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Para Jacques Bidet (cf. Congres Marx international, Actuel Marx/PUF, 1996), Marx teria cometido o erro de conceber a relação entre mercado e plano como uma sucessão histórica, vindo o plano socialista tomar o lugar do mercado capitalista. Pensando "dialectizar a dialéctica" (p. 297), sustenta ele que, pelo contrário, as duas coisas são necessariamente concomitantes e não alternativas: elas constituiriam até, com a cooperação associativa imediata que se diferencia quer do mercado quer do plano, aquilo a que chama o "trinómio meta-estrutural" do "mundo moderno" - de certa maneira o seu espaço constitutivo a três dimensões. Jacques Bidet não esconde que se trata aqui de uma "subversão" do marxismo (p. 296), sendo a ideia de um "socialismo de mercado" totalmente estranha a Marx e Engels. Mas, segundo ele, toda a experiência do mundo soviético no-lo mostra: "a abolição do mercado dá lugar a uma forma directamente estatal da dominação de classe" (p.296). A seus olhos, a conclusão impõe-se: uma "sociedade razoável" articula necessariamente, em proporções variáveis, associação, plano e mercado (p. 292). Isto diz respeito ao próprio trabalho: o trabalho assalariado não seria uma sua forma transitória, seria também ele meta-estrutural, o que não quer dizer, claro, que nos deva-mos resignar a ver o trabalho tratado como pura mercadoria, mas sim que também ele se estrutura inevitavelmente segundo o trinómio associação-plano-mercado (p. 299). Em suma, "a questão do socialismo deve ser retomada por inteiro" (p. 304), nomeadamente para avaliar as suas variantes possíveis no seio desse trinómio, sendo aceite que "há mais valor partilhado na associação do que no plano, e mais no plano do que no mercado" (p. 310), mas que se não pode evacuar este último termo. De qualquer modo a questão do socialismo não se reduz a este essencial aspecto das coisas. Ela também cobre a reflexão sobre "o conteúdo concreto do que se pode produzir" ou o que se joga nas "lutas culturais, feministas, ecológicas, urbanas e rurais, etc.", a preocupação "ética" com a sorte das gerações futuras e até a interrogação sobre os problemas da pós-modernidade como o do ""trabalho" científico, informacional, cultural" (p. 311). Neste sentido, leva a encarar um futuro que se poderá designar "pela palavra comunismo". Mas "seria ilusório pensar que se pode saltar por cima das tarefas do socialismo" e "é por isso que devemos voltar a levantar a bandeira do socialismo" (p. 312).
Tomando conhecimento de uma reflexão como esta, mede-se a tola pesporrência daqueles para quem nada - sobretudo nada com um alcance político - se pensa de novo para os lados de Marx. Também chama a atenção o tão manifesto ar de família das preocupações de todos aqueles que se empenham em reconstruir teoricamente uma perspectiva de esquerda para a esquerda. É sobre esta tela de fundo, que se não deve perder nunca de vista, que se devem situar as indubitavelmente muito grandes diferenças de análise e de orientação. Numa discussão de fundo da tese de Jacques Bidet, se é que ela se pode resumir ao extremo como atrás se fez, poderíamos perguntar-nos em que é que se "dialectiza a dialéctica" quando se apaga a dimensão histórica que as relações estruturais sempre contêm e se, com isso, o que se faz não é antes desdialectizá-la. Mas, para me ater aqui aos conceitos prospectivos adiantados, será que não são passíveis de algumas fortes objecções? Como justificar, antes do mais, que não seja explicitamente nomeado, sob a noção de "associação", o não-mercantil que historicamente sempre acompanhou o mercado, de modo algum numa simples coabitação "meta-estrutural" mas numa dialéctica dos contrários de patente dimensão evolutiva? Onde se foi buscar que as relações do mercantil e do não-mercantil teriam a ver com a complementaridade e não com a contradição? No próprio capitalismo actual, o frenesim do "tudo mercado" não será abertamente antagónico com a bela vitalidade que manifesta o seu oposto: do serviço público, no entanto tão atacado, ao intercâmbio na Internet, passando pela entreajuda de vizinhança e pela ética do dom de órgãos? Ainda mais: não será hoje uma poderosa tendência do capital o minar, muito contraditoriamente, as bases da ordem mercantil em que assenta? Isto quando empurra com toda a força para primeiro plano esse refractário ao mercado que é em princípio o trabalho dito improdutivo, essa não-mercadoria que é em si a informação, essas actividades em si mesmas não-mercantis que garantem o multiforme desenvolvimento dos homens - e será que esta promoção conta pouco na sua profunda crise estrutural? Dir-se-á que ele se esforça precisamente é por fazer entrar tudo isto na forma-mercado. Claro, mas - e é sem dúvida a objecção mais contundente à tese proposta - os extraordinários estragos que daí decorrem não tornarão mais óbvia a alienação inerente a esta forma de que se quer fazer uma inultrapassável realidade meta-estrutural? Marx mostrou-o à saciedade: mesmo aquém da sua apropriação pelo capital, o mercado é um universalizador por excelência, mas pelo preço da toda-poderosa fetichização da mercadoria e do dinheiro, da inversão generalizada das relações entre a pessoa e a coisa, a finalidade e o meio; um muito eficaz regulador económico, mas pelo preço de uma drástica redução dos critérios avaliativos, de uma pilotagem cega para o custo quer dos seus efeitos sociais quer das finalidades humanas de longo prazo. Nestas condições, não nos orientaria o conceito de "socialismo de mercado", mesmo que fosse complexizado por associação e plano, numa direcção altamente preocupante?
Resta então, é claro, um argumento: a derrocada do socialismo sem mercado que foi a sociedade de tipo soviético. Mas onde está a demonstração de que este desmoronamento seria o fim lógico a que se chegaria com a oficial supressão do mercado? Supressão que não excluía aliás uma proliferação dos mercados negros. Será de afastar sem exame esta pista explicativa totalmente diferente segundo a qual a flagrante ineficácia de conjunto desse modelo teria muito mais a ver com o extremo primitivismo, complementado com o pior burocratismo, das regulações económico-financeiras que brutalmente substituíram os mecanismos de mercado? E ainda por cima num contexto de fraca produtividade do trabalho e de alienação generalizada das relações sociais. Que teria a ver por exemplo com a incapacidade de manter e tornar operativa uma contabilidade em tempo total de trabalho social, de que já Marx realçava a importância para uma economia pós-capitalista? Ora, na hipótese muito diferente e a meu ver bastante consistente que aqui evoco, a conclusão estratégica a tirar é também ela muito diferente: em lugar de nos instalarmos na tão inquietante perspectiva de um "socialismo de mercado", mas também nos antípodas de uma brusca e de todos os pontos de vista quimérica "abolição do mercado", trata-se de encetar uma fase histórica de superação do capitalismo trabalhando, tanto no sector mercantil dos bens e serviços como no da finança, para deslocar cada vez mais os critérios dominantes da rentabilidade segmentar privada para a eficácia social total de que o capital se desinteressa tão gravemente (porquê, por exemplo, não fazer suportar às grandes empresas de modo muito mais dissuasivo os custos directos e indirectos que, sem o confessarem, impõem à colectividade pública com os planos de despedimentos decididos em nome do lucro privado?); ao mesmo tempo que se trabalha para desenvolver construções não-mercantis atentas à sua própria eficácia global. O conjunto destas inovações estruturais e das lutas político-sociais que lhes servem de motor constituiria assim, o mais democraticamente e o mais internacionalmente possível, uma ampla experimentação histórica, constantemente rectificável, de progressiva saída do mercado, por cima. Embora esta perspectiva admita de facto, também ela, a durável presença de um mercado, nem por isso ela deixa de se diferenciar essencialmente da precedente: aceitar a ideia, mesmo que só parcialmente, de um "socialismo de mercado", não será correr o risco de considerar por muito tempo como inultrapassáveis vários dos aspectos terríveis do estado de coisas actual? Não será fechar-se numa visão periodizada do futuro em que só estariam na ordem do dia limitadas "tarefas do socialismo"? Não seria remeter para a margem um comunismo atento aos problemas da "pós-modernidade" largamente desconectados daquilo que de crucial se joga no presente?
Rumo a um socialismo de mercado ou rumo a um comunismo pós-mercantil? Agudíssima questão quando se toca no drama contemporâneo e do possível futuro do trabalho social. Estaremos nós a viver uma crise histórica do trabalho, como no-lo repetem? É simultaneamente medir bem e analisar mal a amplitude das contradições em acção. O trabalho, como mostra Yves Schwartz, tende a ser hoje simultaneamente menos o centro, "porque a vida pessoal faz dele uma parte de um todo que o ultrapassa em muito", e mais no centro, porque é mais do que nunca aquilo que deve dar a cada um "o poder fazer algo da sua vida, de ser sujeito da sua história" (Le Travail à l'épreuve du salariat, p. 188). Marx via bem longe quando anunciava que, com a objectivação crescente da ciência no aparelho produtivo, "o tempo de trabalho imediato" não podia continuar "na sua oposição abstracta ao tempo livre" (Grundrisse, tomo 2, pp. 199-200): torna-se vital a exigência de uma recomposição superior do indivíduo hoje fragmentado, e então apto a reapropriar-se do conjunto dos seus poderes sociais. Não será esta irresistível mutação do trabalho que está por detrás da crise do trabalho assalariado capitalista, em que o produtor com múltiplas competências se vê drasticamente reduzido à unidimensionalidade de um valor de mercado abstracto? E eis que o movimento do capital, exigindo permanentemente mais do trabalhador e dando-lhe cada vez menos, precipita a obsolescência do sistema de trabalho assalariado com que faz corpo: pelo desemprego crónico de massas, pela precarização sem limites, pela infindável denegação dos direitos e por tantas inovações destrutivas. Podemos dizer, segundo a expressão tão justamente dialéctica de Yves Clot, na mesma obra, que o capital "acaba com" o assalariado, mas "por baixo". Haverá um índice mais eloquente da maturação objectiva das exigências do comunismo? E que espécie de socialismo seria o que deixaria perdurar sine die um mercado de trabalho? É verdade que nada é hoje mais controverso do que as vias para uma saída, por cima, desta crise. Segundo alguns, como Paul Bouffartigues e Henri Eckert, não será possível um qualquer "pleno emprego das capacidades humanas", que implique o reconhecimento daquilo com que cada um contribui "para a produção das riquezas sociais", "sem sair do trabalho assalariado" (op. cit., pp. 239-40; cf. também Travail salarié et conflit social, dir. Michel Vakaloulis, Actuel Marx/PUF, 1999) [Trabalho Assalariado e Conflito Social]. Para outros, como Bernard Friot (Et la cotisation sociale créera l'emploi), é antes a generalização do "salário socializado", não já preço de mercado mas "tabela classificativa" de alcance anticapitalista, sobre o qual assenta todo o edifício das garantias sociais e que pode evitar a catastrófica desconexão em curso entre trabalho e rendimento (pp. 138-44). Desacordo de monta, tal como muitos outros no árduo caminho das refundações a fazer. Mas o que está claro em qualquer dos casos, não será que o devir do trabalho humano está decididamente para além da sua redução mercantil.
Que temos nós como conclusão do que atrás fica dito? Para começar, repitamo-lo, o facto de que as extraordinárias mudanças das coisas e dos homens desde os tempos de Marx, longe de tornarem caduca a ideia do comunismo, quer dizer da superação de todas as grandes alienações históricas, lhe conferem uma actualidade maior do que nunca. Mas, sem aqui falar - não é o propósito deste livro - das tão numerosas questões concretas a reexaminar, o conceito global do comunismo reclama, no ponto em que estamos da sua reconsideração, uma dupla modificação em que se precisará o que atrás foi já esboçado. Marx, quanto a ele, pensou até ao fim a saída do capitalismo como supondo uma revolução brusca que permitisse operar em pouco tempo as mais importantes transformações económicas e políticas e encetar assim a evolução muito mais lenta da fase inferior para a fase superior da sociedade comunista. É significativa a este respeito a metáfora do parto que emprega mais uma vez em 1875, na sua Crítica do Programa de Gotha. Ora, temos hoje razões para encarar a superação do capitalismo como um vasto conjunto de transformações qualitativas já não inicialmente súbitas mas constantemente graduais, a sua imutável essência revolucionária não implicando em si patamares brutais; o que não exclui á priori, claro, que haja eventualmente que conter num ou noutro momento reacções violentas. Aos que ainda acreditem na "lei" estalinista segundo a qual toda a mudança qualitativa seria necessariamente brusca, faremos observar que a física contemporânea põe em evidência aquilo a que chama transições de fase de segunda ordem em que, a níveis muito elevados de pressão, se apaga qualquer limite nítido entre diferentes estados da matéria (cf. L. Sève e outr., Sciences et dialectique de la nature, La Dispute, 1998, pp. 197-203). Permita-se-nos esta outra metáfora: a níveis muito elevados de pressão social, política e ideal não se tornarão inevitáveis mudanças qualitativas parciais das próprias estruturas da sociedade, sem cataclismo revolucionário? Daí a extraordinária importância do que torna doravante possíveis unidades anticapitalistas que vão muito além do tradicional sentido de classe do "todos unidos". Voltaremos a estas questões da mais alta importância. Mas, ao mesmo tempo, não será de dialectizar um pouco mais a distinção marxiana entre fases "inferior" e "superior" da nova sociedade? Claro que a perspectiva de uma superação do capitalismo implica, se ocupar toda uma fase histórica, a coexistência durável e conflitual de elementos capitalistas e pós-capitalistas numa mesma formação social; os primeiros limitando mais ou menos o alcance dos segundos. Pese embora isso, trata-se de visar logo à partida, de maneira explícita e concreta, avanços propriamente comunistas: por exemplo em matéria de apropriações sociais efectivas, de superação das lógicas de mercado, de conquista de poderes directos, de perseverante desmistificação ideológica, etc. De objectivo longínquo que ainda é em grande parte, até em Marx, não poderá o comunismo começar a declinar-se em objectivos parcialmente situáveis em prazos próximos? - o que apelaria a ambiciosas invenções em matéria de contestação concreta de uma ordem capitalista que já está certamente mais fragilizada em profundidade do que aquilo que parece.
[pgs 116_123. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |