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— Ei pá, anda depressa que ainda chegamos tarde à escola! — berrou o Luís, à porta do 2º esquerdo.
O Luís e a Ana moravam no 2º direito. Quando queriam referir-se às casas uns dos outros diziam sempre "vamos para o direito" ou "vamos para o esquerdo", conforme dava mais jeito, uma vez que passavam a maior parte do tempo com os gémeos. A Ana era uma boa aluna e, como eram colegas de turma, faziam os deveres em conjunto.
O Luís, mais velho, já andava no segundo ano do Ciclo Preparatório, e servia às vezes de explicador nas matérias em que emperravam. Só os gémeos aceitavam a sua ajuda porque a irmã, pequenina e franzina para a idade, com uns olhos azuis que lhe comiam a cara toda, era demasiado orgulhosa e senhora de si para aceitar a sua ajuda. Perante qualquer dificuldade na escola, não descansava enquanto não a resolvia sozinha.
Quanto aos gémeos, eram muito distraídos para umas coisas e tinham uma curiosidade insaciável para outras. O pior era que essa curiosidade nunca coincidia com as matérias dadas na Escola, com excepção da disciplina de Ciências em que eram ambos brilhantes.
Tinham montado em casa, num quartinho interior minúsculo, um minilaboratório que a mãe lhes dera de presente no Natal. Foi tão experimentado que esta se arrependeu mil vezes de lhes ter dado tal prenda. Volta e meia, aqueles objectos de brincar tornavam-se explosivos a sério e, quando os gémeos saíam do quartinho exultantes mas meio chamuscados, a vontade da mãe era pregar-lhes uma boa surra, em vez de os levar ao hospital.
Ainda por cima, o material ia sendo enriquecido com pequenas peças que o Dr. Barroso, que lhes achava graça, trazia do Laboratório. Por isso os riscos de a casa ir um dia pelo ar não paravam de aumentar.
— Nem imaginas o que aconteceu! — gritou o Luís, meio entupido de pão com manteiga.
— Já sei. Não tiveste tempo de lavar a cara e vestiste a camisola ao contrário — troçou a irmã.
— Cala-te, pulga! Não é nada disso! Acabaram agora de sair daqui uns tipos todos janotas. Vinham num Peugeot 404 preto, com motorista e tudo!
— Ena, ena! Visitas às oito da manhã! — admirou-se o Filipe.
— É verdade! — continuou o Luís, excitadíssimo. — Quando acordei, imaginem que já estavam cá em casa! E mais: ouvi-os falar francês, mas não consegui entender patavina do que se tratava!
— Tens a certeza que não sonhaste?
— Certeza absoluta! O pior foi eu não ter percebido nada do que eles diziam!
— Ora aí está! — exclamou a irmã, vitoriosa. — Se estudasses mais um bocadinho, já percebias!
— Que grande chata! Não vês que falavam depressa demais?! — respondeu-lhe o irmão todo abespinhado,
E puseram-se os quatro a caminho da escola que distava da casa deles um bom quarto de hora a pé. O caminho não era nada bonito, mas não custava nada, porque iam sempre na brincadeira e na conversa. Havia um enorme ferro velho com todo o tipo de metais amassados e ferrugentos, amontoados aqui e ali e, pelo meio, barracas feitas de latas velhas e restos de madeira onde moravam ciganos. Havia também terrenos baldios e, pelo meio de tudo isto, serpenteava a azinhaga que os quatro tomavam para chegar à escola.
— Que estranho — disse Ana, que estivera até aí muito calada. — Porque será que o pai recebeu essas visitas?
Os gémeos estavam excitadíssimos com o acontecimento.
— Bem, eu acho que não eram mesmo, mesmo visitas — disse o Luís. — Primeiro, porque a gente conhece as visitas todas cá de casa ...
— Segundo, — rematou o Nuno, triunfante — que eu saiba não se fazem visitas a ninguém às sete da manhã !
— Também não exageres! Às sete!
— Quem seria?
— Era gente importante, e velhota, de chapéu ...
— E tinham uma pasta grossa na mão ... Acordei tão estremunhado que até pensei que estava a sonhar!
— Um sonho passado em França, não querias mais nada ?
— Ai isso queria ... — suspirou o Luís aos pontapés a uma pedra que encontrara no caminho. — Mas queria era que fosse a sério!
— Havia de ser bonito! — retorquiu o Filipe a rir. — Sem conseguires perceber o que eles diziam, como te ias safar?
— Nunca ouviste dizer que quem tem boca vai a Roma? Havia de me desenrascar de uma maneira qualquer!
E a conversa acabou ali, porque estavam a chegar aos portões da escola, onde uma pequena multidão quase se atropelava porque já tinha tocado e ninguém queria levar uma falta.
Durante o intervalo grande, o Luís reuniu-se aos outros três, na bicha para o bufete.
— Então pá? Passaram-te os sonhos com senhores franceses, vestidos de preto?
Os gémeos já imaginavam aventuras.
— Até pode ser por causa do trabalho do vosso pai!
— É verdade! Quem sabe? Se calhar eram detectives!
— Olha para estes, já a sonhar com polícias e ladrões! — riu-se o Luís.
— ???
— Não te faças engraçadinho, Luís! Como é que sabes o que esses homens foram fazer lá a casa!
Ana defendia, como sempre, os gémeos. Muito mais pequenina do que eles, com o cabelinho claro, muito curtinho, cortado à rapaz e sempre vestida de calças e camisolões, dava gosto olhar para a sua carinha séria e determinada.
Luís, pelo contrário, era um calmeirão grande e sólido. Tinha uma maneira muito especial de brincar com os amigos e as situações. Sendo fisicamente muito maior, embora só tivesse mais um ano, desenvolvera sem se dar conta uma tendência para liderar o grupo, que os gémeos aceitavam quase sem condições. Quem não lhe aceitava a autoridade era a irmã, que implicava com ele sempre que podia.
— Já não se pode brincar agora? — O Luís, com a sua fome de lobo do costume, tinha já na mão dois pães com queijo. — Bem, até logo! Continuamos a conversa em casa!
Os pais do Luís e da Ana tinham na cave uma garagem espaçosa, que estava transformada num espaço de brincadeira para os filhos. Na mesa de ping-pong travavam-se renhidas e animadas batalhas e faziam-se verdadeiros festins de biscoitinhos e laranjada quando os pais decidiam ir a Lisboa ao cinema. Estava decorada com baús de lata e poltronas velhas, cobertas de mantas de trapos e, pendurado a meio de uma das paredes, um espelho muito grande, de moldura esbotenada, que tinha sido herdado de um tio bisavô qualquer. Era ali que os quatro se encontravam sempre que chovia e também era ali o reino da Carlota, a gata da Ana. A Carlota alimentava-se quase só de biscoitos para gatos e tinha a sua cama numa cestinha de verga forrada com um cobertor velho.
— E as visitas misteriosas? Voltaram a atacar? — perguntaram os gémeos.
— Sei lá! A minha mãe não está em casa. Quando ela chegar, perguntamos-lhe — respondeu a Ana com a Carlota toda enroscada no colo.
A mãe dos gémeos trabalhava em Lisboa, num escritório, e fazia muitas horas extraordinárias para conseguir sustentar a casa. Só chegava mesmo em cima da hora de fazer o jantar e a maior parte das vezes vinha cansada e sem paciência para os filhos. Quem lhe valia era a D. Helena que não trabalhava fora e tinha pena dos gémeos, sozinhos durante todo o dia, e a Ana que quase os obrigava a estudar porque gostava muito de brincar às professoras.
— Bom, ... parece que só nos resta estudar as lições de hoje! — disse a Ana, com um suspiro. — Trouxeram os livros?
— E se antes jogássemos só uma partidinha, muito pequenina, de ping-pong? — começou o Nuno.
— Sim, sim, só uma muito pequenina ... — continuou o Filipe. — Hoje até nem demos nada de especial!
— Ai seus grandes trapaceiros! — ralhou a Ana indignada. — Demos matéria nova a pelo menos três disciplinas! E, de resto, não se safam: para jogarmos temos de estar os quatro e o meu irmão ainda não chegou!
— É verdade! — admirou-se o Filipe. — Onde é que ele estará? Saiu uma hora antes de nós, já cá devia estar há que tempos!
E nisto, ouviu-se uma restolhada pelas escadas abaixo e os três viram chegar o Luís, muito afogueado. Trazia uma bola de futebol de magnífico couro na mão e tinha um ar estranho.
— O que foi?
— O que te aconteceu?
— Quem te deu a bola?
— De quem é?
— Conta depressa! — implorou a Ana.
— Deixem-me falar, caramba! — berrou o Luís, já impaciente. — Com vocês os três a gritarem ao mesmo tempo é impossível eu explicar ...
— Já estamos mais calmos, ora diz ...
— Bem, — começou o Luís — para vos dizer a verdade não percebo muito bem que história é esta ...
— Ora essa!!!
— Então?!
— Então, podem estar a passar-se várias coisas diferentes, isto é, a razão porque me deram esta bola, ao certo ... não sei.
— Mas quem ta deu?
— Aí é que está, — respondeu o Luís — é que não sei ao certo quem ma deu!
— Estás maluco!
— Caiu do céu aos trambolhões?!
— Não sabes quem ta deu?!
— Não conheces as pessoas?
— Sim, sim, é mais ou menos isso ... — e o Luís começou a bater a bola no chão, para esconder o seu embaraço.
— Foste aceitar uma bola de estranhos? Não estás bom da cabeça, Luís! — censurou a irmã, já aflita. — Sabes lá o que eles te queriam para te dar uma bola como essa! Deve ter sido caríssima! E a mãe está sempre a dizer para não aceitarmos nada de pessoas que a gente não conhece!
— Se calhar não é uma bola a sério!
— Tem uma bomba dentro!
— Claro, só pode ser! Ih, Ih, Ih!
— Cuidado! Afastem-se! Ah, Ah, Ah!
— E se parassem com a brincadeira? — dizia o Luís, já furioso. — Deixem-me ao menos explicar porque é que eu fiquei com ela, caramba! Ainda por cima quem ma deu disse-me que a bola não era só para mim! Que era para nós os quatro! Já cá tinham vindo de propósito trazê-la, mas não tinham encontrado ninguém em casa!
— Mas quem nos queria dar a bola, afinal?
— Disseram que vinham do Laboratório ... Parece que por uma razão qualquer que eu não percebi, houve uma espécie de sorteio de bolas pelos filhos dos empregados e ... a nós, tinha-nos saído esta bola, óptima por sinal ...
— Nós? Nós também?! — exclamou o Nuno.
— O quê?! Mas nós não temos nada a ver com o laboratório!
— Claro que fiquei na dúvida ... Mas, o que queriam vocês que eu fizesse? Tive vergonha de recusar! E a bola é tão boa que estive este tempo todo a jogar sozinho, lá fora ... Nunca tivemos e acho que nunca mais voltamos a ter uma bola assim!!