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Para dar início ao exame da nova questão comunista, creio não poder fazer melhor do que expor em resumo aquela hipótese global tal como me parece tê-la aprofundado e completado desde então. Voltemos a partir das teses do socialismo científico na sua tradicional apresentação, sendo que nada é mais contrário à inovação efectiva do que querer ignorar a sua relação crítica com o que ela pretende superar. Chamava-se aí socialismo à forma de sociedade fundada sobre a propriedade dita social dos grandes meios de produção e de troca - tendo o adjectivo grandes como função afastar a concepção "colectivista" de uma socialização integral -, o que pressupunha a conquista revolucionária do poder de Estado pela classe operária e seus aliados. Marcada ainda pelo capitalismo, esta forma de sociedade tinha uma função apenas transitiva; por outras palavras, era a fase inferior do comunismo, ordem social futura completamente emancipada, sob todos os aspectos, da herança das sociedades de classes. Distinção cardeal que aparentemente apenas traduzia as últimas explicações de Marx a este propósito na sua Crítica do Programa de Gotha, em 1875: a "primeira fase da sociedade comunista", escreveu, "transporta ainda os estigmas" da sociedade de "onde acaba de sair", nomeadamente, aquele "direito desigual" de essência burguesa que dá "a cada um segundo o seu trabalho"; pelo contrário, "numa fase superior da sociedade comunista", onde "todos os recursos da riqueza colectiva jorrarão com abundância", "o horizonte estreito" de tal direito poderá ser superado em: proveito deste princípio completamente diferente: "a cada um segundo as suas necessidades". Mais genericamente, a "fase inferior" é aquela em que a nova forma social ainda não pôde transformar em profundidade todas as condições económicas e políticas, intelectuais e morais do antigo mundo, encontrando-se contraditoriamente afectada por ele; na "sua fase superior", a sociedade comunista criou "as bases que lhe são próprias", e desenvolve-se sobre elas de maneira inteiramente inédita: é o "fim da pré-história humana". Assim, o socialismo não é, parece, nada mais que o comunismo. É o próprio comunismo, mas num estado inicial de formação, e por conseguinte onerado por limitações provisórias. Consequentemente, não faria qualquer sentido - a não ser por mistificação ideológico-política - pronunciar-se pelo socialismo, mas não pelo comunismo. Esta é, efectivamente, a conclusão prática a partir da qual Lenine lutou a fim de mudar a denominação do Partido Operário Social-Democrata da Rússia para a de Partido Comunista: "No próprio momento em que iniciamos, a via das transformações socialistas, explica em Março de 1918, perante o VII Congresso do POSDR, temos de definir claramente o objectivo para o qual elas tendem, a saber, a criação de uma sociedade comunista (...). Por isso, só a denominação de Partido Comunista é cientificamente justa" (Oeuvres, tomo 27, p. 216). E é por isso, também, que os partidos comunistas assim se chamam.
Para os comunistas da minha geração, e ainda sem qualquer dúvida para os de muitas gerações seguintes na França e no mundo, esta identidade-diferença do socialismo e do comunismo era o bê-á-bá. Foi nestes termos que foi durante muito tempo vivida a história da URSS, inclusive na própria URSS. Assim, no início dos anos sessenta, Nikita Krutchev anunciava para breve a passagem do país ao comunismo: bastará apenas uma vintena de anos, proclamava perante o XXII Congresso do PCUS, e então a União Soviética, testemunho supremo do seu triunfo, poderá "ultrapassar economicamente os Estados Unidos". Porquê esperar vinte anos para "decretar o comunismo ?", perguntavam os impacientes. É que não se pode passar à realização do princípio "a cada um segundo as suas necessidades" antes do cálice estar "cheio até ao bordo", respondia com toda a segurança. Mas, como se sabe, esse enchimento nunca aconteceu. Pior ainda: com Brejnev, à medida que o socialismo supostamente se desenvolvia, mais a taça tendia a esvaziar-se. Por outras palavras, quanto mais avançava o socialismo, mais recuava o comunismo, até se tornar um mero ideal, para não dizer uma quimera. Como compreender este facto inconcebível de o socialismo, transitivo por definição, se recusar obstinadamente a transitar para o comunismo? Como compreender que, mesmo tendo em larga conta o estado do atraso inicial, setenta anos não tenham bastado à União Soviética para passar nem: que fosse parcialmente à "fase superior" da sociedade sem classes? Do ponto de vista teórico em que aqui me coloco, os horrores do estalinismo de que em parte se pode incriminar tanto o horrível atraso russo, como os efeitos a prazo da feroz guerra civil atiçada pelas potências capitalistas, são talvez menos perturbadores do que as trevas ulteriores do brejnevismo com a sua constante renúncia geral ao comunismo. Como não ver então nesta história, que seria em princípio a ilustração clássica do socialismo científico, o mais brutal dos seus desmentidos?
Aqui está algo que exige um reexame muito mais vigilante das relações entre o socialismo e o comunismo do que nos diz o velho socialismo científico de manual. Ora, à medida que assim se procede, fica-se estupefacto com tudo o que este nos oculta. O que é o comunismo? É o socialismo quando substitui a penúria pela abundância material, possibilitando o "a cada um segundo as suas necessidades". E o socialismo? Essencialmente, o regime de propriedade social dos grandes meios de produção e troca que torna possível, a prazo, a passagem ao comunismo. Encerrada neste jogo de espelhos, a ideia do comunismo encontra-se reduzida a um estado de indigência em que se tornam altamente problemáticos tanto a extensão das suas promessas futuras, quanto o sentido do seu desígnio presente. Restituamos agora alguns parágrafos muito preciosos mas muito limitados que Marx consagra à questão na sua Crítica do Programa de Gotha, no seio do enorme conjunto que representa a sua reflexão sobre a perspectiva comunista, digamos, desde A Ideologia Alemã e do Manifesto, até ao Capital, A Guerra Civil em França - acrescentemos-lhe os trabalhos ulteriores de Engels sobre o socialismo e o Estado; e baseando-nos nesta incomparável riqueza, pelo menos para quem faça o esforço de aí procurar indicações a maioria das vezes esparsas, coloquemos de novo a questão: o que é o comunismo? Retomando aqui, com algumas alterações a lista das caracterizações essenciais a que cheguei no primeiro capítulo de Communisme, quel second souff1e?, digamos que é, simultaneamente, o florescimento universal das forças produtivas, a apropriação real pelos produtores associados dos seus poderes sociais objectivos - meios de produção, mas também saberes de gestão, poder de controlo - a superação das regulações pelo dinheiro-capital e das próprias relações de mercado, a passagem emancipadora do trabalho para um além do trabalho assalariado capitalista, a livre satisfação das necessidades materiais e culturais, o desenvolvimento integral de todos os indivíduos, o definhamento do Estado de classe, a desalienação da consciência social, o apagar da hostilidade entre as nações, a universalização das trocas e da própria humanidade, e em consequência o ponto final na exploração do homem pelo homem, a eliminação das desigualdades e opressões de classe, de sexo, de "raça" e outras, a passagem da contingência à liberdade real, o fim da pré-história humana.
É impossível encarar tal explicitação sem se ficar transido pela audácia visionária da ideia comunista marxiana, e para logo ser assaltado pela dúvida quanto à sua credibilidade histórica, ou pelo menos pedir explicações sobre quase cada palavra destes enunciados definitórios. Os capítulos seguintes darão largamente lugar a esta preocupação. Mas no ponto em que estamos é, em primeiro lugar, uma outra consideração que se impõe: a da estrita interdependência de todas estas dimensões do comunismo, de modo algum como soma mais ou menos contingente de traços disjuntos, mas conjunto orgânico de caracteres obrigatórios. Assim, retiremos-lhe em pensamento o desenvolvimento universal das forças produtivas - que não é apenas o intenso surto por todo o lado de todas as forças produtivas, mas mais essencialmente ainda a universalização da força produtiva que incorpora a ciência, de que a melhor ilustração é a actual informatização generalizada - e todos os outros aspectos do comunismo deixarão de poder ser abordados: aqui, tocamos já no drama da União Soviética e do "socialismo real" em geral. Assim, ainda - e aqui está um ponto decisivo no meu presente propósito - a apropriação dos grandes meios sociais de produção e troca, pelo menos se tomarmos tal medida no seu pleno alcance emancipador, é absolutamente impossível sem a superação do mercado e do trabalho assalariado capitalista, sem o desenvolvimento integral dos indivíduos, sem o definhamento do Estado... com esta impossibilidade começa a surgir o que tem de derisória a redução do comunismo à fórmula simplista: propriedade social dos meios de produção + "a cada um segundo as suas necessidades"; e é ainda mais destruidor reduzir o socialismo, em princípio fase inicial do comunismo, só à sacramental propriedade social dos meios de produção e de troca - destruidor, não só em teoria, mas também na prática.
Porque este é o facto capital: esta redução tão descaracterizante não se operou apenas no registo das ideias - onde ela não pouco contribui para uma degenerescência conceptual de efeitos já consideráveis - mas também na própria edificação concreta do socialismo na época estalinista, ao caucionar escolhas estratégicas com as mais graves consequências. Falando rapidamente, pode-se dizer que a revolução foi dada como acabada a partir do momento em que, nos meados dos anos trinta, está implementada tanto no campo como na cidade, a pretensa propriedade social dos meios de produção e de troca, de modo que são retiradas oficialmente ou sub-repticiamente de perspectiva, transformações tão fundamentais como o definhamento do Estado - já no XVIII Congresso do Partido, em 1939, Estaline teoriza mesmo o seu adiamento sine die, argumentando com o cerco capitalista ao país - como o desenvolvimento integral de todos os indivíduos (nem pensar, por exemplo, caminhar na prática para a superação da divisão social entre funções de direcção e de execução) ou ainda como a desalienação das consciências (nunca como até ali, sem dúvida alguma, o Estado tinha posto, como na União Soviética, a ideologia ao serviço da sua pesada dominação). Vemos aqui claramente o sentido tragicamente concreto que há em reduzir a concepção do socialismo apenas à propriedade social dos meios de produção, tendo-se-lhe retirado todos os outros conteúdos da ideia comunista. Pior ainda: chegando a este ponto de empobrecimento, as coisas convertem-se no seu contrário. Já que esta propriedade dita social nunca mais poderá ser, evidentemente, em tais condições - persistência de um Estado omnipotente, de uma individualidade repartida, de uma consciência pública mistificada... - o que Marx tinha em vista quando falava de apropriação pelos produtores associados dos seus meios de produção e, muito mais abrangentemente, dos seus poderes sociais; por outras palavras: quando falava da tomada em mãos e domínio efectivo da sociedade trabalhadora, por si mesma, de todas as condições objectivas da sua actividade. No socialismo pretensamente "real", aquele tipo de propriedade chegou, pelo contrário, de forma inédita, a abranger um desapossamento dos produtores por um Estado-partido, pela sua burocracia, pelas suas camadas privilegiadas. Amputado do comunismo, aquele socialismo estava destinado a derivar para uma modalidade reforçada de alienação social, como viram e disseram, cedo ou tarde, tantos militantes anti-estalinistas, ou mesmo simples críticos lúcidos.
Claro que na cultura tradicional de um partido como o PCF, "o socialismo" não se limitava a esta famosa apropriação social dos meios de produção e de troca, considerada, contudo, essencial entre tudo o resto, para o definir. Pelo contrário, o discurso dentro das regras enfeitava-o com todas as virtudes emancipadoras do comunismo: em si, era já o "fim da pré-história". Mas um olhar mais atento apercebia-se de que estas supostas virtudes estavam directamente relacionadas apenas com a socialização dos meios de produção: bastava acabar com a sua posse privada para que desabassem de uma assentada o peso do Estado com a lei do mercado, as opressões sexistas e racistas simultaneamente com as atitudes egoístas ou belicosas, e assim sucessivamente. De modo que dirigir todos os esforços para a conquista do poder que esta socialização determinante supostamente permitiria era considerado como a única batalha que verdadeiramente valia a pena. E o que transparecia para além desta inquietante redução primordial era que, de facto, na maneira de os pensar, os objectivos emancipadores do socialismo estavam decisivamente ratados em relação ao desígnio comunista. Assim, o princípio socialista "a cada um segundo o seu trabalho" não só remetia à condição de utopia a satisfação socialmente ilimitada das necessidades de cada um, como consagrava de maneira tácita a aceitação das eventualmente maiores desigualdades sociais. Desigualdades de que, aliás, não se via o fim, uma vez que era também abandonada a exigência comunista de um desenvolvimento integral de todos os indivíduos. Por exemplo, pensava-se que se fazia o suficiente pela "justiça social" ao pronunciar-se por uma escola de "igualdade de oportunidades", quando esta palavra de ordem de pura democracia burguesa é o mesmo que contentar-se com um sistema educativo que regista como dado natural a desigualdade intrinsecamente sociocultural do desenvolvimento precoce dos indivíduos. Aliás, o silêncio crucial sobre o definhamento do Estado confirmava bem que se estava a fechar-se numa concepção implicitamente burguesa da democracia, em que o cidadão devia acomodar-se sine die com a delegação de poderes, com a autoridade dos dirigentes, com as prerrogativas do partido - em resumo, com tudo o que lhe atribui o estatuto de menoridade política. Assim, a ideologia na qual o socialismo se apresentava de alguma maneira como um equivalente mais plausível do comunismo dissimulava uma discordância tão fundamental dos seus conteúdos respectivos que o seu próprio parentesco se tomava altamente problemático.
[pgs 037_044. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |