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A forma-partido não é uma entidade organizacional isolável; é antes do mais ditada pela função estratégica que a si mesma se fixa no campo político estruturado em que quer intervir. Esta é a única óptica em que se pode quer pensar a crise histórica do PCF quer imaginar um tipo de organização que permita levar muito mais longe o combate comunista dos nossos dias. Que o modo de funcionamento do PCF, formado outrora no molde da III Internacional, ainda tenha a marca específica do estalinismo vulgar... é evidente. Mas acredita-se que, por exemplo, o Partido Socialista, herdeiro de uma história muito diferente, não saiba o que é o poder absoluto da cúpula sobre a base? Aquilo que nele se chama "cultura de governo" é o melhor dos exemplos da atitude política que subtende o centralismo autocrático. É capital vê-lo claramente: o segredo da forma-partido agora exangue não pertence só ao passado - se pertencesse, o problema seria aliás fácil de resolver - mas reside num modo actual de entender e praticar a política, coisa que a ritual incriminação de Lenine e do tão longínquo leninismo esconde completamente. Seja, por exemplo, a omnipotência do "Primeiro-Secretário", que é um importantíssimo traço da forma em causa. Vamos, no caso do PCF, entroncá-la em Lenine, ao arrepio de qualquer verdade, para declarar a sua obsolescência e decretar o seu abandono? Seria uma decisão totalmente inoperante se não identificássemos nem combatêssemos aquilo que faz a actual vitalidade da instituição, ainda mais acusada do que no tempo em que o "partido de Maurice Thorez" também era o partido de Marcel Cachin, de Jacques Duclos ou de Benoit Frachon... Ora, como poderemos deixar de ver que a personalização da Direcção do Partido foi exacerbada como nunca pelo presidencialismo da V República e, de modo conexo, pelo vedetismo mediático que é quando muito concedido, no caso do PCF, a um único dirigente? Lá para o fim do seu livro Démocratie, Georges Marchais revelava que, quando ao PCF era proposta uma "grande" emissão política, era "com a condição de ser Georges Marchais. Senão, adeus emissão". E o autor, ao mesmo tempo que exprime a sua oposição a isto, pergunta: "poderemos nós recusar as raras ocasiões de dar a conhecer a nossa opinião na televisão?", confessando que "não via francamente" como escapar a essa imposição. Todo o problema está aqui, é obvio e não vamos voltar a isso; tanto mais que a questão tem um alcance absolutamente geral. Tomadas de posição mais importantes, condução das conjunturas de maior relevo, escolha das candidaturas essenciais, negociações de cúpula... toda essa actividade que a direcção tende a realizar - e como fugir a isso? - nas costas dos militantes, embora tente fingir o contrário, em função de dados que estes ignoram, de condicionalismos que lhes escapam ou até de critérios não expressos e que eram capazes de os siderar; tudo isto no quadro soberanamente preestabelecido da política alienada de que o autocratismo não passa ao fim e ao cabo de um corolário. Ainda ouço esse grito de alma de George Marchais numa sessão do Comité Central em que choviam críticas sobre a parca democracia na cúpula: "Tudo o que quiserem, excepto que se impeça a Comissão Política de trabalhar!". Por "Comissão Política" entenda-se "a Direcção" e ter-se-á uma sugestiva formulação do centralismo autocrático: o essencial passa-se na cúpula, e enquanto estivermos em capitalismo teremos que nos conformar... Aqui temos uma filosofia organizacional que deve muitíssimo mais a uma abordagem do presente do que a um pretenso peso do passado, e é na natureza desta abordagem presente que se joga toda a questão da forma-partido.
Se a orientação geral das análises anteriores pode ser considerada correcta, então a primeira questão a pôr relativamente a uma força comunista para o futuro não é a de se saber se ela deve ainda, e até que ponto, ter a ver com a forma-partido. Antes de qualquer questão de forma, aquilo em que devemos atentar é a questão do conteúdo, quer dizer, a função política a assumir. Também aqui, para tratar de maneira válida dos meios, é necessário começar pelos fins. E, para ir direito ao que, no espírito de todo este livro, pode constituir a reactivação radical da ideia comunista também em matéria organizacional, diria que esta função já não pode de modo algum ser definida, quanto ao essencial, como a conquista do poder pelo partido, como requisito para "o socialismo", nem mesmo, de modo conexo, como o cumprir entretanto de tarefas inscritas no campo político institucional, a começar pelas eleições. Concepção esta que nos mantém inexoravelmente no quadro da política alienada em crise estrutural - o que não quer dizer que não tenha ainda muitos anos diante de si - e, por isso, no quadro da forma-partido. De um modo fundamentalmente diferente, esboçado no capítulo anterior, esta função reside no encetar imediato de todas as desalienações possíveis, em que os próprios indivíduos começam a reapropriar-se dos seus múltiplos poderes sociais, construindo nos mais diferentes terrenos uma hegemonia favorável a superações concretas do capitalismo e da sua lógica. Isto postula à partida o pôr em causa aspectos fundamentais da forma-partido, começando por revolucionar conteúdos habituais da actividade comunista: deixa de se tratar de ir executando tarefas pré-condicionadas pelo sistema político vigente para, subvertendo o próprio sistema, encetar sem demoras as transformações sociais de fundo, com tanto de ambição nos fins visados como de realismo nos projectos encetados, mas também com inventividade para aumentar os projectos possíveis. Daqui decorre uma decisiva deslocação do centro de gravidade da acção política: o essencial, nesta perspectiva, já se não situa de modo algum na cúpula, que persiste na monopolização dos poderes de decisão, mas sim no terreno em que os próprios actores devem decidir todas as iniciativas transformadoras.
Se realmente levada a sério, esta função não deixa pedra sobre pedra do tradicional edifício do partido. A acção comunista torna-se na prática esse "movimento real que supera o actual estado de coisas". E, neste sentido, caduca irremediavelmente a forma-partido solidária desse estado de coisas, e que mais não é do que uma maquinaria eleitoral com comando de cúpula. Contudo não se pode abandonar, nem pouco mais ou menos, a função que consiste em impor os objectivos comunistas também nas formas institucionais da política - da tomada de posição no dia-a-dia às mais importantes eleições e às responsabilidades de Estado, porque a função autenticamente comunista não tolera a dicotomia, ruinosa para ambas, entre a atitude de oposição e a atitude de governo. Neste sentido não se pode hoje abandonar tudo o que é a forma-partido. Mas, e este é um ponto capital, a não ser que se não mude nada realmente, esta segunda função não pode senão ser drasticamente subordinada à primeira - que é sempre é sob todos os aspectos fundamental- e reconcebida, à luz desta, num sentido que seja ele próprio desalienante. O que implica inventar novas maneiras de estar ao mesmo tempo dentro e fora e conquistar a opinião pública para isso. Por exemplo, quando se é convidado para uma grande emissão política televisiva, o que é que impede que aí se levante, nos seus fundamentos e sem gritaria desnecessária, o gritante problema político da televisão? Um partido que trabalhe sistematicamente para superar a sua forma-partido, do mesmo modo que um Estado que contribua ele próprio para o definhar do Estado - não será esta concepção dialéctica apropriada para a implementação de uma generalizada subversão da sociedade e da sua política, não já agora sob as cores da revolução violenta, mas sob as de uma hegemonia de convencimento?
Admitamos a validade deste primeiro esboço: trata-se não só de fazer política diferentemente mas também de a fazer para uma coisa diferente, a única capaz de a tornar de novo apaixonante. Surgem então as difíceis questões da organização: como servir este novo "para quê"? E, para começar, será realmente necessária uma força comunista organizada para este fim? Porquê, em suma, não se limitar a confiar nos movimentos sociais que crescem por si próprios no terreno "do que não pode continuar assim"? É a questão primordial, que continua incontornável e que Lenine tratou outrora: espontaneidade e organização. À sua resposta, dialéctica quanto baste, o estalinismo não tardou a substituir uma brutal unilateralidade: é a Direcção do Partido que decide as acções que devem ser empreendidas ou combatidas. Concepção autoritária do "movimento de massas" que levou, durante demasiado tempo e pagando um enorme preço, o PCF a ignorar tantas grandes causas emergentes, do feminismo à ecologia, tantas novas aspirações, da autogestão à libertação sexual, tantas refrescantes formas de acção, do sit-in à contraperitagem. Não é pois de espantar a inexorável desafeição militante pela qual se exprime a senescência do partido tradicional, desafeição que, claro, não deixa de ter uma relação com evoluções socioculturais externas mas ruja razão determinante deve contudo ser procurada nesta lógica interna de que já Rosa Luxemburgo tão bem se apercebeu em 1913, em "Problemas de Táctica" (cf Rosa Luxemburg, Textes, Éditions Sociales, 1982). Seria "um erro fatal", explicava ela, imaginar "que doravante a organização social-democrata se tornou a única depositária da capacidade de acção histórica do povo", como se este não passasse de um "lastro inerte". A pensar-se assim, a iniciativa intelectual e política que incumbia às organizações de base é "totalmente transferida para o pequeno cenáculo que dirige o partido", e a massa dos aderentes fica reduzida "ao pagamento das cotas, à distribuição de panfletos, às eleições e à organização da campanha eleitoral, ao porta-a-porta para obter assinaturas para a imprensa do partido" (p. 151). Será que não temos a impressão de ler, neste texto escrito há cerca de um século, a descrição actual de muitas células do PCF em vésperas de entrar em fase terminal? A partir de agora uma autêntica força comunista só tem futuro numa poderosíssima revalorização do espontâneo, da iniciativa não encomendada, da mais aberta atenção a tudo o que mexe na sociedade sem que "o Partido" tenha nada a ver com isso. E isto sobre a base desta radical convicção de que hoje há comunismo que começa a aflorar espontaneamente, mesmo se "do avesso" e irreconhecível, em tudo o que trabalha a sociedade em profundidade. E é por isso que o mais importante de tudo é voltar à grande ideia que, numa carta a Ruge, o jovem Marx exprimia já: nós não dizemos ao mundo, escrevia ele, "abandona os teus combates, que são tolas insignificâncias; vamos dar-te a verdadeira palavra de ordem do combate. Nós só lhe mostramos precisamente o porquê do seu combate". Dar ao movimento real todo o seu sentido e, por esse meio todo o seu vigor... este modo de conceber a acção comunista é agora mais pertinente do que no tempo do jovem Marx, agora que os motivos de agir para superar o capitalismo se tornaram tão mais vastos, o nível cultural dos possíveis actores é tão mais elevado e a estratégia concebível para o empreender se tornou tão menos arcaica.
[pgs 183_188. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |