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Ao contrário das revoluções burguesas do século XVIII, escrevia Marx evocando O ciclo histórico que tinha levado de fevereiro de 1848 a dezembro de 1851, "as revoluções, proletárias autocriticam-se constantemente; interrompem a cada instante seu curso; retornam ao que aparentemente já fora realizado para recomeçá-lo desde o início; escarnecem impiedosamente das hesitações, fraquezas e misérias de suas primeiras tentativas; parecem derrubar seu adversário só para permitir-lhe recobrar novas forças e tornar a levantar-se ainda mais gigantesco frente a elas; recuam constantemente diante da ilimitada imensidão de seus próprios objetivos, até que se cria finalmente a situação em que é impossível toda e qualquer volta atrás e em que as próprias circunstâncias clamam: hic Rhodus, hic salta!", passe aos atos! (Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte).
Menos ainda que as "revoluções burguesas do século XVIII", as falsas revoluções não se autocriticam, nem poderiam fazê-lo, mesmo que o quisessem. Em sua "vida efémera", elas consomem os míseros "fogos de artifício" que parecem iluminá-las num primeiro tempo. O "êxtase", que é seu "estado de espírito quotidiano", não dá lugar a um frio balanço dos "resultados do seu período de febre e tempestade". E elas continuam a queimar até exaurir-se, deixando apenas punhados de cinza ao longo de seu caminho. Seus fantasmas, sejam eles-homens ou programas, não se corporificam, vagando cada vez mais imateriais nos céus da "fraternidade universal". Sua_cantiga não só é sempre a mesma, como repete sem parar o refrão inicial. Seu horizonte parece alargar-se, quando, na realidade, se restringe inexoravelmente. Seu adversário pode "tornar a levantar-se ainda mais gigantesco frente a elas", sem que ,seus protagonistas tirem um só ensinamento dessa reaparição. Não só não vêem que "é impossível toda e qualquer volta atrás", como voltam atrás, vangloriando-se disso. Não só não ouvem a voz das circunstâncias, que exigem o "salto", como, se acaso a escutassem, só deduziriam disso que não vem absolutamente ao caso "passar aos atos".
A "revolução de 25 de abril" em Portugal pertence a esse tipo de falsas revoluções. Não é como aquelas "revoluções burguesas do século XVIII" que "precipitam-se rapidamente de acontecimento em acontecimento", mas sim uma destas "revoluções" do século XX, que passam como uma ventania num capinzal, cujas folhas erguem-se intactas depois da sua passagem. Dirigida pelo exército (não um exército conquistado em sua base pelo povo, como nas revoluções burguesas dignas desse nome, e menos ainda pelo proletariado, como nas revoluções não mais, ou só pela metade, burguesas; mas um exército tão "magnânimo" em seus escalões altos e intermediários que chega ate a estender o ramo de oliveira da "fraternidade" às camadas populares e aos proletários), essa falsa revolução foi saudada de todos os púlpitos por industriais e padres, pios intelectuais radicais e proprietários rurais “responsáveis". "Ordem!", gritava Spínola; "união!", faziam eco os representantes autoeleitos de todas as camadas sociais, enquanto que em todas as igrejas o órgão entoava o Te Deum. Traduzido em termos sociais, tudo isso significava "reivindicações salariais responsáveis", greves suspensas antes mesmo de terem sido deflagradas, luta contra os extremistas, "que fazem o jogo da reação". Traduzido em termos políticos, significava confraternização entre as classes, assim como entre os partidos que encarnam as classes.
A história prova que quando o povo ou, com maior razão, o proletariado temem "fazer o jogo da reação", inclusive ao fazer modestíssimas reivindicações, a "reação" levanta logo a cabeça. O 25 de abril lusitano foi seguido, no espaço de cinco_meses, pelo 28 de setembro; a ordem, a união, a confraternização, que deveriam ter excluído "toda e qualquer volta atrás" no próprio terreno burguês, só vieram precipita-la. Mas é inútil pretender que uma falsa revolução possa auto-criticar-se. O apelo do novo presidente Costa Gomes ao povo português é, como o de seu predecessor na primavera, um apelo "ao trabalho, à ordem e à união".
O que o Movimento das Forças Armadas, tanto em seus escalões superiores quanto em suas camadas intermediárias, chama de "segunda revolução portuguesa" pouco mais é que uma bem dirigida operação policial, orquestrada por "capitães" e generais e generosamente secundada por operários e camponeses. A Confederação da Indústria oferece-lhe seu precioso apoio contra "tentativas de retorno ao passado" e para a instauração de uma "sociedade livre e pluralista que garanta a iniciativa privada e, com essa, o progresso social e económico".
