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Mas se é mais do que tempo de virar a página do partido de vanguarda que distribui as suas instruções, nem tudo, longe disso, está caduco na crítica leniniana do espontaneísmo. Nascem por si próprios movimentos sociais no terreno "do que não pode continuar assim"? É verdade, e tanto melhor, embora não sejam tantos como seria necessário e talvez não exactamente "por si próprios", se os analisarmos sem ingenuidade. Mas uma coisa é insurgir-se contra uma vivência inaceitável, e uma outra bem diferente é empreender a superação real de uma alienação compreendida. De uma coisa à outra vai a imensa distância que pode separar a revolta impotente do revolucionar vitorioso. E cobrir essa distância implica organizar tarefas específicas. Só a organização do trabalho de análise e de prospectiva teóricas, longe do imediatismo espontâneo, das suas palas e das suas armadilhas - e não será necessário dizê-lo aos animadores de movimentos sociais não efémeros, leia-se por exemplo Richard Dethyre sobre a revolta dos desempregados -, permite dominar em pensamento o real a transformar: este insuportável provém de onde, depende do quê, como se suprime? Organizar também a coerentização prática de todos os movimentos sociais entre si: não há nenhuma hipótese de superar a retalho o domínio global do capitalismo, é necessária a complexa convergência de uma multidão de iniciativas transformadoras de toda a espécie. A isto acrescenta-se, subordinada mas de modo algum subalterna, a expressão eficaz de todos esses movimentos nas formas político-estatais existentes, tais como elas próprias são organizadas. Assim, a menos de ficar pelas lantejoulas de um espontâneo que dificilmente escapará por si só ao perigo de permanecer inessencial, parcelar, marginalizável, impõe-se a necessidade de uma forma instituída em que possa sem cessar aprofundar-se o imediato e sintetizar-se o diverso, até tornar cada vez mais irresistível um processo geral de desalienação histórica. No sentido amplo em que, para além das suas especificações, a palavra partido designa simplesmente qualquer dispositivo organizador permanente de tomadas de consciência e de iniciativas políticas, não precisamos de menos partido comunista mas de muito mais partido e mais comunista.
É bem verdade que, quando se mede o que foi e é ainda o monumental desfasamento entre as aspirações políticas dos indivíduos e o que lhes oferecem as formas de partido desde tão longa data dominantes, e agora tão combalidas, se compreende que lhe corresponda em muitos deles, sobretudo os jovens, acessos de espontaneísmo, de basismo, anarquismo que proclama, como o movimento britânico: claim the Street: "Nós somos a desorganização!". Mas, por muito simpática compreensão que se possa ter de reacções deste tipo, há que reiterar com força que nunca e em parte nenhuma esta velha compulsão mudou o que quer que fosse de modo profundo e durável - também aqui se imporia a mais atenta das autocríticas históricas. Sim, há uma absoluta necessidade de uma força comunista organizada, mas de um modo muito novo, em que a organização tenha como papel não o abolir a espontaneidade mas sim superá-la em auto-organização - fórmula que pode ter traduções muito concretas e que iremos abordar. Há necessidade de uma formação com uma identidade tão forte quanto não fechada, a do objectivo comunista que se não deve deixar descaracterizar por nada e que, pelo contrário, deve poder enriquecer-se com qualquer projecto de desalienação inédita - trata-se, como tão bem escreve Roger Martelli em Le Communisme, autrement (Syllepse, 1998), de construir o partido, já não de uma classe mas "de um projecto", o que substitui libertadoramente uma rígida determinação "de .natureza" por uma flexível motivação de cultura. Uma formação com uma vida interna específica, como qualquer organismo vivo, mas sem fronteiras vigiadas: vem a ela quem com ela quer trabalhar, mantendo a sua individualidade; uma formação com um pensamento teórico tão exigente para captar a nossa época como o foi o de Marx na sua, mas estruturalmente desimpregnada de qualquer doutrinarismo; uma formação com regras de vida precisas - a inorganização é o contrário da democracia, como pelos seus aspectos simpáticos o atesta a maioria dos grupúsculos -, mas sem manual de instruções programado. Em resumo, num adeus sem retorno ao "partido dirigente", um pólo energético e, aceite-se a metáfora, um gerador de dinamismo político, social e cultural.
Que tipo de construção e de funcionamento reclama esta futura força? É a segunda questão de principio, também ela incontornável, tratada no seu tempo por Lenine: centralismo e democracia.
Tendo em conta a crónica sujeição dos aderentes que o estalinismo vulgar reproduziu durante tanto tempo e a decisiva libertação das iniciativas que uma verdadeira prática comunista implica, é evidente que passa hoje para primeiro plano, quer para os comunistas com cartão quer para os sem cartão, uma formidável reivindicação de democracia.
Renunciar efectivamente às tarefas impostas e aos congressos prefabricados, ao escamotear das questões cruciais nos discursos torrenciais e ao tratamento das posições divergentes por um rasteiro colar de etiquetas, ou até renunciar às manipulações e mentiras régias - duras palavras, mas que dizer das realidades que lhe correspondem? -, tudo isto e muito mais ainda se resume num imperativo: acabar com o poder exercido pela direcção sobre os aderentes. O que não é nada menos do que uma revolução político-cultural em que a grande palavra comunismo ganhe enfim, ao mesmo tempo que um sentido público, um sentido interno. Por outras palavras, o apodrecido espírito da verticalidade hierárquica caducou enquanto principio geral de organização.
O menos possível de delegação de poder, logo o menos possível de poder: aqui se esboroa o que continua a subsistir de centralismo autocrático. É mesmo romper na sua própria base com o princípio leniniano segundo o qual o partido se constrói de cima para baixo. Mas atenção! Este princípio não subentende apenas a caduca verticalidade, também cobre um inevitável primado da organização objectiva - estruturas instituídas, decisões anteriores, etc. - sobre a subjectividade dos organizados. Qualquer organização exige esta objectivação e o seu respeito por todos, sem o que logo se volta a cair na inorganização espontânea. O problema é pois velar para que, podendo os aderentes modificar a qualquer momento o instituído, esta objectivação não degenere nunca em alienação - questão-chave que nos esforçaremos por melhor analisar.
Mas, para nós, o princípio leniniano tem a ver ainda com algo mais: uma proliferação de experiências transformadoras originais, em terrenos tão variados quanto possível, necessita em absoluto de uma força organizada, de informações recíprocas, avaliações cruzadas, aprofundamentos comuns, conclusões transversais, toda uma centralização elaborativa que remete ela própria para a descentralização dos seus resultados provisórios e inversamente, num incessante vaivém. Neste sentido, se a função política primordial de uma nova força comunista exclui a verticalidade, a sua função subordinada de intervenção nas formas político-estatais institucionais não parece poder ser tratada do mesmo modo - voltaremos a isto. Ela reclama efectivamente uma centralidade livre de uma espécie muito nova num partido político, a contracorrente do presente entusiasmo pela "rede sem centro" que, sem dúvida excelente para fazer intercâmbios, é desprovida de virtualidades para chegar a conclusões - em matéria de organização não esqueçamos, em proveito de modelos informáticos, a lógica do vivo em que o exemplo por excelência do organismo privado de centro é o animal descerebrado. Por aqui se mede até que ponto foi falaciosa, a pretexto de "superar o centralismo : democrático", a decisão do XXVIII Congresso do PCF de .. banir a utilização do adjectivo central (o que aliás foi insuficiente para mudar certas realidades profundas), em vez de concentrar a crítica no vertical não-expresso em que reside contudo inteiramente o espírito autocrático. É o exacto inverso do que me parece indicado: revalorizar uma centralidade viva, enfim liberta da pesada verticalidade a que durante tanto tempo esteve tão submetida, instaurando deste modo a descompartimentação horizontal e a autonomia concertada de uma formação política de nova geração.
Uma organização irrigada pela espontaneidade, numa centralidade protegida contra a verticalidade: este é, em suma, caso se siga o fio teórico que nos pareceu termos bons motivos para aqui preferir a outros, o esboço programático de uma força política capaz sem dúvida de dar vida no quotidiano a um objectivo comunista. Em flagrante ruptura com uma forma-partido esgotada, não poderia a sua compleição inusitada suscitar formas renovadas de implicação na sua vida interna, e ao mesmo tempo de intervenção na vida social? Não poderia despertar na jovem geração novas vontades de agir de modo organizado? Desencadear talvez, à esquerda da esquerda, o processo de uma saída da crise da política, de imprevisíveis consequências? Temos o direito de o sonhar. Mas não seria mau contribuir um pouco mais para o sonho entrando em certos detalhes. Mas, aqui como em todo o livro, aparece uma dupla dificuldade: já que fazemos depender o futuro do partido comunista da sua colectiva refundação, não poderíamos, a não ser por absurdo, querer prefigurar por uma conjectura pessoal o seu imprevisível resultado; aliás, quando se adopta como fio condutor a mais geral das atitudes teóricas, também se não pode sem inconsequência querer tirar conclusões quanto a aspectos concretos, evidentemente indetermináveis, fazendo abstracção de múltiplas considerações particulares. Não nos proporemos pois aqui, como é natural, a absurda tarefa de esboçar antecipadamente os estatutos por que decidirá optar uma futura organização comunista. Outra coisa é tentar ver melhor, e dar a ver, o que podem significar orientações de princípio, por meio de algumas hipóteses ilustrativas e de carácter claramente exploratório. E tão só neste sentido que, antes de terminar, avanço um pouco relativamente a três questões nevrálgicas.
[pgs 189_194. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |