Lutas de Classe em Portugal de 25 de Abril a 25 de Novembro
(e suas Relações com as Lutas de Independência na África)

Partido Comunista Internacional


Lisboa em Ritmo de Luanda


capa
Baixe o arquivo em pdf

Foram as massas deserdadas de Luanda que infligiram, em fevereiro de 1961, o primeiro golpe profundo ao Estado Novo, e continua sendo a sucessão dos atos da tragédia africana que marca o ritmo do desenrolar da farsa portuguesa.

Uma população equivalente a dois terços da população da metrópole, sendo 700 mil os brancos (ou seja, mais de um habitante por dez); riquezas agrícolas que permitiram a Portugal o gozo da dias felizes; e, principalmente, tesouros em minérios e petróleo cuja magnitude mal se conhece mas que já provocam a cobiça dos abutres e das hienas imperialistas; só isso já é o bastante para compreender porque o capitalismo português, embora reorientado em direção da Europa, faz os maiores esforços para conservar as "estreitas relações de cooperação" com Angola, essa pérola do império português que tem, naturalmente, um lugar à parte no "processo de descolonização".

De abril a setembro de 1374 era o general Spínola que cuidava, por exigência expressa sua, do "caso angolano". E enquanto que o acordo para reconhecer a independência da Guiné e de Moçambique foi feito bastante rapidamente, já para Angola foi uma outra história. Aliás, o revolucionaríssimo e maoistíssimo líder da UNITA não havia afirmado, prazenteiro, que “o povo de Angola não está preparado para a independência" (Le Monde, 7/7/74)! Imaginamos perfeitamente tenha sido ele o primeiro a responder ao famigerado apelo do general Costa Gomes — "primeiro, depor as armas; depois, negociar...” —, conquistando de quebra a simpatia e o apoio dos colonos brancos.

Por outro lado, as relações com os países europeus (a Alemanha em primeiro lugar), por intermédio de Mário Soares, os encontros de Spínola com Nixon, bem como seus contatos com Mobutu, eram as premissas indispensáveis para o reconhecimento da FNLA, a qual, até mesmo segundo o jornal conservador Le Figaro (28/3/75), "nada teria salvado do esquecimento no plano militar ou político em Angola, se o Zaire e seus aliados ocidentais não a tivessem apoiado artificialmente a fim de impô-la, no momento oportuno, como único interlocutor válido dos portugueses".

A contrapartida dessa política consistia em marginalizar das negociações o MPLA, esse “diabo vermelho", esse "agente de Moscou". Na realidade, o MPLA, que existe há 20 anos, é um desses partidos anticolonialistas que influenciam as massas miseráveis na medida em que reclamam a independência política e em que sustentam essa reivindicação com a luta armada. Mas o fato de que ele se tenha desenvolvido no momento do refluxo da vaga da independência africana e de que o movimento social e a guerrilha tenham tomado corpo após as atrocidades cometidas pelo imperialismo nos Camarões e no Congo tornou-o temeroso no momento da ação. É digno de nota o fato de que a revolta de 1961, em que as massas dos muceques de Luanda atacaram à mão desarmada a prisão a fim de libertar os militantes nacionalistas negros, inúmeros deles pertencentes ao MPLA, deu-se de maneira puramente espontânea, de tal modo que os dirigentes do partido, que tinham pensado poder protelar o momento da luta direta, assistiram impotentes à revolta e à sua tremenda repressão. Desde então podemos dizer que o MPLA não realizou nenhuma ação de envergadura sem que a isso fosse obrigado pelas massas.

O sufocante ambiente internacional, a ausência de um vigoroso movimento proletário na metrópole e a traição do stalinismo, a que se soma o desenvolvimento insuficiente dos antagonismos de classe em Angola, permitiram, portanto, que os elementos mais moderados tomassem de um modo que poderíamos dizer natural a direcção do movimento. Partido hesitante, o MPLA deveria vir necessariamente a tornar-se o partido das camadas hesitantes, as camadas intermediárias, o partido dos mestiços e assimilados, camadas que, não obstante sua verborragia socializante, tem um horizonte limitado por um democratismo, um legalismo e um "progressismo" cujas armadilhas elas são totalmente incapazes de evitar. Por isso mesmo, pressionado por seus "amigos políticos" em cujos braços a ausência de uma luta proletária contribuiu a fazê-lo cair — os países do Leste ou os Estados africanos pretensamente "progressistas" bem como a democracia e o oportunismo internacionais —, o MPLA não foi capaz de e não pôde recusar-se a firmar, já em 1972, um acordo com a FNLA, acordo esse que teve como único efeito a revalorização dessa última. É por isso também que seus dirigentes deixam-se ofuscar pela miragem de um Portugal democrático e de uma cooperação com este. Aliás, os militares portugueses já souberam tirar partido de todas essas ilusões...

Assim, se o almirante Rosa Coutinho criticou abertamente desde meados de 1974 as "intervenções do Zaire em Angola" e lamentou a marginalização do MPLA, não o fez por simpatia para com este, nem muito menos para com as massas dos muceques: o medo de ver Angola passar para o controle das potências ocidentais sem utilizar os préstimos de Portugal já seria o bastante para explicar tal atitude. Mas, acima de tudo isso, certos setores do MFA têm consciência de que somente o MPLA é capaz de conter a revolta endémica das massas proletarizadas, contanto que seja possível apanhá-lo na arapuca dos compromissos, à qual sua própria natureza atrai.

Com efeito, foi preciso reagir às demonstrações populares de maio de 1974, às rebeliões de julho e agosto, às greves incessantes, principalmente nos portos. Para tanto, o Alto Comissariado tomou as medidas mais enérgicas contra os "agitadores extremistas" e lançou mão da repressão e da intimidação permanentes nos bairros africanos. Mas era claro que isso não bastava, e que uma outra política, mais hábil, era impossível enquanto o "caso angolano" estivesse nas mãos de Spínola.

Assim, ao menos por essas duas razões, a comédia burlesca das lutas de 28 de setembro em Lisboa encobria o drama das lutas reais de Luanda.

Eliminado o general de monóculo, os três movimentos africanos sentaram-se à mesa de negociações, e o MFA realizou a mesma política levada a cabo em Lisboa: fortalecer seu poder e o aparelho de Estado e, ao mesmo tempo, tentar impor o acordo aos representantes das diferentes forças, objetivo esse que foi alcançado, pelo menos no papel, em Mombaça e, depois, em Alvor (antes de impor aos Partidos portugueses seu programa para as eleições), com a constituição do "governo de transição", cuja função seria a de preparar a proclamação da independência e as eleições de novembro. É mais do que claro que esse governo é puramente formal, pois não tem nem ministério da Defesa nem dos Negócios Estrangeiros (é fácil compreender porque!). Portugal só retirará suas tropas dez meses depois da independência, se tudo correr bem, e, até lá, terá mais soldados em Angola que todos os três movimentos juntos. Por sua vez, a FNLA conseguiu desembaraçar-se do Alto Comissário Rosa Coutinho, considerado excessivamente de esquerda (!) e obter o único ministério importante, o de Interior, enquanto que o MPLA tem pastas meramente decorativas. Em todo caso, o objetivo perseguido por Portugal é alcançado, e o MFA consegue fazer-se considerar pela UNITA (nem era preciso precisar...), mas também pelo MPLA como um árbitro da situação, a tal ponto que esses partidos virão a pedir que as autoridades portuguesas "renunciem à sua passividade"!

Mas nos muceques de Luanda essa política não é bem recebida. Desde novembro, sublevações populares tentam opor-se à instalação de uma delegação da UNITA na capital. "As tropas da FNLA ajudam os portugueses a restabelecer a ordem. Esses acontecimentos contribuíram, sem dúvida, para aproximar os pontos de vista da FNLA e da UNITA, as quais assinaram, no dia 25 de novembro, em Kinshasa, um acordo “tendo em vista afrontar toda e qualquer eventualidade extremista de qualquer tipo”, lê-se em Afrique Contemporaine de janeiro/fevereiro de 1975.

Enquanto que a participação do MPLA no "governo de transição" paralisa a ação das massas populares, os outros dois partidos realizam violenta campanha contra sua palavra de ordem de "poder popular" sob o pretexto de luta contra a "ditadura" e o "comunismo ateu". Acima de tudo, não hesitam em intimidar, com a ajuda do exército português, as populações dos muceques. No fim de março, os mercenários da FNLA (adestrados no Zaire com dinheiro americano e instrutores chineses) assassinam 50 jovens do MPLA, provocando os choques sangrentos da semana santa e, em seguida, os do começo de maio, que fizeram mais de mil mortos. E enquanto novos atritos faziam centenas de mortos em junho, os líderes do MPLA afirmavam desejar ainda respeitar os acordos de Alvor e reiteravam os termos do mesmo em Nakuru, considerando que os "três movimentos estão fadados a entenderem-se" (Le Monde, 26-27/7/1975).

É inegável que foi a fermentação popular que provocou o êxodo maciço dos brancos de Angola e que fez ir por água abaixo o projeto de_"sociedade multi-racial", comum tanto a Spínola quanto aos capitães de hoje, projeto esse que deveria assegurar a Portugal as melhores garantias para manter em suas mãos as rédeas da situação. Foram também as massas popularas e o jovem proletariado que obrigaram o MPLA a realizar finalmente a recente ofensiva (julho de 1975) contra a FNLA e a varrer da capital esses mercenários odiados pelas massas.

Mas se, ao que parece, as autoridades portuguesas não se opõem abertamente à ação do MPLA (como poderiam fazê-lo sem se arriscar a desacreditar-se?), revestindo-se assim de um halo de "neutralidade”, no entanto estabelecem um dispositivo para impedir que as massas se ponham em movimento e que a greve geral se transforme em sublevação. Os soldados portugueses não cessam de patrulhar as ruas e os arredores dos muceques e, "de acordo com as instruções recebidas, abrem fogo contra todo civil armado" (Le Figaro, “15/7/75).

Mais uma vez, por detrás dos acontecimentos de Lisboa, em que os partidos brigam entre si mas com a esperança de se reconciliarem a todo instante (como quer que seja, todos eles estão de acordo no que concerne aos sacrifícios a serem impostos e pedidos à classe operária), e em que as batalhas são simplesmente contendas de opinião e combates teatrais, delineia-se a tragédia de Luanda, em que o acordo entre os partidos é rompido pelo choque das armas.

Com efeito, como poderia o MFA manter, em Lisboa, a harmonia entre o Portugal de Otelo e de Cunhal – o Portugal do chauvinismo — e o Portugal euro-americano de Spínola e Soares no momento em que esses dois irmãos siameses são brutalmente separados em Luanda pela intervenção cirúrgica do movimento de independência? Como poderia a CEE conceder (e a preço de uma humilhante concessão do nacionalismo impotente dos capitães! ) a ajuda tão reclamada por Lisboa no momento em que os militares mostram-se incapazes de impedir que seu melhor trunfo seja desperdiçado em Luanda?

Por outro lado, a crise aberta no coração da África ainda não terminou. Será que novos arranjos na mesma base de hoje serão possíveis? Ou será que assistiremos à secessão de Cabinda e das províncias de Zaire e Uige, controladas pela FNLA? E será que as massas dos muceques vão deixar que sejam contidos indefinidamente seu ódio e suas exigências anticolonialistas numa luta que, graças aos grilhões com que os militares portugueses conseguiram acorrentar o MPLA, é mantida nos limites do respeito para com as autoridades da ex-metrópole? Enquanto isso, o MFA envia suas tropas de elite e reforça sua presença militar, coisa que Melo Antunes chama de "neutralidade" e que virá certamente a acentuar as tensões sociais, tanto em Lisboa como em Luanda.

Foram as massas de Luanda e dos outros centros das colónias que provocaram no salazarismo as fissuras que permitiram que os proletários dos centros metropolitanos se pusessem em movimento. E, enquanto a demagogia socializante consegue, hoje, tapar essas brechas, uma nova marretada vibrada pelas massas de Luanda vem abri-las novamente, como que para tornar a dar um pouco de liberdade de movimento ao proletariado. Mas para que este último deixe de caminhar dormindo, para que ele possa alargar as brechas abertas, é preciso fazer frente à propaganda e à ação esterilizantes do oportunismo social-imperialista e social-chauvinista.

Infelizmente, na metrópole, nenhum partido faz isso de modo consequente; os maoístas deram todo crédito às promessas de descolonização do MFA e estão ofuscados por sua demagogia nacionalista; os trotskistas buscam no oportunismo um "trampolim" para a luta proletária, precisamente no momento em que os próprios fatos provam ser ele, seja no governo, seja na oposição, o melhor baluarte da opressão capitalista e imperialista.

Para que aos golpes de aríete das massas proletarizadas das colónias faça eco a luta de classe do proletariado da metrópole contra o inimigo comum e para que as massas oprimidas das colónias intervenham na luta de modo independente e por sua própria conta, para tudo isso é necessária a luta pelo partido proletário,

(Le Proletaire3 n.º 201, 25/1 — 15/9/75
Il Programma Comunista, n° 15, 25/1/75)


Inclusão 25/04/2019