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Bastaram apenas umas poucas horas para que o fênix da Ordem, que a "Revolução portuguesa" apresentara como calcinado pelas chamas da "ofensiva popular", ressurgisse brutalmente e pusesse por terra o "segundo poder", que, no dizer dessa mesma "revolução", estaria a ponto de demolir a hierarquia militar. Bastaram apenas umas poucas horas para que a Ordem se instaurasse inconteste com todos os seus aparatos tradicionais, de que a "revolução" pretendia tê-la despojados: suas prisões, sua censura, seus toques de recolher, seus estados de sítio e suas "caças as bruxas".
Bastou apenas que um destacamento dos comandos de Amadora cercasse a rádio para retoma-la; bastou que ele disparasse alguns tiros para o ar para dispersar a multidão que acorrera para ajudar os soldados. Bastou apenas que um regimento de cavalaria se apresentasse no arsenal "ocupado" para que as portas deste lhe fossem abertas; bastou pedir a Dinis de Almeida que se rendesse para que o "regimento vermelho", por maioria de votos, seguisse seus chefes legalistas na obediência à hierarquia. Bastou apenas que os comandos cercassem as bases aéreas "tomadas" pelos pára-quedistas para controla-las e repor em seus postos os comandantes destituídos; bastou que os comandos dessem assalto ao quartel da polícia militar para que, ao primeiro tiro e ao primeiro sangue derramado, os soldados depusessem as armas e para que só faltasse aguardar a rendição dos pára-quedistas de Tancos. Em suma, bastou apenas o olhar do fênix da Ordem ressurgido de suas cinzas para que os rebeldes fossem literalmente hipnotizados; para que as lágrimas de raiva sucedessem a alegria de ter conseguido romper uma disciplina odiada; para que, mais precisamente falando, a Lei, a Tradição, a Ordem, fossem restabelecidas praticamente sem dar um só tiro.
O que causa mais espanto não é, na realidade, o fato de que a casta dos oficiais tenha-se mostrado tão operacional, mas sim o fato de que a "revolução portuguesa" tenha imaginado que essa casta tivesse sido dissolvida pela vaga de indisciplina dos soldados. Sem dúvida nenhuma, as altas esferas da hierarquia militar foram percorridas por correntes contraditórias violentíssimas, mas os choques sempre foram amortecidos pala solidariedade de casta. Assim, diante da agitação dos pára-quedistas de Tancos, o conjunto dos oficiais (123 dos 128) pediram sua transferência, seguidos por um só dos 300 suboficiais e por 7 dos 1 300 soldados. Mesmo os oficiais "honestos", para grande estupor dos soldados, passaram para o outro lado. Isso deve fazer-nos recordar esta lei, segundo a qual só a insurreição armada pode conseguir romper esse amálgama de solidariedade e de disciplina que dá consistência ao corpo de oficiais, mesmo quando os soldados não mais os seguem.
Aliás, a oposição entre oficiais e praças — uma oposição que se manifestou em Tancos de forma tão clara quanto a que levou os operários da construção às vias de fato contra a ordem oficial e semi-oficial — tornava urgente o restabelecimento da disciplina e a "restauração” da hierarquia militar. Era preciso por um ponto final nisso tudo! E, para isso, duas condições deveriam ser preenchidas.
A primeira, era que se pudesse contar com tropas absolutamente seguras. Não é que todos os regimentos tenham sido contaminados, mas a experiência ensina que a indisciplina dos soldados, em ligação com o movimento social em seu todo, tem sua própria lógica interna e que fazer um regimento tido como "são" marchar pode provocar sua desagregação (o exemplo de Tancos mostra que esse ponto tinha sido atingido) ou suscitar reações de solidariedade em meio a outras unidades ainda adormecidas.
O estado-maior esperava as forças seguras de Angola: é por isso que, à espera da retirada dessas últimas, ele alternava ameaças e promessas, manobrava para acalmar a agitação sem afrontá-la abertamente. Os que_se apraziam a pintar o presidenta Costa Gomes como hesitante não viram qual era a causa dessa hesitação aparente e não foram capazes de conduzir uma luta anti-imperialista consequente, apta a desorganizar as tropas de choque do corpo expedicionário, as quais puderam retomar nesses últimos dias com um “moral excelente”.
Foram essas tropas que foram juntadas ao regimento de cavalaria que interveio no arsenal; foram elas que vieram apoiar os comandos de Jaime Neves (cujos efetivos eram um segredo militar); foram elas, bem como os mercenários vindos também das colónias, que provavelmente constituíram as "tropas desconhecidas” que circulavam em Lisboa; foram elas, sem dúvida, que serviram de retaguarda e reserva do golpe.
A outra condição era que o movimento dos soldados e dos trabalhadores estivesse suficientemente controlado para que as reações na tropa e uma conjunção do movimento operário com o movimento dos soldados pudessem ser evitadas o máximo possível.
Sob esse aspecto, a famigerada “esquerda militar" desempenhou a fundo seu papel, fingindo marchar junto com os soldados e utilizando o linguajar demagógico do "exército popular”, ao mesmo tempo que tentava, em contrapartida, apoiar-se neles para favorecer seu jogo político, que sempre foi mantido nos marcos da sacrossanta unidade das forças armadas e que uma extrema esquerda que acreditava encontrar nesses oficiais um ponto de apoio para os operários e para os soldados não foi capaz de combater.
O oportunismo operário, aqui encarnado pelo PCP, também desempenhou a fundo seu papel clássico. Embora no governo, ele conseguiu penetrar aqueles que foram abusivamente chamados de órgãos do "poder popular" — as comissões de trabalhadores e de soldados - —, enquanto que a extrema esquerda dizia aos operários que era indispensável uma frente com o PC para arranca-lo das garras do PS e para servir de ponto de apoio à luta operária. O oportunismo pôde, assim, conquistar sem resistência séria uma influência tal, que essas organizações tornaram-se incapazes de qualquer iniciativa sem ele.
A manifestação de 23 de outubro e, ainda mais, a de 16 de novembro (essa última apoiada pelo PC, pela FUR e pelos SUV) forneceram a prova do domínio do oportunismo, que se traduziu pela reivindicação de um governo mais à esquerda. Além disso, o estado de emergência de 26 de outubro, declarado com o pretexto de luta contra a direita responsabilizada por alguns atentados insignificantes, tinha demonstrado que a classe operária tinha-o engolido sem a menor veleidade de luta.
Antes do golpe de 25 de novembro, a campanha do PC em prol de um governo de esquerda, somada aos rumores de um perigo de direita, criara as condições propícias para desorientar completamente as massas operárias.
Foi nessa atmosfera que o desenvolvimento da agitação dos pára-quedistas de Tancos levou-os a buscar apoios externos, para simplesmente precaverem-se dos golpes da hierarquia militar por eles esperados: pois não tentavam demitir Otelo? e a unidade absoluta da hierarquia não era uma condição necessária para restabelecer a disciplina entre os soldados? E, por outro lado, não foram os oficiais que tinham, tomado, no regimento, a iniciativa da ruptura?
A ausência de réplica ao ataque das tropas legalistas por parte dos soldados e do movimento operário é surpreendente? Na realidade, ela só poderia ser uma surpresa para os que esqueceram que os soldados contavam com a direção dos oficiais de esquerda, os quais deixaram-se ser demitidos sem dizer nada, como rezam as boas tradições hierárquicas. O famigerado Otelo de Carvalho teve a inteligente ideia de fingir recusar-se a deixar seu posto, aumentando, assim, a confusão dos soldados, que encontraram nessa atitude uma razão suplementar para conservar os olhos fitos nele e condicionar sua ação a decisão dele. Na noite fatídica procuraram-no por toda parte durante horas e horas, e foi impossível encontrar o Otelo, aquele mesmo homem que estava ao lado de Costa Gomes quando esse último anunciou o estado de emergência. O movimento dos soldados foi arrastado no turbilhão, sem possibilidade de resistência, subjugado pelos cantos dessa nova Lorelei, a "esquerda militar".
O outro elemento que teria podido dar força e coragem aos soldados era o movimento operário. Mas, desde os primeiros-instantes, o PC pôs em guarda contra o "perigo para a Esquerda de sobrestimar suas forças" e lembrou que "todo afrontamento fazia o jogo da reação". E ao mesmo tempo que as greves parciais por uma mudança de governo, mediante as quais a Intersindical tentava canalizar a agitação, eram suspensas, o PC explicava que o novo governo resultaria do um compromisso sempre possível e saía da cena, deixando a classe operária sem nenhuma diretiva.
Que podia fazer uma extrema esquerda incapaz de conceber uma ação sem os oficiais "de esquerda" e sem o PC, e impreparada para tal eventualidade? (Não estamos falando, é claro, do maoísmo, que alinhou-se resolutamente detrás de Vasco Lourenço, quando não de Costa Gomes, com o pretexto de que o movimento dos soldados não tinha nenhuma autonomia em relação ao "social-fascismo"...).
Privados da existência de uma luta operária consistente, privados dos chefes com que contavam, sem que nenhuma força tenha sido capaz de tomar a cabeça da luta, os soldados não poderiam encontrar em si próprios a decisão e a determinação que proporcionam a força para combater.
Fomos traídos! É esse o grito que proferem, hoje, para justificar sua impotência os que ontem mesmo pretendiam que estavam maduras todas as condições para uma "sublevação popular". Essa gente via os indícios seguros disso no que apresentavam como a decomposição da hierarquia militar, uma parte da qual fingiram ver passar para o lado dos soldados; no fato de que o PC via-se obrigado (sempre segundo essa mesma gente) a fazer a política exigida pelas massas, em lugar de poder fazer a sua. Como se o fato de Otelo ter saudado o "poder popular" ou o fato de o PC ter seguido as pegadas desse "poder" pudesse realmente abalar o Estado! Como se a própria natureza dessas forças não as levasse inevitavelmente a tirar o corpo fora no momento preciso em que a Ordem, de que são cúmplices, vibra seus golpes, deixando assim as massas, entorpecidas pelas drogas que aquelas forças lhe ministram, paralisadas pela falta de direção!
A culpa é do PCP! — dizem os que não cessaram de mostrar ao proletariado que a "unidade operária" , concebida como uma unidade com os partidos oportunistas, era um trampolim necessário ao movimento social, sem ver que para fazer face à traição inevitável desses partidos é indispensável uma direção que tenha conduzido, com muita antecedência, uma ação independente, que se tenha preparado nessa luta e que se tenha tornado apta a capitalizar as reações para poder continuar a luta. Sem ela, essa traição acarreta a derrota do movimento e, o que é mais grave, sua desmoralização por um período difícil de ser previsto.
Ainda bem que a classe operária não fez nada, exclamam os que explicam ter ela, assim, guardado suas forças intactas. Como se o restabelecimento da disciplina no exército não fosse a condição indispensável para por nos eixos a classe operária e os camponeses pobres, que, apesar de todos os esforços da demagogia oportunista, não voltaram seriamente ao trabalho.
Claro, não foi a revolução que foi batida, mas sim a verborragia revolucionária. As ilusões que o movimento social acalentava é que foram brutalmente desfeitas; as ilusões de uma ação de braços dados com o oportunismo e a "esquerda militar", ilusões que se arraigam na fraqueza do movimento e (é esta uma verdade que tem que ser dita) no chauvinismo.
