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Por limitado que possa ser o inventário crítico que aqui empreendemos, três outros aspectos fundamentais do conceito de comunismo exigem ser confrontados com as realidades de hoje: o desenvolvimento integral de todos os indivíduos, o definhamento do Estado, a necessária mundialidade do comunismo. Muito mais do que normalmente se sabe, a questão do indivíduo era essencial para Marx. O capitalismo é a mais incrível delapidação de vidas humanas, para o aumento do lucro; inscrevendo-se a contracorrente desta tendência histórica, a ideia marxiana do comunismo apresenta-se, pelo contrário, como a de uma forma social "em que o desenvolvimento original e livre dos indivíduos não é uma frase oca" (A Ideologia Alemã). E isso não é uma frase oca em Marx: abundam na sua obra as percepções pioneiras da mais fecunda profundidade - pense-se no partido científico que delas pode tirar um Vygotsky para a psicologia - sobre o que significa e implica a passagem histórica ao "indivíduo integral", na expressão de O Capital, quer dizer o ser humano desenvolvido em todos os sentidos, e recomposto porque emancipado de todas as alienantes divisões sociais. Mas estas percepções, pouco visíveis na imensidão da obra económica, foram soberanamente ignoradas pela cultura política do movimento comunista, obnubilado que estava pelas "massas", a ponto de a simples menção positiva do indivíduo facilmente passar nele por suspeita. "A sociedade sem classes, escrevia Ernst Bloch, pode ser mais individual do que nenhuma outra antes dela" (Experimentum mundi, Payot, 1981, p.187), mas o estalinismo ficará para sempre como sinónimo de uma das piores maneiras de maltratar a pessoa. É verdade que, vivendo num universo social e mental completamente diferente do do PCUS, os partidos comunistas ocidentais, continuando a atacar, e não sem razão, o humanismo burguês, interiorizaram bastante cedo, à sua maneira, a cultura dos direitos do homem. Mas daí a compreender realmente que se não pode transformar o mundo sem mudar a vida, o caminho foi longo. No PCF dos anos noventa, a destruição da indústria ainda dava muito mais azo a denúncias do que, por exemplo, a destruição da adolescência. Ora, hoje é difícil deixar de o ver, uma sociedade é, inseparavelmente, relações sociais e vidas individuais; uma crise de sociedade não é menos existencial que estrutural; e uma perspectiva política só se torna plausível na proporção do sentido interiorizável que oferece a cada um(a). Como deixar de ver no contemporâneo aumento da aspiração a sermos livre e plenamente nós mesmos, homens e mulheres, um dos principais índices do amadurecimento histórico objectivo do comunismo? Mas isto obriga a colocar-se duas questões não convencionais.
A primeira é uma questão de princípio. Quando se lê Marx, se a passagem ao indivíduo integral é exigida pelo carácter universal que o próprio capital começa a imprimir às forças produtivas, só a sociedade comunista será capaz de a levar a cabo. Bem mais efeito resultante do que causa eficiente, o completo desenvolvimento de todos os indivíduos é pois em larga medida remetido para o futuro. Compreensível há um século e meio, poderá este adiamento ser válido no estádio a que chega o desenvolvimento da individualidade humana? Está aqui em jogo o modo de pensar e pôr em acção, hoje, o materialismo histórico. Por tenaz que seja este contra-senso, nunca ele significou que a base material da história residia somente nas coisas: os homens são primeiríssimos pressupostos de base de uma qualquer época. O facto é, contudo, que realidades objectais e relações objectivas, modalidades pesadas do ser social, desempenham um papel fundamental no movimento histórico; e que qualquer transformação profunda passa pela sua necessária reformulação. A não ser num conto de fadas idealista, não se muda a vida deixando as coisas como estão. Mas quem as vai transformar, senão os indivíduos que uma consciência partilhada e a organização política devem constituir em forças historicamente eficazes? Há pois uma dialéctica em que o revolucionar das relações fundamentais passa pela intervenção decisiva dos actores, intervenção que, tendo por fundo as intoleráveis contradições objectivas do mundo existente, lhes acrescenta o seu irredutível fermento subjectivo. Ao nível a que agora chegou a impaciência dos indivíduos, isto reclama que se desloque resolutamente o acento de um determinismo histórico expectante para uma determinação política audaciosa. Assim, para a cultura comunista de outrora só "o socialismo" libertaria a mulher. A história decidiu: o movimento feminista não esteve felizmente à espera para fazer avançar as coisas, mesmo que haja que constatar que efectivamente elas não podem avançar para além de um certo ponto sem que sejam transformadas relações inteiramente primordiais. Lição crucial para um novo comunismo: o desenvolvimento integral de cada um deve começar hoje. E começa por intervenções, inovadoras e com um objectivo de desalienação, sobre o conjunto das formas histórico-sociais de individualidade, imenso complexo evolutivo de estruturas, relações e representações societais de toda a espécie - dicotomia tempo de trabalho / tempo livre e sequências instituídas das idades de vida, distribuições hierárquicas e mobilidade dos papéis, imagens normalizadas do masculino e do feminino, ou do francês e do estrangeiro... - de que a dependência última relativamente às relações sociais de base não apaga a mais ou menos forte autonomia relativa. Não pode haver prática comunista de nova geração fora deste alargamento crucial do seu campo de iniciativa.
