dentes que o governo a tolerou. Um e outro não tinham outra coisa que fazer.
Desde do princípio de Março, os sovietes surgem nas principais vilas e centros industrial. Daí, em algumas semanas, eles estendem-se por todo o país. Foi só em Abril-Maio que eles começaram a ganhar os campos. Em nome do campesinato, primitivamente, foi sobretudo o exército que falava.
O comité executivo do Soviete de Petrogrado tinha naturalmente tomado a importância de uma grande instituição do Estado. Os outros sovietes regulavam o passo sobre o da capital, adoptando, um após outro, as resoluções de apoio condicional ao governo provisório. Ainda que, nos primeiros meses, as relações entre o Soviete de Petrogrado e os sovietes provinciais se arranjassem, sem conflitos nem mal-entendidos graves, a necessidade de uma organização de Estado não deixava de surgir de toda a situação. Um mês após a queda da autocracia, uma primeira conferência dos sovietes foi convocada, incompleta e de composição unilateral. Se, dos cento e oitenta e cinco organizações representadas, os sovietes de localidades constituíam dois terços, eram portanto sobretudo sovietes de soldados: com os representantes das organizações da frente, delegados militares, na maior parte oficiais, formavam uma esmagadora maioria. Os discursos retiniam sobre a guerra até à vitória completa e as inventivas dirigidas aos bolcheviques, apesar da sua conduta ser mais que moderada. A conferência associou dezasseis conservadores provinciais ao comité executivo de Petrogrado, legitimando o seu carácter de instituição de Estado.
A ala direita reforçou-se ainda mais. A partir de então, intimidaram cada vez mais frequentemente os descontentes, ameaçando-os com a província. Uma decisão sobre a reorganização da composição do Soviete de Petrogrado, adoptada no 14 de Março, não foi executada. Pouco importa: não é um soviete local que decide, mas é o comité executivo pan-russo. Os líderes oficiais tinham ocupado uma posição quase inacessível. As mais importantes decisões eram tomadas pelo executivo, mais exactamente no seu núcleo dirigente, com acordo prévio com o núcleo do governo. O Soviete foi afastado. Tratavam-lhe de reunião: «Não é aí, nas assembleias gerais, que se faz a política, e todos esses «plenários» não têm absolutamente nenhuma importância prática» (Sokhanov). Infatuados deles próprios, os mestres do destino consideravam que ao confiarem-lhes a direcção, os sovietes tinham em suma preenchido o seu papel. O próximo futuro que não é assim. A massa é muito paciente, mas ela não é desse barro que se pode modular à vontade. E, nas épocas revolucionárias, ela instruiu-se rápidamente. Aí reside a mais alta força da revolução.
Para melhor compreender o desenvolvimento ulterior dos acontecimentos, é necessário analizar a característica dos dois partidos que, no início da revolução, formaram um bloco compacto, dominaram os sovietes, nas municipalidades democráticas, nos congressos da democracia dita «revolucionária», e conservaram mesmo a sua maioria, aliás cada vez mais frágil, até à Assembleia constituinte, que se tornou o último reflexo da sua potência de outrora, tal como o avermelhar da cimeira de uma montanha iluminada pelo sol posto!
Se a burguesia russa se mostrou demasiado tarde para ser democrática, a democracia russa, pela mesma razão, acreditava-se socialista. A ideologia democrática dispensou até o esgotamento irremediável na corrente do século XIX. No limiar do século XX, a intelliguentsia radical russa, se ela queria encontrar o acesso junto das massas, tinha necessidade de uma cor socialista. Tal foi, no conjunto, a causa histórica que levou a criação de dois partidos intermediários: mencheviques e socialistas-revolucionários. Cada um deles tinha, no entanto, a sua genealogia e a sua ideologia particular.
As concepções dos mencheviques estabeleceram-se na base marxista. Sempre em consequência do atraso histórico da Rússia, o marxismo aí consistiu no início não uma crítica da sociedade capitalista como argumento da inevitabilidade do desenvolvimento burguês do país. Astuta, a história utilizou uma teoria castrada da revolução proletária para ocidentalizar, por esse meio, num espírito burguês, as largas esferas da intelliguentsia populista rança. Nesse processo, os mencheviques ocuparam o lugar mais importante. Constituindo a ala esquerda da intelliguentsia burguesa, eles ligaram-se esta às camadas intermédias dos operários mais moderados que atraía uma actividade legal à volta da Duma e nos sindicatos.
Os socialistas-revolucionários, em contrapartida, combatiam teoricamente o marxismo, sofrendo parcialmente a sua influência. Eles consideravam-se como um partido realizando a aliança dos intelectuais, operários, e camponeses, bem entendido sob o controlo da razão crítica. No domínio económico, suas ideias representavam uma mistura indigesta de diversos sedimentos históricos, reflectindo as condições contraditórias da existência do campesinato num país onde crescia rápidamente o capitalismo.
A futura revolução deveria ser, para os socialistas-revolucionários não burguesa e não socialista, mas «democrática»: eles substituíam uma formula política pelo conteúdo social. Traçavam assim a via entre a burguesia e o proletariado, e, em consequência, o papel de árbitros entre este últimos. Após Fevereiro, pode parecer que os socialistas-revolucionários estavam muito próximos desta situação.
Desde da época da primeira revolução, eles já tinham raízes na classe camponesa. Durante os primeiros meses de 1917, toda a intelliguentsia dos campos assimilou a formula tradicional dos populistas: «terra e liberdade». Diferentemente dos mencheviques, sempre ligados a um partido exclusivamente urbano, os socialistas-revolucionários tinham encontrado, parece, um apoio extremamente forte entre os rurais. Ainda mais, eles dominavam mesmo nas cidades: nos sovietes, por secções de soldados, e nas primeiras municipalidades democráticas, onde recolhiam a maioria absoluta dos votos. A potência desse partido pareciam ilimitada. Na realidade, era somente uma aberração política.
Um partido pelo qual toda a gente vota, fora uma minoria que sabe por quem votar, não é um partido, assim como a linguagem que se servem as crianças de todos os países não é uma língua nacional. O partido socialista-revolucionário trazia solenemente uma denominação completamente prematura, informe e confusa na Revolução de Fevereiro. Quem quer que fosse não tinha herdade do passado pré-revolucionário motivos suficientes para votar seja pelos cadetes, seja pelos bolcheviques, votava pelos socialistas-revolucionários. Mas os cadetes mantinham-se na campo entrincheirado dos proprietários. Os bolcheviques eram ainda pouco numerosos, incompreensíveis, mesmo assustadores. Votar pelos socialistas-revolucionários significava votar por uma revolução no seu conjunto e não comprometia a nada. Nas cidades, os soldados esforçavam-se para se aproximarem do partido que defendia a causa dos camponeses, um esforço dos elementos atrasados da classe operária para se manter mais perto dos soldados, um esforço do povo das cidades para não se afastar dos soldados e dos camponeses. Nesse período, uma carta de membro do partido socialista-revolucionário dava um direito provisório de entrada nas instituições revolucionárias e mantinha o seu valor até à troca por um documento de maior valor. Não foi sem razão que se disse do grande partido, que acolhia uns e outros, que era um «zero grandioso».
A datar da primeira revolução, os mencheviques deduziam a necessidade de uma aliança com os liberais segundo o carácter burguês da revolução, e situavam esta aliança acima de uma colaboração com a classe camponesa, considerada como aliada pouco segura. Os bolchevique, por outro lado, estabeleciam toda a perspectiva da revolução sobre uma aliança do proletariado com os camponeses contra a burguesia liberal. Como os socialistas-revolucionários consideravam-se antes de tudo um partido camponês, convinha, dizia-se, esperar, na revolução, por uma aliança dos mencheviques com a burguesia liberal. Na realidade nós vemos na Revolução de Fevereiro um grupo inverso. Os mencheviques e os socialistas-revolucionários agiam na mais estreita colaboração que completa o seu bloco com a burguesia liberal. Os bolcheviques, sobre o aspecto oficial da política, estão completamente isolados.
Esse facto inexplicável à primeira vista é, na realidade, completamente lógica. Os socialistas-revolucionários não eram de forma nenhuma um partido camponês, a despeito dos inumeráveis simpatias que acolhiam suas palavras de ordem no campo. O núcleo essencial do partido - aquele que determina a política efectiva e destaca do seu próprio meio ministros e funcionários - era muito mais ligado aos círculos liberais e radicais da cidade que com as massas camponesas revoltadas. Esse núcleo dirigente, terrivelmente inchado pelo afluxo de socialistas-revolucionários carreiristas de Março foi mortalmente assustado pela amplitude do movimento camponês que desfilava sob as suas palavras de ordem. Os populistas da última colheita desejavam, certamente, aos camponeses todo o bem possível, mas não queriam nenhum «galo vermelho», não queriam o incêndio. O medo dos socialistas-revolucionários diante dos campos revoltados é igual ao dos mencheviques diante da ofensiva do proletariado: no seu conjunto, o espantalho dos democratas reflectiu um perigo real que o movimento dos oprimidos suscitava para as classes possuidoras, agrupando estas últimas num só campo da reacção burguesa e nobiliário. O bloco dos socialistas-revolucionários com o governo do nobre proprietário Lvov marcava a sua ruptura com a revolução agrária, e também com o bloco dos mencheviques com os industriais e banqueiros do genero de Gotchkov, de Terechtchenko e de Konovalov, equivalia a sua ruptura com o movimento do proletariado. A aliança dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários significou, nessas condições, não uma colaboração do proletariado com os camponeses, mas uma coligação de partidos que romperam com o proletariado e o campo para constituírem em comum um bloco com as classes possuidoras.
Do que é dito acima, vê-se claramente a que ponto era fictício o socialismo dos dois partidos democráticos: mas isso não significa de forma nenhuma que o seu democratismo tenha sido real. Ao contrário, é precisamente a anemia do democratismo que precisava de uma camuflagem socialista. O proletariado russo levava a luta pela democracia num antagonismo irredutível com a burguesia liberal. Os partidos democráticos, constituindo bloco com a burguesia liberal, devia inevitavelmente entrar em conflito com o proletariado. Tais são as raízes sociais da luta implacável que se desenrolou seguidamente entre conciliadores e bolcheviques.
Se levarmos os processos esboçados acima ao seu mecanismo de classe completamente despojados, que, bem entendido, não tomaram consciência, até ao fim, os participantes e mesmo os dirigentes dos dois partidos conciliadores, obtemos aproximadamente esta distribuição da funções históricas. A burguesia liberal não podia mais amparar-se da massa. Em consequência, ela temia a revolução. Mas a revolução era necessária para o desenvolvimento da burguesia. Da burguesia censitária destacaram-se duas classes compostas dos seus mais jovens irmãos e filhos. Um dos destacamentos dirigiu-se para os operários, outro para os camponeses. Um e outro tentaram atrair os operários e camponeses, demonstrando com sinceridade o ardor que eles eram socialistas hostis à burguesia. Por esta via, eles adquirem, efectivamente, influência considerável sobre o povo. Mas, a curto prazo, o efeito resultando das suas ideias ultrapassa o seu pensamento. A burguesia sentiu-se em perigo de morte e dá o sinal de alarme. Os dois clans que se tinham destacado dela, mencheviques e socialista-revolucionários, responderam em conjunto à chamada do mais velho da família. Passando sobre as velhas dissensões, eles apoiaram-se e, voltando as costas às massas, correram ao socorro da sociedade burguesa.
Os socialistas-revolucionários, mesmo comparados aos mencheviques, eram espantosamente frágeis e tornavam-se débiles. Aos bolcheviques, eles pareciam, em todos os momentos, cadetes de terceira ordem. Aos cadetes, eles pareciam bolcheviques de terceira ordem. A segunda qualidade, nos dois casos, era atribuída aos mencheviques. A sua base móvel e ideologia informe ocasionavam uma selecção individual correspondente: todos os líderes socialistas-revolucionários traziam a marca do inacabado, do superficial e de uma ligeireza sentimental. Pode-se dizer sem exagero: o bolchevique da base mostrava mais perspicácia em política, isto é nas relações entre as classes, que os mais ilustres líderes socialistas revolucionários.
Não tendo critérios sólidos, os socialistas-revolucionários mostravam-se inclinados para imperativos morais. Inútil de mostrar que as pretensões moralizadoras não os impedia de forma alguma manifestar na grande política, as mesquinhas vigarices que caracterizam tão bem, em geral, os partidos intermediários, desprovidos de base sólida, de doutrina clara e de fundação moral autentica.
No bloco dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, o papel dirigente pertencia aos menchevique, ainda se a maioria fosse incontestavelmente do lado dos socialistas-revolucionários. Esta distribuição dos papeis traduzia à sua maneira a hegemonia da cidade sobre o campo, a preponderância da pequena burguesia urbana sobre a rural, e enfim a predominancia ideológica da intelliguentsia «marxista» sobre essa outra intelliguentsia que se agarrava a uma sociologia nacionalista de «verdadeiros russos» e prevalecia-se da indigência da história antiga do país.
Nas primeiras semanas que seguiram a insurreição, nenhum dos partidos de esquerda, como se sabe, não tinha na capital verdadeiro estado-maior. Os líderes geralmente reconhecidos dos partidos socialistas viviam na emigração. Os líderes de segunda linha encaminhavam-se para o centro, vindo do longínquo Oriente. Daí resultou, nos dirigentes provisórios, uma atitude circunspecta na expectativa, que os aproximava entre eles. Nem um dos grupos dirigentes, nesse tempo não ia até ao fim do seu pensamento. A luta dos partidos no Soviete tinha um carácter extremamente pacífico: dizia-se que não se tratava senão de nuanças no interior de uma só e mesma «democracia revolucionária». À chegada de Tseretelli, vindo da deportação (19 de Março), a direcção soviética fez uma brusca viragem à direita, num sentido de uma completa responsabilidade pelo poder e pela guerra. Mas os bolcheviques também, a meados de Março, sob a influência de Kamenev e de Estaline, que voltavam da deportação, bifurcaram rápidamente para a direita, de maneira que a distância entre a maioria soviética e a oposição de esquerda no início de Abril tornou-se, talvez, menor do que tinha sido no início de Março. A verdadeira diferenciação começou um pouco mais tarde. Poder-se-ia dar a data precisa: 4 de Abril, no dia seguinte da chegada de Lenine a Petrogrado.
O partido menchevique tinha à cabeça das suas diversas tendências um certo número de figuras iminentes, mas nem um só guia revolucionário. A extrema direita, onde dominavam os velhos mestres da social democracia russa, Plekhanov, Zassolitch, Deutsch, mantinha-se na posição patriótica já sob a aristocracia. Foi mesmo na véspera da Revolução de Fevereiro que Plekhanov, publicou num jornal americano que as greves e outros procedimentos da luta dos operários na Rússia seriam agora criminosos. Os grandes círculos de velhos mencheviques, personificados entre outros por Martov, Dan, Tseretelli, ligavam ao campo de Zimmerwald e rejeitavam toda responsabilidade sobre a guerra. Mas o internacionalismo dos mencheviques de esquerda, mesmo o dos socialistas-revolucionários de esquerda, dissimulavam na maior parte dos casos um espírito de oposição democrática. A Revolução de Fevereiro reconciliou a maioria desses «zimmerwaldianos» com a guerra, na qual eles viram desde logo a defesa da revolução. O mais resoluto nessa via foi Tseretelli, que arrastou consigo Dan e outros.
Martov, que o início da guerra o tinha surpreendido em França e que só voltou do estrangeiro no dia 9 de Maio, não pôde ver que os seus correlegionários da véspera tinham chegado, após a insurreição de Fevereiro, a um ponto donde tinham partido Guesde, Sembat e outros em 1914, quando eles se encarregaram de defender a república burguesa contra o absolutismo germanico. Tendo tomado a cabeça da ala esquerda dos mencheviques, que não conseguiram a atribuição de um papel sério na revolução, mesmo pequeno que fosse, Martov ficou na oposição em relação à política de Tseretelli—Dan, contrariando ao mesmo tempo a aproximação dos mencheviques de esquerda para os bolcheviques. Em nome do menchevismo oficial agiu Tseretelli que seguia uma maioria indubitável: os patriotas de antes da revolução uniram-se sem dificuldades aos patriotas do apelo de Fevereiro. Plekhanov tinha todavia o seu grupo, completamente chauvinista, situado fora do partido e mesmo fora do Soviete. A fracção de Martov, sem ter abandonado o partido, não tinha jornal próprio como não tinha política. Como sempre nos grandes acontecimentos históricos, Martov tinha irremediavelmente perdido a cabeça e não se baseava em mais nada. Em 1917 como em 1905, a revolução apenas se apercebeu da existência desse homem notável.
À presidência do Soviete de Petrogrado, e seguidamente do comité executivo, foi quase automaticamente que se encontrou o presidente da fracção menchevique na Duma, Tchkhedze. Ele esforçava-se por introduzir nos seus deveres tudo o que ele tinha em reserva de probidade, cobrindo a sua constante incerteza de piadas sem graça. Ele trazia a indelével marca da sua origem provincial. A Georgia montanhosa, país do sol, das vinhas, país de camponeses e de fidalgotes, contando um fraca percentagem de operários, tinha produzido uma larga camada de intelectuais de esquerda, dóceis, dotados de temperamento, mas, na sua esmagadora maioria, não se elevavam acima do horizonte pequeno burguês. Em todas as quatro Dumas, a Georgia enviou como deputados mencheviques, e, nas quatro fracções parlamentares, os seus deputados interpretaram o papel de líderes. A Georgia tornou-se a Gironda da revolução russa. Se os Girondionos do século XVII foram acusados de federalismo, os Girondinos da Georgia, tendo começado pela defesa de uma Rússia una e indivisível, terminaram pelo separatismo.
A figura mais notável da Gironda georgeana foi, indiscutivelmente, Tseretelli, antigo deputado na segunda Duma, que, desde do seu regresso da deportação, tomou a cabeça não somente dos mencheviques, mas de toda a maioria soviética de então. Não teórico, nem mesmo jornalista, mas notável orador, Tseretelli foi e continuou a ser um radical do tipo meridional francês. Nas condições da rotina parlamentar, ele ter-se-ia sentido como um peixe na água. Mas tinha nascido numa época revolucionária e tinha-se intoxicado, na sua juventude, de uma dose de marxismo. De qualquer modo, de todos os mencheviques, foi ele quem mostrou, nos acontecimentos da revolução, mais desenvoltura e esforço para ser consequente. Foi precisamente para isso que, mais que outros, ele contribuiu ao afundamento do regime de Fevereiro. Tchkheidze subordinou-se totalmente a Tseretelli, ainda que, por momentos, intimidado diante da sua intransigência de doutrinário que censurava o revolucionário, na véspera ainda forçado, de representante conservador da burguesia.
O menchevique Skobelev, que devia toda uma nova popularidade à sua situação de deputado da última Duma, dava, não somente por causa do ser ar de jovem, a impressão de um estudante que interpreta numa cena de família, o papel de um homem de Estado. Skobelev tornou-se um especialista de extintor de «excessos», de eliminador de conflitos locais, e ocupou-se, em geral, de calafetar as fissuras da dualidade de poderes até ao momento onde, no papel de desastroso ministro do Trabalho, encontrou-se inserido no governo de coligação em Maio.
Uma das personalidades das mais influentes entre os mencheviques foi Dan, velho militante do partido, que tinha sempre sido considerado como o segundo Martov. Se, em geral, o menchevisme se assimilou, na carne e no sangue, os costumes do espírito da social democracia alemã em decadência, Dan, simplesmente, parecia ser um membro da direcção do partido alemão, um Ebert de formato inferior. O Dan alemão realizou com sucesso, um ano mais tarde, na Alemanha, a política que não tinha conseguido o Erbert russo. A causa não se devia, todavia aos homens, mas às circunstâncias.
Se o primeiro violão na orquestra da maioria soviética era Tseretelli, foi uma estridente clarinetista que, soprando com os pulmões cheios, os olhos injectados de sangue, interpretava Liber. Menchevique da União operária israelita (Bund), ele tinha um passado revolucionário de longa data, muita sinceridade, muito temperamento, muita eloquência, era limitado e esforçava-se apaixonadamente em colocar-se como inflexível patriota e em homem rígido de Estado. Liber transbordava literalmente de ódio em relação aos bolcheviques.
A falange dos líderes mencheviques talvez próxima de Voitinsky, antigo bolchevique ultra-esquerdista, participante distinguido da primeira revolução, tinha feito o seu tempo de prisão, rompeu em Março com o partido sobre a questão do patriotismo. Juntando-se aos mencheviques, Voitinsky, como é preciso, tornou-se um devorador profissional de bolcheviques. Somente, não tinha bastante temperamento para se igualizar com Liber na perseguição dos seus antigos camaradas de pensamento.
O estado-maior dos populistas, tão pouco homogéneo, era muito menos importante e brilhante. Aqueles a que chamavam «socialistas populistas» constituindo o flanco da extrema direita, tinham à sua cabeça o velho emigrado Tchaikovsky, cujo chauvinismo militante era igual ao de Plekhanov e que não possuía portanto nem os talentos nem o passado deste. Ao lado de Tchaikovsky, uma velha mulher, Brechko-Brechkosvskaia, que os socialistas-revolucionários chamavam «avó da revolução russa», mas que zelava em tornar-se a madrinha da contra-revolução. O veterano anarquista Kropotkine, que conservava, desde a sua juventude, uma fraqueza em relação aos populistas, falando da guerra, negava tudo o que ele tinha ensinado quase meio século: negador do Estado, ele apoiou a Entente e, se ele se queixava da dualidade de poderes na Rússia, não era para reclamar a supressão do poder, mas era pelo poder único da burguesia. Todavia, esses velhos interpretavam um papel decorativo, ainda que Tchaikovsky, mais tarde, na guerra contra os bolcheviques, tenha tomado a cabeça de um governo de blancos que Churchill sustentava.
O primeiro lugar entre os socialistas-revolucionários, antes dos outros, mas não no partido, e acima do partido, foi ocupado por Kerensky, homem desprovido de todo passado de partido. Teremos ainda, mais de uma vez, a considerar esta figura providencial cuja força consistia, em período de dualidade de poderes, numa combinação de fraqueza do liberalismo com as fraquezas da democracia. Ao aderir formalmente ao partido socialista-revolucionário, Kerensky não modificou a sua opinião desdenhosa em relação aos partidos em geral: considerava-se como o eleito directo da nação. Mas, na realidade, o próprio partido socialista-revolucionário não tinha deixado, por essa altura, de ser um partido, tornando-se uma grandiosa nulidade, verdadeiramente nacional? Em Kerensky ele encontrou um líder adequado.
Futuro ministro da Agricultura e seguidamente presidente da Assembleia constituinte. Tchernov era incontestavelmente a figura mais representativa do velho partido socialista-revolucionário, e não foi por acaso que ele era considerado como o inspirador, o teórico e guia desse partido. Possuindo conhecimentos consideráveis, mas sem ligação entre eles, antes de mais um grande leitor que um homem instruido, Tchernov tinha sempre à sua disposição uma escolha ilustrada de citações apropriadas às circunstâncias, que impressionavam duravelmente a juventude russa sem lhe ensinar grande-coisa. Só havia uma questão à qual esse prolixo líder não tinha resposta: o que o levava e onde? As formulas eclécticas de Tchernov, temperadas de moral e de maus versos, faziam por um certo tempo a unidade de um público disparate que, nas horas críticas, dispersava-se de um lado e outro. Não é de admirar que Tchernov tinha oposto com presunção o seu método de formação de um partido ao «sectarismo» de Lenine.
Tchernov regressou do estrangeiro cinco dias depois de Lenine: a Inglaterra, finalmente, deixou-o passar. Às múltiplas aclamações do Soviete, o líder do maior partido respondeu pelo mais longo discurso, que Sokhanov, meio socialista-revolucionário, julgou assim: «Eu não estava só, outros estavam comigo, patriotas do partido socialista-revolucionário, a fazer caretas e a abanar a cabeça, perguntando-nos porquê ele cantava tão desagradavelmente, entregando-se a tão estranhas fingimentos, rolava os grandes olhos, e perorava interminavelmente a propósito de tudo e de nada.» Toda actividade ulterior de Tchernov na revolução esteve em diapasão com o seu primeiro discurso. Após ter tentado, várias vezes, opor-se, do lado esquerdo, a Kerensky e a Tsereteli, Tchernov, bloqueado por todos os lados, rendeu-se sem combate, purifica-se do seu zimmerwaldismo de emigrado, entrou na Comissão de contacto e, mais tarde, no governo de coligação. Tudo o que ele fazia caía mal. Decidiu, em consequência, esquivar-se. A abstenção no momento de votar tornou-se para ele uma forma de existência política. A sua autoridade, de Abril a Outubro, fundiu ainda mais rápidamente que as fileiras do seu partido. Qualquer distinção entre Tchernov e Kerensky, que se odiavam reciprocamente, todos os dois tinham as suas raízes no passado pré-revolucionário, na velha sociedade russa arruinada, na anemia e pretensiosa intelliguentsia que ardia de desejo de ensinar as massas populares, de as tutelar e de assegurar-lhes a sua benfeitoria, mas era absolutamente incapaz de as escutar, de as compreender e de aprender qualquer coisa delas. Ora, na falta disso, não havia política revolucionária.
Avksentiev, que o seu partido levou aos postos mais altos da revolução - presidente do comité executivo dos deputados camponeses, ministro do Interior, presidente do pré-parlamento - representava já a caricatura perfeita de um homem político: delicioso professor de literatura do liceu de raparigas em Orel, - é tudo que se pode dizer dele. É verdade que a sua actividade política mostrou-se muito mais noviça que a sua pessoa.
Um papel considerável, sobretudo nos corredores, foi interpretado, no seio da fracção socialista-revolucionário e do núcleo dirigente do Soviete, por Gotz. Terrorista saído de uma família revolucionária reputada, Gotz foi menos pretencioso e mais actuante que os seus próprios amigos políticos. Mas, a título de «praticante» como se dizia, limitava-se às operações de cozinha, abandonando aos outros as grandes questão. É preciso, aliás, acrescentar que não era nem um orador, nem um escritor, e que o seu principal recurso era uma autoridade pessoal paga por anos no degredo.
Temos, em suma, nomeado todos os que se poderia nomear entre o círculo dirigente dos populistas. À volta seguiam figuras já completamente acidentais, do género de Philippovky, sobre o qual ninguém sabia explicar verdadeiramente porquê ele tinha atingido o cume do Olimpo de Fevereiro: é preciso pensar que o papel decisivo pertence ao seu uniforme da marinha.
Ao lado dos líderes oficiais dos dois partidos dominantes no comité executivo, havia um bom número de «selvagens», de isolados, tendo participado no passado no movimento em diferentes etapas deste, gente que, há muito tempo antes da insurreição, tinham-se afastado da luta e, agora, regressados à pressa sob a bandeira da revolução vitoriosa, não se apressavam de se colocarem sob a dependência de o partido. Sobre todas as questões fundamentais, os «selvagens» seguiam a linha da maioria soviética. Nos primeiros tempos, eles detinham mesmo o papel dirigente. Mas à medida que voltavam da deportação ou da emigração os líderes oficiais, os sem partido eram empurrados para a segunda fila, a política tomava forma, o espírito de partido reencontrava os seus direitos.
Os adversários do comité executivo, no campo da reacção, notaram mais de uma vez, a seguir, a preponderância dos alofilos nesse comité: judeus, georgianos, letões, polacos e outros. Ainda se, em relação à totalidade dos membros do comité executivo, os alofilos tenham sido uma ínfima proporção, sem dúvida que eles ocupavam um lugar muito marcado no gabinete, nas diversas comissões, como ouvidores, etc.. Como os intelectuais das nacionalidades oprimidas, grupos principalmente nas cidades, completavam com abundância as fileiras revolucionárias, não é de admirar que, nas gerações dos mais velhos revolucionários, o número de alofilos tenha sido particularmente considerável. Suas experiências, ainda sem serem de grande qualidade, tornava-os indispensáveis para a instituição de novas formas sociais.
Absolutamente estúpidas, todavia, são as tentativas feitas para apresentar a política dos sovietes e o curso de toda a revolução de uma pretendida preponderância dos alofilos. O nacionalismo, ainda nesse caso, manifesta desprezo em relação à verdadeira nação, isto é ao povo, representando este, no período do seu renascimento nacional, como uma simples vigota entre as mãos estrangeiras e fortuitas. Mas porquê então e como os alofilos foram tão influentes sobre milhões de autóctones? Na realidade, precisamente no momento de uma grande reviravolta histórica, a massa da nação toma frequentemente ao seu serviço e que, em consequência, são os mais apressados em dar uma expressão aos novos problemas. Não são os alofilos que dirigem a revolução, é a revolução nacional que se serve dos alofilos. Foi assim mesmo quando das grandes reformas do alto. A política de Pedro I não deixou de ser nacional quando, afastando-se dos velhos caminhos, ele incorporou os alofilos e os estrangeiros. Os mestres artesãs do arrabalde alemão e os capitãs de navios holandeses exprimiam melhor, nesse período, as necessidades do desenvolvimento nacional da Rússia que os papas russos, outrora introduzidos pelos gregos ou os boiardos moscovitas que se queixavam também da invasão estrangeira, ainda que provindo eles próprios dos alofilos que formaram o Estado russo. De qualquer modo, a intelliguentsia alofila de 1917 estava partilhada entre os mesmos partidos que a intelliguentsia puramente russa, sofria dos mesmos vícios e cometia os mesmos erros, e eram justamente os alofilos, entre os mencheviques e os socialistas-revolucionários que exibiam um zelo particular pela defesa da unidade da Rússia.
Assim se apresentava o comité executivo, órgão supremo da democracia. Dois partidos, tendo perdido suas ilusões mas conservou seus preconceitos, com um estado-maior de dirigentes incapazes de passar da palavra aos actos, encontraram-se à cabeça da revolução que era chamada a derrubar os entraves de séculos e a erguer as bases de uma nova sociedade. Toda a actividade dos conciliadores que debilitavam as massas populares e preparavam as convulsões da guerra civil.
Os operários, soldados, camponeses levavam os acontecimentos a sério. Eles consideravam que os sovietes criados por eles deviam imediatamente ocupar-se da supressão das calamidade que tinha engendrado a revolução. Todos iam aos sovietes. Cada um levava lá o seu sofrimento particular. Ora, quem é que não tinha a sua maleita? Exigia-se decisões, esperava-se ajuda, esperava-se justiça, insistia-se pelas represálias. Lobiistas, queixosos, solicitadores, acusadores contavam que enfim o poder hostil tinha sido o deles. O povo tem confiança no Soviete, o povo está armado: portanto, o Soviete é o governo. Assim entendiam as pessoas, - e não tinham razão?
Uma corrente ininterrupta de soldados, de operários, de mulheres de soldados, pequenos comerciantes, empregados, mães e pais, abria e fechava as portas, procurava, questionava, chorava, reclamava, impunha medidas, indicando por vezes exactamente as quais - e transformava o Soviete em verdadeiro poder revolucionário. «Não era de forma nenhuma nos interesses e não entrava, de qualquer modo, nos planos do próprio Soviete», gemeu o nosso conhecido Sokhanov, o qual, bem entendido, combatia tanto que possível o processo. Com sucesso? Infelizmente! Ele é obrigado a confessar logo que «o aparelho soviético meteu-se, contra a sua vontade, automaticamente, contra a vontade do Soviete, a repelir a máquina oficial do Estado que trabalhava cada vez mais no vazio». Que faziam então os doutrinários da capitulação, os mecânicos do funcionamento no vazio? «Estávamos obrigados a resignarmo-nos e a assumir certas funções governamentais - confessa melancolicamente Sokhanov - ao mesmo tempo que apoiava essa ficção que a direcção estava no palácio Maria. «Era disso que se ocupava essa gente num país arruinado, envolvido nas chamas da guerra e da revolução: com a mascarada eles cobriam o prestígio de um governo que o posso repelia organicamente. Morra a revolução, mas viva a ficção! Ora, ao mesmo tempo, o poder que essa gente expulsava pela porta voltava a entrar pela janela, apanhando-os cada vez desprevenidos e colocando-os numa situação ou ridícula ou indigna.
A partir da noite de 27 a 28 de Fevereiro, o comité executivo proibiu a imprensa monárquica e tinha estabelecido para os jornais um regime de autorização. Ouviam-se protestos. Os que gritavam mais alto eram os que tinham o hábito de amordaçar as pessoas. Alguns dia após, o comité chocou de novo com o problema da liberdade de imprensa: autorizar ou não a publicação de jornais reaccionários? Desentendimentos manifestaram-se.
Os doutrinários do genero Sokhanov eram pela liberdade absoluta da imprensa. Tchkheidze, no princípio, não estava de acordo: como deixar as armas à disposição sem controlo do inimigo mortal? Ninguém, diga-se de passagem, não lhe passou pela cabeça em submeter a questão ao governo.
Aliás, foi em vão: os operários tipógrafos só aceitavam as decisões do Soviete. No 5 de Março, o comité executivo deu essa confirmação: proibir as publicações de direita, subordinando a publicação de novos jornais à autorização do Soviete. Mas, desde do dia 10, esta decisão foi abrogada sob o ataque dos círculos burgueses. «Basta três dias para que se encontre razão», dizia, triunfante, Sokhanov. Triunfo sem fundamento! A imprensa não está acima da sociedade. As condições da sua existência em tempo de revolução reflectem a marcha da própria revolução. Quando esta toma ou ameaça tomar o carácter de uma guerra civil, nenhum dos lados beligerantes não admitirá a existência de uma imprensa hostil no seu raio de influência, como ele não abandonará de boa vontade o controlo dos arsenais, dos caminhos de ferro, das tipografias. Na luta revolucionária, a imprensa só é um instrumento de luta. O direito de expressão, de qualquer modo, não está acima do direito à vida. Ora, a revolução atribui-se também esse último direito. Poder-se estabelecer esta lei: os governos revolucionários são tanto mais liberais, tanto mais tolerantes, tanto mais «generosos» com a reacção, quanto mais mesquinho é o seu programa, quanto mais eles estão ligados ao passado mais conservador é o seu papel. E inversamente: maiores são as tarefas, maior é o número de direitos e de interesses que elas violam, mais o poder revolucionário está concentrado, mais a sua ditadura se exibe. Bem ou mal, é precisamente por essas vias que até hoje a humanidade avançou.
O Soviete tinha razão quando quis controlar a imprensa. Porque renunciaria tão facilmente a isso? Porque ele renunciou geralmente a toda a luta séria. Sobre a guerra nada dizia, assim como sobre a atribuição das terras, e sobre a questão da república. Tendo cedido o poder à burguesia conservadora, não tinha motivo para temer a imprensa de direita, nem possibilidade de a combater. Em contrapartida, pouco depois, o governo, com o apoio do Soviete, reprimiu impiedosamente a imprensa de esquerda. Os jornais dos bolcheviques foram proibidos uns após os outros.
No 7 de Março, Kerensky declarava em Moscovo: «Nicolau II está nas minhas mãos... Nunca serei um Marat da Revolução russa... Nicolau II, sob o meu controlo pessoal, irá para a Inglaterra...» As damas jogavam flores, os estudantes aplaudiam. Mas as massas agitavam-se. Nenhuma revolução séria, isto é aquelas que tinham a perder, nunca tinha deixado um monarca destronado alcançar o estrangeiro. Os operários e os soldados não paravam de exigir a prisão dos Romanov. O comité executivo sentiu que não podia brincar com essa questão. Decidiu-se que o Soviete devia apoderar-se do assunto dos Romanov: assim reconheceu-se abertamente que o governo não era digno de confiança. O comité executivo deu ordem a todos os caminhos de ferro de não deixar passar Romanov: daí a razão que o comboio do czar viajava sem destino. Um dos membros do comité executivo, o operário Gvozdiev, menchevique de direita, foi enviado para prender Nicolau, Kerensky foi desautorizado, e, com ele, o governo. Mas este, em vez de se retirar, remeteu-se ao silêncio. A partir do dia 9 de Março, Tchkheidze transmitiu ao comité executivo que o governo «tinha renunciado» à ideia de expedir Nicolau para a Inglaterra. O czar e a família tinham sido presos, no palácio de Inverno. Foi assim que o comité executivo subtilizava o seu próprio poder sob a travesseiro. Ora, da frente, cada vez mais se faziam insistências: transferir o czar para a fortaleza Pedro e Paulo.
As revoluções sempre significaram transtornos da propriedade, não somente na ordem da legislação, mas nas confiscações executadas pelas massas. Nenhuma revolução agrária, em suma, não se produziu na história de outra forma: a reforma legal seguiu sempre o «galo vermelho», o incêndio. Nas cidades, as confiscações desempenharam um papel menor: as revoluções burguesas não tinham por objectivo estremecer a propriedade burguesa. Mas não houve ainda revolução onde as massas não se teriam apoderado, para fins sociais, os edifícios que antes pertenciam aos inimigos do povo. Logo após a insurreição de Fevereiro os partidos saíram da ilegalidade, nasceram os sindicatos, inúmeras reuniões tiveram lugar, todos os sovietes entraram em todos os bairros - todos precisavam de instalações. As organizações amparavam-se dos palacetes desocupados dos ministros do czar ou dos palácios abandonados pelas suas bailarinas. As vítimas queixavam-se ou os poderes intervinham por sua própria iniciativa. Mas como os insurrectos possuíam na realidade o poder, e como o poder oficial era só um fantasma, os procuradores deviam finalmente dirigir-se ao mesmo comité executivo, com a requisição de restabelecer os direitos espezinhados de tal bailarina cujas funções pouco complicada eram altamente pagas pelos membros da dinastia a partir dos fundos do povo. Como deve ser, a comissão de contacto pôs-se em acção, os ministros reuniram-se, o secretariado do comité executivo consultou, delegações foram enviadas junto dos ocupadores - e o negócio arrastou-se durante meses.
Sokhanov declarou que na qualidade de «homem de esquerda» não tinha nada a opor às mais radicais das intrusões legais nos direitos de propriedade, mas em contrapartida, ele era «o violento inimigo de todas as apropriações violentas». É por tais subtilidades que a lamentável esquerda camuflava, habitualmente, a sua incapacidade. Um governo realmente revolucionário teria sem dúvida podido reduzir ao mínimo as apropriações caóticas promulgando a tempo um decreto de requisição de locais. Mas os conciliadores de esquerda tinham entregue o poder aos fanáticos da propriedade para pregar seguidamente, em vão, às massas, o respeito da legalidade revolucionária... ao luar. O clima de Petrogrado não é favorável ao platonismo.
As longas filas de espera nas portas das padarias tinham dado o último impulso à revolução. Essas «filas» também foram a primeira ameaça para o novo regime. Já na sessão constitutiva do Soviete, tinha sido decidido criar uma comissão de abastecimento. O governo nem se questionou como alimentaria a capital. Ele não teve qualquer problema em reduzi-la à fome. O problema, também foi enviado para o Soviete. Ele tinha à sua disposição economistas e estatísticos dotados de uma certa experiência prática, tendo antes servido nos órgãos económicos e administrativos burgueses. Eram na maior parte mencheviques da ala direita, como Gromann e Tcherevanine, ou antigos bolcheviques muito afastados no sentido da direita como Bazarov e Avilov. Mas apenas encontraram-se frente a frente com o problema do abastecimento da capital que se sentiram obrigados pelo conjunto das circunstâncias em propor medidas muito radicais para jugular a especulação e organizar o mercado.
Numa serie de sessões do Soviete foi ratificado um conjunto de sistemas de medida de «socialismo de guerra», compreendendo a proclamação como bens do Estado de todos os estoques de sementes, estabelecendo medida obrigatórias para o pão em ligação com as mesmas medidas forçadas para os produtos industriais, o controlo do Estado sobre a produção, a regularização das trocas de mercadorias com a aldeia. Os líderes do comité executivo olhavam-se ansiosos: só sabendo propor, eles acediam às resoluções radicais. Os membros da comissão de contacto transmitiam timidamente essas resoluções ao governo. Este prometiam estudá-las. Mas nem o príncipe Lvov, nem Gotchkov, nem Konalov não tinha vontade de controlar, de requisitar e de se limitar de qualquer maneira, eles e os seus amigos. Todas as decisões económicas do Soviete esbatiam-se à resistência passiva do aparelho governamental, na medida onde elas não eram executadas, com autoridade, pelos sovietes locais. A única medida prática que o Soviete de Petrogrado obteve a execução no domínio do abastecimento foi reduzir o consumidor a uma ração fixa: uma libra e meia de pão para os trabalhadores manuais, uma libra para os outros. Na verdade este limite não trouxe quase nenhuma mudança no orçamento real alimentar à população da capital: com uma libra ou uma libra e meia, pode-se viver. As calamidades da fome diária viriam mais tarde.
A revolução terá durante anos, não meses, mas anos, a apertar o cinto cada vez mais. Ela ultrapassará essa dificuldade. O que a tormenta, pelo momento, não é a fome, mas o desconhecido, a indeterminação do curso dos acontecimentos, a falta de certezas para o futuro. As dificuldades económicas, agravadas por trinta e dois meses de guerra, atingem as portas e janelas do novo regime. O desespero dos transportes, a falta de diversas matérias-primas, o desgaste de uma parte considerável das ferramentas, a inflação ameaçadora, a desordem da circulação das mercadorias -tudo isso exige medidas audaciosas e urgentes. Chegando à linha económica, os conciliadores tornavam essas medidas impossíveis sobre o aspecto político. Todo o problema económico sobre o qual caíam se transformava em condenação da dualidade de poderes, e toda a decisão que tinham que assinar escaldava-os intoleravelmente os dedos.
Houve uma importante verificação das forças e das relações sobre a questão do dia de oito horas. A insurreição venceu, mas a greve geral continua. Os operários consideram seriamente que a mudança de regime deve trazer também mudanças à sua própria sorte. Daí provém a ansiedade entre os novos dirigentes, tanto liberais como socialistas. Os partidos e os jornais patriotas lançam a palavra de ordem: «Soldados, para os quartéis! Operários, para máquinas!» Assim, portanto, tudo fica como era? Perguntam os operários. Pelo momento, sim, respondem, confusos, os mencheviques. Mas os operários compreendem: se não há mudança imediata, eles serão novamente enganados. A burguesia deixa aos socialistas o cuidado de resolver o assunto com os operários. Alegando que a vitória alcançada «assegurou suficientemente a posição da classe operária, na sua luta revolucionária» - com efeito, não temos agora os proprietários liberais no poder? - o comité executivo decide, no cinco de Março, que o trabalho será retomado na região de Petrogrado. Operários, às máquinas!
Tal é a força do egoísmo blindado das classes instruídas, dos liberais como dos socialistas. Essa gente imaginava que os milhões de operários e de soldados, insurgidos por um irresistível desenvolvimento do descontentamento e de esperanças, se resignavam dócilmente depois da vitória com as antigas condições de vida. Segundo os livros de história, os líderes estavam persuadidos que as coisas se tinham assim produzido nas antigas revoluções. Não, mesmo no passado, isso nunca aconteceu. Se os trabalhadores foram impelidos para os antigos estábulos, foi por por desvios, por uma serie de derrotas e enganos.
O reverso social cruel das revoluções políticas foi fortemente ressentido por Marat. Por isso, se ele foi tão caluniado pelos historiadores oficiais. «A revolução - escreveu, um mês antes do 10 de Agosto 1792 - foi realizada e apoiada unicamente pelas baixas classes da população, por todos esses seres lesados que a insolente riqueza trata por canalhas e que os Romanos, com o seu cinismo habitual, chamaram outrora «proletários». Que dá portanto a revolução aos seres lesados? «Após certos sucesso de início, o movimento foi finalmente vencido: falta-lhe sempre conhecimentos, habilidade, recursos, armas, chefes, um plano de acção: fica sem defesa contra os conspiradores, que têm a seu favor a experiência, a habilidade e a manha.» É de admirar que Kerensky não tenha querido ser o Marat da revolução russa?
Um dos antigos capitãs da indústria russa, V. Auerbach, conta com um tom indignado que «a canalha do povo compreendia a revolução como uma especie de carnaval: os domésticos, por exemplo, desapareciam durante dias inteiros, passeavam com fitas vermelhas, andavam de automóvel, e só voltavam pela manhã, para se lavarem, e voltavam a sair em passeio.» É notável que se esforçando em mostrar o efeito desmoralizador da revolução, o acusador caracteriza a conduta dos domésticos pelos próprios traços que - excepção feita talvez da fita vermelha - reconstituíam bem a vida habitual de uma patrícia burguesa. Sim, a revolução é considerada pelos oprimidos como uma festa ou como uma véspera de festa, e o primeiro movimento dos servos-escravos acordados por ela é de relaxar o jugo da servidão diária, humilhante, morna e sem saída.
A classe operária, no seu conjunto, não podia e não queria consolar-se unicamente com as fitas vermelhas, símbolos de uma vitória ao proveito do outro. Nas fábricas de Petrogrado, reinava a agitação. Bastantes empresas recusaram abertamente de se submeter às decisões do Soviete. Os operários estão, bem entendido, dispostos a voltar para as máquinas, porque são forçados a isso, mas em que condições? Eles reclamavam o dia de oito horas. Os mencheviques alegavam que em 1905, os trabalhadores, tendo tentado impor as oito horas, tinham sofrido uma derrota: «A luta sobre duas frente - contra a reacção e os capitalistas - estava acima das forças do proletariado.» Tal era a ideia central. Os mencheviques, de maneira geral, admitiam que uma ruptura com a burguesia seria, no futuro, inevitável. Mas essa confissão puramente teórica não os obrigava a nada. Eles consideravam que não se podia precipitar a ruptura. E como a burguesia era lançada no campo da reacção não por frases incendiárias dos oradores e dos jornalistas mas pelo movimento espontâneo das classes trabalhadoras, os mencheviques contrariavam com todas as suas forças a luta económica dos operários e dos camponeses. «Para a classe operária - professavam - as questões sociais, actualmente, não se colocam no primeiro plano. Nesse momento, ela conquista a sua liberdade política.»
Mas em que consiste esta liberdade conceptual? Os operários não a podiam realizar. Eles queriam antes de tudo um pouco de liberdade para os músculos e nervos. E eles faziam pressões sobre os patrões. Que ironia: só no 10 de Março, como o jornal menchevique declarava que o dia de oito horas ainda não estava na ordem do dia, a associação dos fabricantes, que, desde da véspera, viu-se obrigada a implicar-se em relações oficiais com o Soviete, declarou que aceitava as oito horas e a organização de comités de fábrica e de oficina. Os industriais mostraram mais perspicácia que os estrategas democratas do Soviete. Nada de admirar: nas fábricas, os patrões encontraram-se frente a operários que, pelo menos uma boa metade das empresas de Petrogrado, na maioria as maiores, abandonavam unanimemente as máquinas após oito horas de trabalho. Eles tomavam por eles próprios o que lhes recusavam o governo e o Soviete.
Quando a imprensa comparou com ternura o gesto dos industriais russos, do 10 de Março de 1917, ao da nobreza francesa, do 4 de Agosto 1789, ela estava muito mais próxima da verdade histórica que ela própria pensava: tal como os feudais do fim do século XVIII, os capitalistas russos cediam à necessidade e, por uma concessão temporária, esperavam assegurar-se no futuro de uma restituição. Um dos publicistas cadetes, transgredindo a mentira oficial, confessava claramente: «Para a infelicidade dos mencheviques, os bolcheviques já tinham obrigado, pelo terror, a associação dos fabricantes a aceitar a instauração imediata das oito horas.» Em que consistia o terror, já sabemos. Os operários bolcheviques, indubitavelmente, ocupavam no movimento o primeiro lugar. E, de novo, como nos dias decisivos de Fevereiro, a esmagadora maioria dos operários alinhava com eles.
Foi com uma mistura de sentimentos que o Soviete, dirigido pelos mencheviques, registou a formidável vitória, ganha, em suma contra ele próprio. Esmorecidos, os líderes tiveram ainda que dar um passo em frente e convidar o governo provisório a decretar, antes da Assembleia constituinte, o dia das oito horas para toda a Rússia. Mas o governo, concordando com os patrões, esbarrou, e, na espera de melhores dias, recusou ceder à reivindicação que lhe foi apresentada sem insistência.
Na região moscovita aconteceu a mesma luta, mas arrastou-se por muito tempo. Aí também, o Soviete, apesar da resistência dos operários, exigiu a retoma do trabalho. Numa da maiores fábricas, uma resolução contra a paragem da greve agrupou sete mil votos contra seis mil. Foi pouco mais ou menos assim que reagiram as outras empresas. No 10 de Março, o Soviete confirmou ainda uma vez a obrigação de voltar para as máquinas. Se, na maioria das fábricas, depois disso, o trabalho recomeçou, em contrapartida, quase por todo o lado, desencadeou-se uma luta pela redução do dia de trabalho. Os trabalhadores corrigiam os seus dirigentes por actos. Após uma longa resistência, o Soviete de Moscovo teve, enfim, no dia 21 de Março, que estabelecer o dia de oito horas pela sua própria iniciativa. Os industriais submeteram-se imediatamente. Na província, a luta prolongou-se até Abril. Quase por todo o lado, os sovietes travaram e contrariavam, primeiro o movimento, depois, sob pressão do operários, reuniam-se com os patrões: onde estes últimos recusavam consentir, os operários viam-se forçados a decretar o dia de oito horas. Que racha no sistema!
O governo, premeditadamente, mantinha-se afastado. Entrementes, sob a direcção dos líderes liberais, abriu-se uma furiosa campanha contra os operários. Para minimizar estes últimos, decidiram dirigir contra os soldados. A diminuição da horas de trabalho não significava um enfraquecimento da frente? Tinham o direito de só pensar em si em tempo de guerra? Nas trincheiras contam-se as horas? Quando as classes possuidoras se comprometem na caminho da demagogia, elas não param diante de nada. A agitação tomou um carácter enraivecido e, logo, foi levado até às trincheiras. O soldado Pireiko, nas suas Memórias da frente, reconhece que a agitação, principalmente levada a cabo pelos oficiais novamente promulgados socialistas, não foi eficaz. «Mas toda a infelicidade da oficialidade que tentou dirigir os soldados contra os operários consistiu no facto que se compunha de oficiais. Continuava demasiado fresca na memória de cada soldado, a lembrança do que tinha sido para ele, há pouco, o oficial.»
Foi todavia na capital que os operários foram perseguidos da maneira mais intensa. Os industriais, conjuntamente com o estado-maior cadete, encontraram os meios e forças ilimitadas para a agitação na guarnição. «Cerca do dia 20 e nos dias seguintes, conta Sokhanov, em todos os cruzamentos, nos tróleis, em qualquer lugar público, podia-se ver os operários e soldados que entravam numa furiosa batalha oratória.» Davam-se assim zaragatas. Os operários compreenderam o perigo e preveniram-no hábilmente. Para isso, bastou-lhes contar a verdade, de citar os números dos lucros da guerra, mostrar aos soldados as fábricas e oficinas, o ruído das máquinas, a chama infernal dos fornos - frente permanente sobre o qual os trabalhadores sofriam inumeráveis percas. Sob iniciativa dos operários, começaram as visitas regulares, por destacamentos da guarnição, de fábricas, sobretudo das que trabalhavam para a defesa. O soldado olhava e escutava, o operário mostrava e explicava. As visitas terminavam pela confraternização solene. Os jornais socialistas publicavam numerosas resoluções de contingentes militares, afirmando a sua indefectível solidariedade com os operários. Cerca de meados de Abril, o próprio objecto do conflito desapareceu das colunas dos jornais. A imprensa burguesa calou-se. Assim, após a vitória económica, os operários ganhavam uma outra, política e moral.
Os acontecimentos que levaram à luta pelo dia das oito horas tiveram uma grande importância para todo o desenvolvimento ulterior da revolução. Os operários conquistaram algumas horas de liberdade na semana para a leitura, as reuniões,e também para o exercício de tiro que se tornou regular no momento da criação de uma milícia operária. Após uma lição tão clara, os trabalhadores começaram a observar de perto os dirigentes do Soviete. A autoridade dos mencheviques sofreu sérios prejuízos. Os bolcheviques reforçaram-se nas fábricas e, parcialmente nos quartéis. O soldado tornou-se mais atento, mais reflectido, mais circunspecto: ele compreendeu que alguém o vigiava. A intenção perfídia da demagogia voltou-se contra os seus instigadores. Em vez do afastamento e da hostilidade, houve coesão mais estreita entre os operários e os soldados.
O governo, apesar do idílio do «contacto», detestava o Soviete, os seus dirigentes e a sua tutela. Ele demonstrou desde da primeira possibilidade. Como o Soviete preenchia as funções puramente governamentais, e a pedido do próprio governo, quando se tratava de pacificar as massas, o comité executivo pediu um modesto subsídio para as suas despesas. O governo recusou e, apesar dos pedidos repetidos do Soviete, continuou firme na sua negação: o governo não pode dispensar fundos do Estado a uma «organização privada». O Soviete calou-se. O orçamento do Soviete caiu sobre os operários que não deixaram de organizar subscrições para as necessidades da revolução.
Ao mesmo tempo, os dois partidos, liberais e socialistas, mantinham o decoro de uma amizade completa mútua. A conferência pan-russa dos sovietes, a existência de uma dualidade de poderes foi qualificada de invenção. Kerensky assegurou aos delegados do exército que entre o governo e o Soviete havia unidade completa nas tarefas e nos objectivos. Zelosamente, a dualidade de poderes foi negada por Tseretelli, Dan e outros dirigentes do Soviete. Pela mentira, eles esforçaram-se a consolidar um regime fundado na mentira. Todavia, o regime vacilava logo nas primeiras semanas. Os líderes mostravam-se inesgotáveis em combinações organizativas: eles tentavam apoiar-se sobre representantes do acaso contra a massa, sobre os soldados contra os operários, sobre as novas dumas, os zemstvos e as cooperativas contra os sovietes, sobre a província contra a capital, e, finalmente, sobre a oficialidade contra o povo.
A forma soviética não contém em si nenhuma força mística. Ela não está de forma nenhuma exempta dos vícios inerentes a toda a forma de representação inevitável enquanto esta for indispensável. Mas a força do sovietismo reside nisto: ele reduz esses vícios ao mínimo. Pode-se dizer com segurança e a experiência o confirmará brevemente, que qualquer outra representação, atomizando a massa, teria exprimido, na revolução, a vontade real desta última incomparavelmente mal e com muito mais atraso. De todas as formas de representação revolucionária, o soviete é a mais ágil, a mais directa e transparente. Mas isso não é portanto senão uma forma. Ela não pode dar mais do que as massas são capazes de dar a um dado momento. Em contrapartida, ela pode facilitar às massas a compreensão das faltas cometidas e a sua reparação. Nisso residia mesmo um das apostas mais importantes do desenvolvimento da revolução.
Quais eram portanto as perspectivas políticas do comité executivo? É duvidoso que nenhum líder tenha tido perspectivas profundamente meditadas. Sokhanov afirmou, no seguimento que, segundo o seu plano o poder não era cedido à burguesia senão por um curto prazo, afim que a democracia tendo-se fortalecida retomaria o poder. Contudo, esta construção dos factos ingénua em si, tinha um carácter evidentemente retrospectivo. De qualquer modo, nessa época, ela não foi formulada por ninguém. Sob a direcção de Tseretelli, as oscilações do comité executivo, se elas não pararam, forma pelo menos erigidas em sistema. Tseretelli proclamou abertamente que falta de um sólido poder burguês a revolução perder-se-ia inevitavelmente. A democracia deve limitar-se a fazer pressão sobre a burguesia liberal, evitando de a empurrar para uma solução imprudente no campo da reacção, apoiando-a ao contrário na medida onde ela consolidará as conquistas da revolução. No fim dos fins, esse regime intermediário devia concretizar-se por uma república burguesa, com socialistas na situação de oposição parlamentar.
O obstáculo para os líderes era menos na perspectiva que no programa corrente da acção. Os conciliadores tinham prometido às massas obter da burguesia uma política democrática interior e exterior por «pressão». Indiscutivelmente, sob a pressão das massas populares, as classes dirigentes fizeram concessões mais de uma vez na história. Mas a «pressão» significa no fim de contas que se ameaça de afastar do poder a classe dominante e de tomar o seu lugar. É precisamente uma arma que faltava mesmo assim à democracia. Ela própria tinha, pela sua própria vontade, confiado o poder à burguesia. No momento da erupção dos conflitos, não era a democracia que ameaçava suprimir o poder, era, pelo contrário, a burguesia que ameaçava de o recusar. Assim, a principal alavanca, nos mecanismos de pressão, encontrava-se entre as mãos da burguesia. Por aí se explica que o governo, apesar de toda a sua impotência,tenha podido resistir com sucesso a todas as intimidações pouco sérias dos dirigentes do Soviete.
A meados de Abril, o próprio comité executivo encontrou-se no meio de um órgão demasiado grande para misteriosas manobras políticas do núcleo dirigente que se tornara definitivamente para os liberais. Um gabinete foi constituído, exclusivamente composto de gente de direita, partidários da defesa nacional. Desde então, a alta política fez-se num círculo íntimo. Tudo parecia se arranjar e consolidar. Tseretelli dominava nos sovietes de uma maneira ilimitada. Kerensky subia e subia. Então precisamente manifestaram-se nitidamente os primeiros sintomas alarmantes na base, nas massas. «É notável - escreveu Stankevitch, próximo do círculo de Kerensky - que mesmo no momento onde o comité se organizava, quando a responsabilidade do trabalho foi tomada por um gabinete exclusivamente escolhido entre os partidos da defesa nacional, até a esse momento, escapara-lhe a direcção da massa, que se afastou dele.» Impressionante? Não. Somente normal.
Inclusão | 29/05/2010 |
Última alteração | 23/12/2012 |