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Ao considerarmos o paralelo entre os sovietes russos de 1917 e os "conselhos" portugueses de hoje recordamos que os primeiros tinham um caráter de nítida ruptura com o aparelho de Estado e, por conseguinte, com a estrutura hierárquica das forças armadas — e isso não obstante a tendência à conciliação da direção menchevique — socialista-revolucionária -; enquanto que os segundos são órgãos periféricos que ficaram à reboque do MFA, o que é um objetivo perseguido precisamente pela burguesia portuguesa. De fato, desde o início, a política dessa consistiu menos em combater abertamente a agitação e à organização proletárias que em tentar esteriliza-las graças ao verbo socializante do MFA e aos partidos oportunistas, com a palavra de ordem central de "organizações apartidárias".
Os objetivos gerais e os princípios de ação dessa política são comuns às diferentes frações políticas da classe dominante e de todo o seu pessoal, inclusive seus lacaios oportunistas, apesar das divergências e dissensões, às vezes graves, nas questões da dominação das colónias e da guerra colonial, das relações com os Estados Unidos e a Europa, da crise económica e da reestruturação do capitalismo português, com todas as interações entre essas questões centrais, interações essas cuja análise aprofundada ainda está por ser feita.
Face à burguesia portuguesa e a seus lacaios oficiais, qual é a atitude dos partidos que pretendem combate-los em nome da revolução?
É inútil insistir demoradamente aqui sobre a corrente maoísta, que reivindica uma direção de partido, mas que coloca mais ou menos abertamente esse partido a serviço de uma fração política da burguesia. Assim, durante o verão passado, o PCP(m-l), sob a palavra de ordem da "ofensiva anti-social-fascista e anti-social-imperialista", pôs-se a reboque do PS e aplaudiu os arrebatamentos das “forças do amor", ao mesmo tempo que exaltava a orientação do Conselho da Revolução, que "definiu um Plano de Ação Política de luta pela independência nacional que se opõe claramente aos desígnios do social-imperialismo russo" (O Novo Militante, n.º 18, agosto de 75). Por sua vez, o MRPP não tem escrúpulos em mostrar, em nome da "frente única democrática e popular”, o PS como um representante da "burguesia liberal que tanto se alia aos fascistas como é capaz de procurar a aliança do proletariado revolucionário para combater o social-fascismo"; quanto ao PPD, deveria ser considerado como um representante da "grande burguesia monopolista européia”, em vez de americana (Luta Popular, n.º 109, 6/10/75), o que, na poderosíssima dialética maoísta, convida o leitor a concluir por si próprio que é possível aliar- se com ele para combater as "superpotências”.
A força mais característica na situação portuguesa atual é, a nosso ver, a FUR. Foi ela que se fez verdadeiramente o paladino do "poder popular" tão caro ao MES e que fixou como objetivo "permitir a conjugação de esforços de todos os revolucionários a fim de impulsionar o fortalecimento, a generalização e a coordenação dos órgãos de poder popular. A FUR não substitui a organização autónoma da classe operária e das massas trabalhadoras: o papel da FUR é o de contribuir para que os órgãos de poder popular se afirmem cada dia mais fundamentais para a tomada do poder pelos trabalhadores" (Manifesto da FUR de 10/9/75).
Enquanto que a palavra de ordem da burguesia é "que nenhum partido controle as organizações operárias!", a melhor garantia que esses "revolucionários" nos oferecem para preservar a autonomia dessas organizações é gritar em coro: "nada de partido!” "Evidentemente" — diz o MES — "as organizações políticas estarão lá presentes", mas "é fundamental para nos que seja definitivamente estabelecido o caráter apartidário" dessas organizações (mesa redonda promovida pela revista Manifesto, n.º 12, 3-17/7/75). O PRP-BR é ainda mais claro: "Toda organização autónoma tem seu fim próprio. Quanto aos sindicatos [sua posição é a mesma para todas as organizações intermediárias, evidentemente] nós pensamos que eles devem organizar todos os trabalhadores e que não devem ser um instrumento de nenhum partido político" (ibid.). Os trotskistas da LCI, por sua vez, dão-se ao luxo de acusar o PRP-BR de não ser suficientemente claro no que concerne à condenação do papel de direção do partido: "Ironia das ironias. De acordo com essa plataforma dos Conselhos Revolucionários será o Partido (ponto 3) que exercerá a ditadura do proletariado (pontos 4 e 5)... quando se pretende, e corretamente, que a ditadura do proletariado não é a ditadura de nenhum partido, mas duma classe" (Luta Proletária, n.º 13, 1/5/75 — os grifos são nossos).
O papel que o marxismo atribui ao partido de classe é substituído por uma "democracia operária" rebaixada a uma regra constitucional: espontaneamente, a famigerada "dinâmica do movimento real" levaria a classe operária à consciência, à disciplina e à assimilação da arte da revolução, devendo o partido apenas imaginar e fomentar a forma adequada à expressão dessa dinâmica. E cada um tem sua própria receita: o PRP-BR tem seus Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros; o MES e a LCI insistem nas Assembleias Populares, de onde surgiria uma Assembleia Popular Nacional. Que importa que esses organismos, garantia da autonomia de classe, não tenham nenhuma existência real! O que importa é que é esta a via ideal pela qual a luta de classe tem que passar! E caso o movimento social vier a ser batido, a lição já está tirada de antemão: ou o movimento foi insuficiente para criar essas formas milagrosas, ou então um partido cometeu o crime de "lesa-autonomia"!
Qual é, na verdade, a consistência da autonomia assim garantida pela FUR? Sabemos que essa última nasceu a 25 de agosto por iniciativa do próprio MFA, que,por intermédio do COPCON, agrupou as organizações de "extrema esquerda" que a compõem, mais o PCP. Seu primeiro ato público foi uma manifestação de apoio ao V Governo Provisório. A LCI bem que declarou posteriormente que não estava de acordo com a palavra de ordem da manifestação da FUR de 27 de agosto, porque o governo Vasco Gonçalves era um "governo de colaboração de classes" (Luta Proletária, n.º 16, 12/9/75). Ela pode, com isso, ter salvado a cara, mas não salvou nem um pouco a autonomia do movimento!
Consideremos o primeiro parágrafo do acordo de 25 de agosto: "O documento do COPCON e o documento "Linha de ação programática e tarefas de transição" constituem uma base de trabalho válida para a elaboração de um programa político revolucionário". Passamos ao parágrafo 4: "A criação de uma frente que englobe os partidos e outras organizações políticas revolucionárias, os militantes revolucionários, o MFA e os órgãos autónomos de poder popular referidos no documento-guia da aliança MFA-povo constitui a saída para o processo revolucionário". Aliás, a reivindicação da continuidade em relação ao programa do MFA é precisada pelo MES no n.º 9 de Poder Popular: "O MES não aprova (o linguajar da autonomia e do poder popular sabe ser diplomático!) o VI Governo Provisório porque as principais conquistas do Povo Trabalhador serão postas em questão por esse governo. Com efeito, a legitimação e a incitação ao Poder Popular, que a Assembleia do MFA tinha aprovado no Documento-guia da aliança MFA-Povo, são deixadas de lado no programa apresentado por Pinheiro de Azevedo, em que só são levados em conta os documentos programáticos do MFA, o Programa, o Pacto e o Plano de Ação Política, textos ambíguos e contraditórios que as lutas (...) já tinham superado". Como se os primeiros textos reivindicados também não fossem ligados aos segundos, exatamente como, para a burguesia, a mentira democrática e socializante está ligada ao fortalecimento da máquina de opressão a que serve de defesa.
O MES explica, por exemplo, que não se deve procurar revalorizar o MFA, considerado como uma “organização democrática burguesa” e como uma "organização de oficiais [que] já deu o que tinha a dar: criou as condições para que os verdadeiros interpretes da construção do socialismo, os trabalhadores, os soldados e marinheiros e todos os explorados, se organizassem para lutar pela sua emancipação" (Poder Popular, n.º 13, 15-23/10/75). Não reconhece claramente, com isso, o que vale a tal autonomia de classe encontrada no programa de uma organização "democrática burguesa”?
 grande intrepidez da FUR está ora reivindicar um Governo de Unidade Revolucionária que se apoie nos órgãos de poder popular, bem como a dissolução da Assembleia Constituinte. Mas, obviamente, não diz nada a respeito da maneira pela qual nascerá esse governo. No entanto, a LCI, no n.º 16 (12/9/75) de Luta Proletária, fornece algumas precisões que esclarecem muitíssimo sobre a autonomia desse governo em relação ao Estado atual. Com efeito, a LCI tem por objetivo um governo que seja "capaz de satisfazer as reivindicações das massas, de armar os trabalhadores e de esmagar de vez a reação capitalista"; mas acrescenta: [Isso] só pode ser a tarefa de um Governo Operário de Unidade Revolucionária dotado de um verdadeiro programa anticapitalista, capaz de desenvolver e de_ser controlado pelos organismos de poder operário e popular. Só um tal governo pode apoiar as massas trabalhadoras no caminho da demolição do Estado e da sociedade burguesa assente na sua exploração e opressão".
É a isto que se reduz a autonomia da classe na boca do partido da frente que reivindica do modo mais aberto o poder para os operários e não para o "povo": reclamar um governo que aceite desenvolver os órgãos que vão controlá-lo! Pois o Estado não foi destruído, e sua maquina, embora abalada e entravada em seu funcionamento, continua de pé; ele controla, portanto, todos os atos desse governo e só aceita ser controlado por órgãos de "poder popular" na medida em que esse último permanecer sob seu próprio controle. O movimento operário já fez inúmeras vezes a dolorosa experiência disso. Será preciso um novo Pinochet para uma nova confirmação?
(Le Prolétaire n.º 206, 1-4/11/75)
Inclusão | 25/04/2019 |