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— Ih! Que grande chatice! — desabafou a Ana, no dia seguinte, no caminho para a escola. — Detesto a tia Emília! Logo havia de calhar ser ela a vir tomar conta de nós!
— Não nos vai deixar fazer nada! Mal chegou e já está farta de nos chatear!
— Mas afinal quem é essa tia Emília?
— É uma tia velhota da minha mãe. Vive sozinha em Lisboa com um gato e um cão. Como não tem nada para fazer, a minha mãe lembrou-se dela, para vir cá para casa.
— O pior é que não sabemos ao certo quando o meu pai tem alta no Hospital — disse o Luís.
— E até lá ... temos de a aguentar!
— Porque não fogem para nossa casa? — aconselhavam os gémeos, que eram muito dados a medidas radicais.
— Vocês estão malucos!
— Quando íamos a sair, avisou-nos logo que tínhamos de vir a correr, muito direitinhos, para casa, mal acabassem as aulas!
— Hiiihhhhh! ...
— Não há problemas! Plantamo-nos em vossa casa e ela, na nossa frente, não tem coragem de implicar com vocês — propôs o Nuno, triunfante.
— É uma ideia! — acrescentou o Filipe. — Sempre quero ver se ela tem assim tanta lata!
— Será que vos vai deixar ver televisão?
— E a nossa bola? Com estas confusões todas até nos esquecemos dela!
— É verdade! A bola! Ih! Que desperdício! — desabafou o Luís. — Está lá em baixo na cave...
— Nem penses ir agora buscá-la, Luís! A tia Emília matava-te ... Aposto que é do género chichi, cama! — gemeu a Ana.
— Eu, nos dias em que não tiver aulas de tarde, quero ir ao Hospital ver o pai! Ninguém me vai impedir!
— Era o que faltava ela proibir-nos isso — exclamou Ana, fervendo já de indignação. — Sempre queria ver!
No Hospital, tinham mudado o doente para um pequeno quarto ao fundo da enfermaria. Tinham colocado lá uma cama desmontável para a mãe poder ficar todo o tempo junto dele. Era contra as regras da casa, mas alguém do Laboratório tinha falado com o director do Hospital e tudo se arranjara.
Nesse dia, quando os miúdos chegaram da escola, encontraram a porta da sala de estar fechada. A voz da tia Emília ouvia-se cá fora, esganiçada e muito exaltada, misturada com vozes masculinas. Ana entreabriu devagarinho a porta e, pela frincha, pôde ver que a tia falava com dois homens.
— Ora esta! — cochichou para os outros, assustada. — Quem são aqueles?
— Aposto que são polícias à paisana! — sussurrou o Luís. — São iguaizinhos aos das séries da televisão, têm gabardina, pasta, e bigode. Só lhes falta o chapéu!
Atrás da porta conseguiam-se apanhar farrapos da conversa e, depressa descobriram que as suposições do Luís estavam certas: a tia Emília estava a ser interrogada por dois polícias.
— Como querem os senhores que lhes diga alguma coisa se eu só sei o que a minha sobrinha me contou — repetia a tia Emília muito abespinhada. — Já basta o que o meu sobrinho sofreu ... Não acham que já foi suficiente? Anda um pobre de Cristo a trabalhar para lhe pregarem um tiro em cima ... Não há direito!
- Realmente, minha senhora ...
— E escusam de ir incomodá-lo ao Hospital — continuava. — O meu sobrinho sofreu um acidente grave, precisa muito de descanso. Não têm o direito ... Bem basta o que lhe aconteceu! — repetia indignada, e tão vermelha de indignação, que até se notava do lado de cá da porta.
— Ó minha senhora, nós não queremos criar problemas a ninguém — respondeu um dos polícias. — Entendemos muito bem a situação, mas tem de compreender ... Para se fazer justiça, precisamos de estar na posse dos factos. Foi muito grave o que se passou ... Desapareceram planos de uma investigação muito importante! E se por um lado, já tinham seguido o seu destino ...
— Por outro lado — continuava o outro polícia, — as cópias que cá ficaram caíram em mãos estranhas! Pode ser dado um uso indevido ao trabalho do seu sobrinho e o resultado vai ser gravíssimo!
— Felizmente que não roubaram a central francesa!
— O quê? — perguntou aterrada a tia Emília. — Roubar uma central francesa aqui em Sacavém?!
— Enfim ... — diziam os dois. — Nós sabemos o que queremos dizer!
— Ah! Ainda bem, ainda bem!
Fez-se silêncio na sala. Os miúdos acotovelavam-se atrás da porta, de orelha espetada, tentando não perder pitada do que se passava.
— Valha-me Deus! — gemeu por fim a tia Emília mais branda, após uns segundos de silêncio. — Mas afinal o que é que os senhores querem que eu faça? Que vá atrás dos ladrões? Eu não sei de nada, não vi nada! Nem sequer cá estava quando as coisas aconteceram. Só cheguei muito mais tarde para tomar conta dos meus sobrinhos. E não houve tempo para me contarem nada ...
— Mas deve haver indícios — insistiam os polícias, já impacientes. — Impressões digitais, qualquer tipo de marcas. Precisamos de alguém que nos dê indicações ... O engenheiro estava sozinho no momento em que a pasta foi roubada?
— E os senhores a darem-lhe! — tornava a tia Emília, cada vez mais aflita. — E não é engenheiro, é doutor.
Nessa altura o Luís não aguentou mais. Escancarou a porta e entrou, resolutamente, na sala.
— Credo, rapaz, que me matas de susto! Não te senti chegar!
A tia Emília olhou para a porta e viu os outros três.
— É muito feio escutar às portas, sabiam? Quando a minha sobrinha vier vou-lhe dizer! Ai os meninos! Parece impossível!
— Mas nós podemos contar tudo! — interrompeu a Ana, sem ligar nenhuma às ameaças da tia. — A nossa mãe contou-nos, quando fomos ao Hospital ver o pai!
— Ó Ana, mas o que é isso? Não sabia que tinhas o hábito de escutar atrás das portas! — Repetia a tia Emília, indignada. — Desculpe-a senhor guarda. A minha sobrinha é uma criança muito metediça! O que é que ela pode saber desta história toda? Que disparate!
— Sabemos tudo sim senhora e podemos contar-lhes, assim que quiserem ouvir-nos! — O Luís rebentava de indignação contra a tia Emília e a Ana quase perdera a respiração, de fúria.
Houve um momento de hesitação. Um dos polícias pigarreou, pouco convencido:
— Digam-nos então o que têm para contar. Mas antes de mais nada: Não têm notado nada diferente do habitual? Pessoas estranhas a rondar a casa?
— Huuummmmm ... Acho que não — ia dizer a Ana, mas foi interrompida por uma cotovelada de um dos gémeos que lhe sussurrava ao ouvido: "A bola! Fala na bola!"
— É verdade! Há aquele mistério da bola que veio não sabemos de onde ... Conta tu, Luís! Tu é que a aceitaste daqueles tipos desconhecidos ...
— Eu conto, eu conto ... — começou o Luís, muito vermelho.
— Somos todos ouvidos e até vamos gravar os depoimentos que vocês nos prestarem! — disse o outro, com mais convicção.
A tia Emília, furiosa, saiu, desarvorada, da sala. Ia com um ar tão ameaçador que os quatro até se encolheram. E, à vez, foram contando tudo o que se lembravam da cena da bola e do relato que a mãe dos gémeos lhes fizera.
Por fim, os dois polícias arrumaram com todo o cuidado o precioso gravador no estojo e prometerem que, tão cedo, não iriam incomodar o senhor doutor com perguntas. E acabaram por se ir embora todos satisfeitos!