É a mesma "democracia pluralista" que o novo presidente augura em seu discurso de posse; a mesma que o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, chefe do terceiro governo provisório da república portuguesa democratizada, invocava, numa entrevista concedida a Le Monde quinze dias antes do 28 de setembro e publicada a 19 de outubro, ao proclamar que o programa de Movimento das Forças Armadas "não comporta reformas de fundo nem transformações substanciais no sistema económico e social em que vivemos" e ao fixar como objetivo máximo da atividade governamental "a defesa dos interesses das classes trabalhadoras" (mas quem não está de acordo com esse objetivo, hoje em dia?) e "o aumento progressivo, mas acelerado, da qualidade de vida de todos os portugueses" (sem aceleração do...progresso nem mesmo uma falsa revolução se aguenta!). É a mesma "democracia pluralista" que o secretário do PCP, e ministro desde o 25 de abril, Álvaro Cunhal, preconiza hoje, como ontem, ao anunciar na entrevista a L’Unitá de 6/10/74 o prosseguimento de uma "política de unidade das forças democráticas entre comunistas, socialistas e católicos e de aliança com o Movimento das Forças Armadas", não como um "fato conjuntural"s mas como um fato destinado a prolongar-se "depois das eleições para construir um Portugal democrático, pacífico e verdadeiramente independente", em que "todos os portugueses que aspiram a viver em liberdade" (e será que os "reacionários" também não aspiram a viver em liberdade?) "deverão ter a possibilidade de exprimir as suas opiniões e organizar-se como bem entenderem" (e que iriam desejar de melhor os "reacionários"?). É, enfim, a mesma "democracia pluralista" em cujo nome o governo provisório tem sufocado, desde 25 de abril, toda manifestação de revolta dos proletários e das camadas populares que exigem, por exemplo, a independência imediata de Angola e Moçambique(1), abrindo caminho, assim, ao "extremismo de direita" dos grandes industriais e dos proprietários rurais antediluvianos.
Se os acontecimentos portugueses tinham-se aberto sob o signo da embriaguez, seu segundo turno se abre sob o signo da embriaguez levada aos limites do delírio. As "medidas de firmeza" (contra a "extrema esquerda", naturalmente, isto é, contra os operários que se rebelam de uma forma ou de outra contra o jugo do capital) serão a sua contrapartida quotidiana.
★★★
Exilado em Paris alguns meses depois dos acontecimentos de junho de 1848, Engels recorda, em dezembro, com a morte na alma, "a fugaz embriaguez da lua-de-mel republicana, em março e abril, quando os operários, esses loucos cheios de esperança, punham, com a maior despreocupação, 'três meses de miséria a disposição da república'; quando alimentavam-se durante o dia de pão seco e batatas e, à noite, plantavam árvores da liberdade pelas avenidas, soltavam foguetes e entoavam a Marselhesa; quando os burgueses, trancados em casa durante o dia, tentavam aplacar a cólera popular com fogos de artifício multicores" (Engels, Von Paris nach Bern, in MEW, t. 5, pgs 463-480).
Em outubro de 1974, em Portugal, os proletários e as camadas populares, cheios do ódio, certamente não têm para comer nada mais que "pão seco e batatas". Mas, como acontece sempre que as revoluções são só aparentes e que acham-se ausentes da cena histórica não só o partido de classe — que a contra-revolução destruiu, substituindo-o por uma versão piorada dos partidos progressistas burgueses —, mas até mesmo aquelas "ideias de Blanqui", que Marx via irromper como memória sedimentada, embora confusa, nas explosões de cólera dos operários parisienses, os burgueses não têm necessidade de trancar-se em casa, indo, pelo contrário, pois não são nada bobos, alinhar-se com sua Confederação, cheios de entusiasmo, entre os que apoiam o governo dos militares. Os "fogos de artifício multicores" dos dias de embriaguez iluminam os céus de Lisboa 24 horas por dia, enquanto, pelas ruas, os operários plantam figuradamente as árvores da liberdade, símbolos da "revolução dos cravos", da "revolução da simpatia universal", em que as contradições de classe só "chegaram ao nível da frase, ao nível da palavra", e que é, exatamente por isso, até mesmo como pretensa revolução burguesa, incuravelmente mentirosa.
Assim, como farsa, mas como farsa trágica, a história se repete. Não houve ofertas de "três meses de miséria à república", mas, para começar, a doação de "um domingo de trabalho voluntário" ao "regime da fraternidade" saído das pobres cinzas da pálida chama reacionária, doação essa que foi prontamente abençoada pela Igreja, que "dispensou solenemente os fieis da obrigação moral de respeitar o 'dia do Senhor' e autorizou-os a prestar seu concurso à esse domingo diferente dos outros", como escreve o jornal do PC francês, L'Humanit é , de 5/10/74. E esse domingo é sacrificado — escreve com orgulho o jornal do PC italiano, L'Unità, de 7/10/74 — "alegremente", num "incomparável entusiasmo" que limpa as ruas e as fachadas de Lisboa e, segundo o jornal da burguesia milanesa II Corriere della Sera, "propicia à economia nacional o equivalente a trinta bilhões de liras" (o jornalista do Corriere della Sera parece suspirar: "que pena que não aconteça uma coisa dessas na Itália também!"). Nessa versão atualizada da "embriaguez da lua-de-mel republicana" de 125 anos atrás, a doação realista de um dia de trabalho grátis à pátria democrática "de último tipo" substitui as milhares de árvores (improdutivas!) da liberdade. É, fora de dúvida, um "progresso acelerado"...
A embriaguez vai continuar? Não. Embora adormecidos, os antagonismos sociais continuam a fermentar detrás da fachada ilusória da fraternidade entre as classes. E é por isso que a "revolução de 25 de abril" tem que manter cada vez mais viva a chama da "simpatia universal". Os burgueses "iluminados" da Europa encaram com confiança um exército que tem ao mesmo tempo a força e o prestígio popular que lhe permitem garantir, ao menos de imediato, "trabalho, ordem e unidade", e que tem, também, o raro privilégio de poder "apreciar (...) a verdadeira função dos comunistas no ocidente e a forca ordeira que eles representam diante do extremismo", como escreve Le Monde de 3/10/74.
Mas, do mesmo modo que a fumaça de fevereiro de 1848 escondia os rios de sangue proletário que viriam a correr em junho, do mesmo modo que os dias de embriaguez da república espanhola em 1931-32 traziam em seu seio os primeiros massacres de operários e camponeses, efetuados em nome da fraternidade entre as classes, reencontrada sob o signo da democracia, assim, hoje, à sombra dos domingos de "trabalho voluntário", cuja bandeira é a de "ordem e união", preparam-se as "medidas de firmeza" contra os trabalhadores que ousarem insurgir-se. Na ausência do partido de classe, as forças proletárias cheias de cólera que se agitam no subsolo social português não podem hoje, como não podiam a 28 de setembro, fazer a revolução nem "auto-criticar-se". A "perspectiva" que se abre diante delas é a de mais uma frente popular, ou melhor, nacional, da qual se faz porta-voz um partido que se diz comunista e que, ao contrário do partido espanhol em 1931, nem sequer sente a necessidade de cobrir seu oportunismo visceral com a folha de parreira da "passagem, por hipertrofia, da revolução democrática, a revolução socialista", pois revolução e ditadura proletárias desapareceram até mesmo da sua retorica: sua linguagem de negócios só conhece legalidade e democracia. No caso em que não bastarem as palavras mágicas de "liberdade, igualdade, fraternidade", recitadas pelo exército "revolucionário", estão de reserva, na sombra, os oficiais superiores das forças armadas (como, na Espanha de outrora, os oficiais superiores e inferiores do "Tercio"), já que, no ocidente, o regime democrático só pode passar, "por hipertrofia", ao regime fascista.
Será a própria história, à qual Cunhal só pode confiar o desenvolvimento pacífico de uma democracia de "tipo novo", quem trará novamente à cena portuguesa e mundial o "fio vermelho" da revolução proletária, do mesmo modo que da embriaguez e catástrofe do 1848 francês saiu o grito de guerra da "revolução permanente", da "ditadura de classe do proletariado como ponto de transição necessário para chegar à supressão das diferenças de classe em geral, para a supressão de todas as relações de produção sobre as quais elas repousam, para a supressão de todas as relações sociais correspondentes a essas relações de produção, para a subversão de todas as ideias que emanam dessas relações sociais" (Marx, As lutas de classe na França, cap. III)! Já é tempo de ser rompido o círculo vicioso infernal de uma "fraternidade" republicana que se desdobra em metralha bonapartista ou fascista! Já é mais que tempo de a ilusão da "simpatia universal" ser substituída pela consciência do antagonismo inconciliável entre as classes! Mas essa consciência, e a ação a ela correspondente, são inseparáveis da presença atuante do partido revolucionário marxista.
É nesse sentido que devemos trabalhar, senão, uma vez mais, a república tricolor tingir-se-á "de uma só cor, a cor dos proletários assassinados, a cor do sangue". E de um sangue derramado generosamente, mas em vão.
(Il Programma Comunista, n.º 19, 15/10/74
Le Prolétaire, n.º 102, 21/10 — 3/11/74)
Notas de rodapé:
(1) "As medidas de firmeza tomadas contra certos grupos de esquerda" — já dissera Vasco Gonçalves a Le Monde, quinze dias antes — "visavam a defender o processo de descolonização em curso e a consolidar as conquistas democráticas que se tornaram património do povo português desde 25 de abril". (retornar ao texto)
Inclusão | 25/04/2019 |