O que é certo é que a força que destruiu esses sonhos é a mesma que, restaurando a disciplina no exército, se reforça a fim de dobrar a classe operária. Aliás, o estado do sítio já foi utilizado não só para eliminar os oficiais de esquerda, mas também para decapitar a extrema esquerda e o que há de mais combativo na classe operária. E a primeira medida social consistiu, em suspender todas as negociações salariais daqui ao fim de dezembro, recuperando num abrir e fechar de olhos o que necessitara, para ser obtido, de greves magníficas, como a da construção.
O capitalismo português encontra-se numa crise profundíssima. Ele precisa impor à classe operária trabalho e austeridade; ele precisa conter, a qualquer preço, a agitação incessante; expulsar das fábricas os trabalhadores que pensavam que o "controle" lhes garantiria, se não o salário, pelo menos o emprego; expulsar das terras ocupadas os operários agrícolas do sul. Para tanto, e também para tentar salvar ainda alguma coisa em Angola ou em outras colónias em que continua manobrando, o Estado português muniu-se de uma arma decisiva: a força restaurada. Mas ela não lhe basta. Ele precisa também, por algum tempo, da mentira democrática e oportunista para vencer com um mínimo de atritos a crise económica e social.
Como declarou Melo Antunes: "O controle da situação militar possibilita-nos dispor de garantias para clarificar a situação política e avançar, com um programa viável, em direção a um governo de esquerda. A participação do partido comunista na construção do socialismo é indispensável" (Le Monde, 18/11/75). Preciosa confissão de que a mentira só é eficaz quando sustentada pela força. Cínica confissão das classes dominantes de um mundo senil que põe nocaute os pretensos revolucionários sem princípios que ainda pensam em apoiar-se num "governo de esquerda" para enfraquecer o Estado burguês! E em que abismo de servilismo contra-revolucionário pôde cair um oportunismo operário que, por determinação de sua própria natureza, é capaz de reclamar o Estado forte mesmo quando esse fortalecimento pressupõe a eliminação de elementos próximos de si na máquina militar!
Assim, enquanto consideram a hipótese de uma modificação ministerial apta a encontrar, segundo a expressão de Costa Gomes, "um apoio entre os trabalhadores bastante forte para assegurar a paz, a tranquilidade, uma produtividade razoável e para evitar essas reivindicações constantes que causam tanto prejuízo à economia nacional" [Le Monde3 18/11/75), Jaime Neves está a postos para lembrar que "ainda há muitas coisas a fazer" e que está "firmemente decidido a ir até o fim" (Le Monde, 2/12/75) , isto é, que está pronto, hoje, para sufocar os rebeldes que não compreenderam os "imperativos da situação" e, amanhã, para desembaraçar-se também do lacaio quando, ao cabo da função deste, chegar o momento de sacrifica-lo "às "forcas do amor".
A classe operária acha-se compelida a um combate terrivelmente desigual nessa segunda etapa da ofensiva burguesa contra suas condições de vida e de luta, faltando-lhe, agora, o formidável apoio de um movimento de soldados, um movimento cuja energia a pretensa revolução portuguesa sacrificou numa verborragia fantástica. E diante dela se ergue a Ordem, assento nestas duas forças que são a autoridade restaurada e o oportunismo operário. O único trunfo com que ela pode contar é a lucidez. Mas essa última pressupõe que os revolucionários sinceros tirem a lição que os fatos vieram confirmar mais uma vez, a lição da necessidade de uma independência de classe absoluta; pressupõe que eles compreendam a necessidade de um partido dotado de um programa de oposição completa ao Estado e a todas as forças da burguesia e do oportunismo, um partido capaz de dar a maior eficácia à luta de defesa está na ordem do dia, de desenvolver o máximo possível as potencialidades classistas que essa luta encerra em si, transformando-a assim num terreno de preparação revolucionária.
(Le Prolétaire, nº 209 13-26/12/75)
Inclusão | 25/04/2019 |