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— Deus meu! — suspirou a Ana, arrumando os livros e cadernos da escola. — Não faço ideia do que vai acontecer nesta casa, se os pais não voltam depressa!
As coisas iam de mal a pior com a tia Emília. Desde o dia anterior que, com a visita dos polícias, se criara um ambiente de cortar à faca. À noite, a tia Emília pusera o jantar na mesa e os três tinham comido em silêncio. Luís ainda ensaiou uns elogios aos cozinhados da tia.
— O arroz está muito bom.
— Não ficou mal — respondia a tia, mais seca que o arroz que cozinhara.
— E a carne também está gostosa — insistia o sobrinho, cheio de boa vontade.
— Sim, sim — tornava a tia, no mesmo tom.
"Irra", pensou o Luís. "É demais!" Ana, essa, lançava chispas pelos olhos. A única solução foi jantarem o mais rápido que puderam e cada um desaparecer para o seu canto. Nem se atreveram a ligar a televisão, com medo de apanharem um raspanete.
Era evidente que, com razão ou sem ela, a tia se tinha sentido lesada na sua autoridade ao ver-se ultrapassada pelos sobrinhos, a quem não reconhecia capacidade para darem informações de tanta importância. Considerava-os demasiado crianças para tal. Era muito velhota e intransigente, a tia Emília.
O dia seguinte amanheceu sem alterações na situação. A tia Emília andava em bicos de pés pela casa, cumprindo com uma eficiência quase maníaca a missão de que a tinham incumbido. A mãe dos gémeos chegou depois de mais um almoço quase silencioso, trocou umas frases polidas com a velha senhora, e levou os quatro ao Hospital.
Quando chegaram ficaram de orelha murcha.
— O pai como está? Quando volta? — perguntou Ana, mal entrou no quarto e deu um beijo à mãe.
— É uma chatice, filha ... — respondeu a mãe. — Parece que o pai vai ter de ficar pelo menos até ao fim da semana ... Tem tido uma febre que não há meio de lhe passar, os pontos infectaram ... Temos de ter paciência! — disse, fazendo festas aos dois.
Ana e Luís entreolharam-se, perplexos. Contavam ou não à mãe as cenas com a tia Emília? O pior foi que a Ana não se aguentou mais e, de repente, desatou a chorar.
— Sabes? — disse o Luís, muito aflito com a possível reacção da mãe. — Temos tido problemas com a tia Emília ... Foram lá uns polícias e ela não levou a bem que nós ajudássemos ...
Para espanto dos dois, a mãe não ligou grande importância ao caso. Até se esforçou por acalmá-los, explicando-lhes que a tia era uma óptima pessoa, mas que tinha sido educada numa época em que as crianças não tinham voz activa em quase nada. E ficou toda orgulhosa com o desembaraço dos filhos. Recomendou-lhes que, se por acaso os polícias voltassem, lhes dissessem que o pai não estava ainda em condições de receber ninguém.
— Porque não vão os quatro dar uma volta por Lisboa? — propôs aos miúdos, à laia de consolo, quando a hora da visita se esgotou. E olhou intencionalmente para a mãe dos gémeos.
— Boa ideia! — disse logo esta. — Preciso de ir ao Eduardo Martins ver se os tecidos que encomendei já chegaram!
— Vamos lá mãe! Enquanto procuras os teus tecidos, nós passeamos na Baixa!
— Óptimo, vamos ver as montras!
— Vamos comer bolos àquelas pastelarias chiques da R. Garrett!
— Bolos? Vamos mas é comer uns geladinhos! — diziam os dois gémeos, ao mesmo tempo.
- Eu quero ir ao Chiado ver o bazar!
— E no Grandella? Também há brinquedos no Grandella!
A D. Isabel deixou-os em frente à Brasileira, com a promessa de que daí a hora e meia se encontravam ali todos para lanchar.
— Vamos antes ao elevador de Santa Justa! — propôs a Ana.
— Ora, que ideia! — responderam os gémeos. — Vai tu sozinha e depois contas-nos como é! Temos coisas mais importantes para fazer!
— Vá, não sejam chatos, ou vamos todos ou não vai ninguém. É um instante e a seguir vamos aos gelados e ao Grandella — propunha a Ana.
— Tu e as tuas paixões pela História — resmungou o Filipe. — Não te parece que há coisas melhores para fazer do que olhar para monos?
Era verdade que a disciplina preferida da Ana era a História. No mais fundo de si mesma até já tinha decidido que seria esse o curso que tiraria quando fosse grande.
— Não sejam chatos! — repetiu a Ana. — Sabiam que o elevador sobe até às ruínas de um convento que foi arrasado durante o Terramoto?
— A sério? — troçou o Filipe. — E ainda se vêem as pedras a abanar? E a terra a tremer?
— Que engraçadinho! Sabias que há uma linha de eléctrico que entra pelo convento dentro?
— Não pode ser!
— Pode pois! Era para levar os frades a passear! — exclamou o Nuno a rir.
— Ou as freiras — juntou o Filipe, rendendo-se à ideia. — Se calhar eram frades e freiras! Era mais divertido, têm de concordar! Todos a passear de eléctrico pelo convento fora!
— É, e de vez em quando davam uma escapadela até à cidade ... pelo elevador!
— Era mas era para as pessoas perseguidas se refugiarem mais depressa dentro do Convento! — disse o Luís, sonhador.
— És doido! Que história é essa?
— Estás a brincar connosco?
— Não estou não senhor! Vocês não sabiam que na Idade Média os conventos funcionavam como uma espécie de embaixadas? Tinham poderes especiais ... Se alguém andasse fugido não o podiam prender se se refugiasse dentro dum convento.
— Olha o grande sabichão!
— Grande sabichão coisa nenhuma! — exclamou a Ana, que andava sempre à compita com o irmão. — Vocês não têm seguido aquela série medieval, na televisão? Toda a gente sabe que os frades tinham um poder enorme na época! Ainda por cima eram as únicas pessoas que sabiam ler e escrever! E tinham muitas terras e dinheiro! — concluiu com um ar importante.
Riram todos, imaginando frades e freiras à mistura com uma história de polícias e ladrões, numa perseguição de eléctricos, correndo à desfilada pelos corredores do convento. Já todos queriam ir vê-lo.
— O Convento está todo em ruínas e fica num larguinho ... Não me lembro é do nome!
— Perguntamos, ora essa!
Estimulados pela imaginação, já todos queriam agora ver o Elevador e o Convento.
Daí a dez minutos trepavam na direcção das ruínas do Carmo. Estava uma tarde fria para Abril, mas muito luminosa, e as ruas estavam cheias de gente. No Convento alguns turistas tiravam fotografias às ruínas, ao Elevador e à vista soberba do casario que se espraiava até ao Tejo.
Mesmo pegado à igreja havia um quartel e, à entrada, no passeio, um guarda de espingarda ao ombro, parecia petrificado. Havia uma grande quantidade de pombas por toda a praça e algumas, impassíveis, passarinhavam à sua volta.
"Se calhar julgam que é uma estátua", pensou a Ana. Mas logo a seguir deu uma gargalhada porque uma das pombas, sem respeito nenhum pela autoridade, lhe deixou cair uma grande porcaria mesmo em cima do nariz. Atrás de si, como um eco, ouviu outra gargalhada! Voltou-se, surpreendida. Era a mãe dos gémeos que, por acaso, passava por ali e se divertia observando a cena.
— Nem de propósito! — exclamaram as duas, em coro. E foram chamar os outros para virem apreciar a cena do homem, muito aflito, a limpar-se o melhor que podia, tentando mexer-se o menos possível.
Depois de uma lancharada na Brasileira, em que se atafulharam de refrescos e croissants, foram ainda aos sorvetes. A mãe dos gémeos estava satisfeita com o resultado da sua ida à tal loja, porque, além dos tecidos que encomendara, ainda arranjou um pano para cortinas que ela definiu como sendo uma "preciosidade" por ser ao "preço da chuva".
Voltaram para casa mais animados. Quando o Luís e a Ana tocaram à campainha, já meio esquecidos das esquisitices da tia, estranharam ela não vir abrir-lhes a porta. Ter-se-ia ido embora? Tocaram uma e outra vez. Mas ninguém respondia. A casa parecia deserta.