É isto que reforça o exame de uma outra questão nova. O florescimento da individualidade era para Marx um exaltante fim em si mesmo da história, e claro que o continua a ser, num certo sentido. Mas tendo-se o processo mais do que iniciado, sob o domínio do capital, tomou imprevistamente um aspecto violentamente contraditório. Sinónimo de liberdades parcialmente conquistadas contra tantas velhas dominações, privadas e públicas, a autonomia do indivíduo transforma-se também cada vez mais, neste tempo do neoliberalismo, na completa redução a si mesmo, até à redução dos "sem" - sem trabalho, sem casa, sem direitos, sem documentos... - mas, não seremos todos nós, nesta sociedade de alienação a um ponto nunca visto, de certo modo uns "sem", sem um real controlo sobre as nossas vidas e sem uma clara perspectiva para a nossa história? De onde advém para muitos, por reacção, a frenética busca de uma identidade tão dolorosamente inalcançável, o apego invejoso a supostos marcos sólidos, como as filiações biológicas, os "territórios urbanos", as pertenças comunitárias - processos regressivos, e frequentemente agressivos, em que pode surgir, em vez do indivíduo integral, o seu oposto: o indivíduo integrista. Ao mesmo tempo, os métodos do capital penetraram nas estratégias de vida: lógica duramente concorrencial do "ganhador seja a que preço for" contra os outros, considerados como instrumentalizáveis sem limites; lógica insidiosamente mercantil do realista motivado "para se vender", proprietário de si como se de um pequeno capital se tratasse, que não hesitaria todavia em arriscar, num espírito de competição levado por vezes ao absurdo... Com esta mercantilização que invade o humano tanto por dentro como por fora, está em curso um real movimento de descivilização, tanto mais inquietante que, à força de multiplicar dramas sem saída e ódios sem resultado, o capitalismo, ao mesmo tempo que mais do que nunca produz virtualmente os seus próprios coveiros, segundo a profecia do Manifesto, produz também de modo muito actual a cumplicidade de quem aproveita e a desistência de quem se resigna.
Aqui está algo que deve ser uma grande preocupação, quando nos propomos abrir de novo a perspectiva comunista. Uma preocupação teórica porque a cultura marxista ordinária prepara, infelizmente, muito menos para compreender a individualidade do que a sociedade. Aos que dela se reclamam, não será indispensável apropriar-se por fim, dos conceitos de pessoa e de ordem da pessoa, tão decisivos para tratar a dimensão ética que tantos problemas tomam agora? Não será necessário fazer luz sobre o que pode efectivamente querer dizer a famosa fórmula "a cada um segundo as suas necessidades"? Fórmula que tantas vezes foi tomada por quimera consumista por excelência - por se não compreender que, como contudo Marx traduziu de forma luminosa (Grundrisse, tomo I, pp.160-61), é precisamente a forma abstracta do dinheiro que confere às nossas necessidades em si mesmas limitadas a louca insaciabilidade própria do frenesim de enriquecimento em que se resume toda a alienação. Por aqui se mede, como o nota Daniel Le Scornet (La pensée, nº 317), o que vale, por exemplo, a pretensa necessidade de limitar pelo dinheiro as necessidades de saúde, apresentadas sem sombra de uma prova como sendo sem limites, quando sem limites nesta matéria é antes a sede de lucros que leva a finança internacional para muito malsãs extensões do domínio em questão... Não será este o momento, de um modo mais geral, de pôr uma vez por todas a questão dos fins? Aonde se quer que leve o possante movimento histórico de afirmação da individualidade humana? À omnipresença de uma particularização arrogante ou ao aprofundamento de uma personalização civilizada? E o que é que isto implica concretamente? Questão aberta, porque a humanitas dos homens não é algo de acabado, ela continua sempre a ser um além que se visa: aliás é sem dúvida precisamente nisso que ela reside.
Uma igual preocupação prática porque o mal hoje causado às pessoas pelo capital é indescritível. Nada é mais urgente do que atacar este imperdoável malefício. Ora "o homem é o mundo do homem". A finalidade humana do combate comunista deve pois levar a pôr com enorme amplitude e ambição as fundamentais questões de conteúdo das actividades em que se forma e "malforma" o indivíduo - as do trabalho, do não-trabalho e do fora-do-trabalho, as da escola e da cidade, as da cultura em todas as suas dimensões personalizantes, tanto do mais elevado Jazer como do quotidiano, as da política... Parafraseando Ernst Bloch, gostaríamos de dizer que uma política comunista deve ser "mais individual do que qualquer outra antes dela".
[pgs 124_129. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |