MIA > Biblioteca > Francisco Martins Rodrigues > Novidades
Baixe o livro em pdf |
Por uma série de abalos em cadeia, o projecto regenerador e ordeiro do movimento dos capitães fora-se desmoronando. Num ano, a vaga das ocupações, saneamentos, manifestações e greves tornara o pais irreconhecível. Era uma vaga pacífica, que vitoriava inebriada o MFA, mas que galgava mesmo assim todos os diques. A bela revolução dos cravos descambava em pesadelo para os amantes da ordem.
No Verão, a «originalidade da via portuguesa para o socialismo» atingia o limite extremo. Coexistiam em fantástico equilíbrio ocupações maciças de terras e leis anti-greve; sequestros de patrões e convites ao investimento; órgãos de «poder popular» e declarações de fidelidade à NATO. O país parecia encaminhar-se para uma situação de duplo poder e para um confronto revolucionário.
Seis meses mais tarde, tudo estava terminado e a burguesia felicitava-se por ter dominado a «ameaça totalitária» sem efusão de sangue. O que se passou afinal nesses seis meses para tornar possível uma tal reviravolta? Ou, em termos mais gerais: como pôde o proletariado português, mantido em menoridade por meio século de circunspecta oposição democrática ao fascismo, atingir tão facilmente os píncaros de 75? E como pôde deixar-se expulsar deles de forma tão infantilmente vergonhosa, até chegar às misérias do tempo actual?
É impossível aprender seja o que for do Verão de 75 se não se puser no centro da análise a oposição de interesses entre o proletariado, motor dos acontecimentos, e a pequena burguesia «revolucionária», sua condutora.
Isto, é claro, parece à primeira vista insuportavelmente «sectário». O 25 de Novembro foi obra de uma amálgama de forças social-democratas, liberais e reaccionárias, animadas pelo PS e apadrinhadas pela social-democracia alemã e pelo embaixador Carlucci. A que propósito lançar responsabilidades sobre as forças de esquerda, que podem ter cometido erros mas foram, de qualquer modo, a vanguarda possível do movimento?
E, no entanto, o êxito fácil demais do 25 de Novembro, que é a sua principal originalidade, obriga a examinar com mais atenção a política seguida pelo PCP, pela ala esquerda do MFA e pelos grupos da esquerda revolucionária». O objectivo destas notas é mostrar que essas forças aplicaram, em nome dos interesses populares, uma táctica que lhes era contrária e que exprimia, em última análise, a ânsia pequeno-burguesa por encontrar uma saída intermédia entre revolução e contra-revolução.
Aquilo a que se assistiu no Verão de 75 foi a uma grande vaga de fundo, espontânea, anárquica, mas perfeitamente coerente, pela qual a pequena burguesia «revolucionária» começou por manietar politicamente o proletariado, para poder ser ela a dirigir o processo, e acabou por assistir, angustiada mas também aliviada, à parada dos Chaimites.
Por muito impopular que esta conclusão apareça aos olhos dos últimos fiéis da aliança Povo/MFA, é a ela que os factos conduzem. Há que examiná-la. Porque é ai, na avaliação do papel da pequena burguesia «revolucionária», que se pode entender o fundo da luta de classes em 75 e destrinçar, no nebuloso terreno das «conquistas de Abril», o que era a favor e o que era contra o proletariado.
O fiasco do 11 de Março mostrou a senilidade irremediável da velha direita. Os banqueiros nacionais e estrangeiros retraíram-se, descoroçoados: aquele imbecil do Spínola só servia para espicaçar a esquerda cada vez mais para diante.
Mês e meio depois, contudo, as eleições para a Constituinte deram o toque de clarim para uma nova direita, mais consistente, agrupada em torno dos partidos «ordeiros», que recolheram 3/4 dos votos. A burguesia sentiu renascer a esperança. As eleições vinham contrapor ao «povo unido» imaginado pela exaltação colectiva o povo real, desejoso de estabilidade e legalidade. O PS, com os seus 116 deputados, confirmou-se como o baluarte natural da ordem, tanto mais que o PPD não atinava com um líder e uma linha de rumo. Por uma lógica intuitiva de concentração de esforços, boa parte da burguesia e a massa da pequena burguesia aderiram ao «socialismo» e lançaram-se a disputar para o seu campo a ala moderada do MFA.
Mas o MFA, entretanto, fora ganho por uma onda radical, em reacção ao 11 de Março: criação do Conselho da Revolução e da Assembleia do Movimento, prisão dos figurões reaccionários até ai intocáveis, começo das nacionalizações, anúncio da Reforma Agrária, lei do arrendamento rural, proclamação da via socialista. E não ficou por aqui: divulgou os relatórios do 28 de Setembro e do 11 de Março, extorquiu aos partidos um Pacto que os amarrava aos objectivos da Revolução, congelou os preços dos artigos de primeira necessidade e as rendas das casas. Uma semana antes das eleições, grandes manifestações populares vitoriavam a aliança Povo/MFA. O PS podia ter a maioria dos votos mas os oficiais «revolucionários» tinham ganho a iniciativa das operações.
A «revolução» viveu então os seus breves dias de esplendor. Ao assumir o comando, o MFA pareceu superar-se a si próprio e libertar-se da vacilação que o paralisara desde o 28 de Setembro e o levara a convocar a Constituinte. Até os grupos revolucionários se sentiram ultrapassados pela esquerda.
Lisboa parecia transfigurada. Os bancos exibiam faixas: «Nacionalizado, nosso». Discutia-se a «apropriação colectiva dos meios de produção». Dirigentes do PCP cumprimentavam, num comício de homenagem a Catarina Eufémia, a nova GNR democrática e faziam palestras educativas à PSP. Os soldados descobriam estupefactos que podiam comer na mesma messe com os oficiais. Os engenheiros trajavam como operários. Pacatos democratas saudavam de punho cerrado nos comícios. Até os merceeiros, encantados com o respeito pela propriedade e o maior poder de compra dos trabalhadores, aprovavam a «passagem ao socialismo».
Numa palavra, o MFA parecia escapar às leis da luta de classes e instituir esta coisa nunca vista: uma revolução sem ruptura da ordem, sem guerra civil, sem combates ferozes entre esquerda e direita. O professor americano Paul Sweezy exprimiu o sentimento geral da esquerda nesses dias quando comentou que o MFA não podia ser entendido como uma mera variante da intervenção dos militares na política(1). Era, por qualquer milagre inexplicável, a «vanguarda da revolução».
Bem podia o MFA repetir, para se tranquilizar a si próprio, que era «o motor da Revolução». O 11 de Março modificara muita coisa. A táctica de capitalizar a indignação popular contra a direita em apoio patriótico ao MFA já não aquietava o povo. As barragens nas estradas, o saque às sedes dos partidos de direita, a nova onda de ocupações de casas, as ocupações de terras a alastrar no Alentejo, as armas passadas de contrabando para fora dos quartéis, ridicularizaram dum dia para o outro Costa Gomes, cuja primeira reacção fora relacionar o golpe com a «indisciplina social explorada por agitadores profissionais», e o PCP, que saíra a condenar pressuroso «as violências e destruições anárquicas praticadas à sombra da luta contra a reacção»(2).
Os tempos mudavam. A iniciativa da rua, libertada pela crise do poder, não só bloqueava a reprodução normal do capital, como abria fendas em todo o imponente edifício das instituições, leis e costumes. Os ideólogos burgueses que hoje aparecem a querer explicar os acontecimentos pelo conflito entre as instituições, só para não admitirem a fragilidade do poder sob o embate do movimento de massas(3), talvez se desforrem assim das humilhações que na altura lhes impôs a «populaça». Mas condenam-se a não entender nada do jogo das forças políticas que conduziu à crise do Verão.
De facto, começava a acontecer algo de que ninguém suspeitara e que ninguém planeara: as massas, tomando à letra a Democracia, ameaçavam fazer desmoronar o regime burguês. A burguesia ainda fingia acolher com democrática serenidade as moções explosivas dos plenários, mas via que o respeito pela ordem era uma capa cada vez mais fina, que já mal encobria a impotência real dos órgãos do poder.
O povo já constatara que a GNR e a PSP, suspeitas de envolvimento no golpe, eram desautorizadas pelo MFA e que as forças do Copcon se recusavam a reprimir as suas iniciativas. Logicamente, não levava a sério os apelos à disciplina e as ameaças de severas penas para as ocupações ilegais. Alargava a brecha o mais que podia. Exprimia a sua vontade nas comissões e plenários e tratava de a levar à prática. Aproveitava os rasgões no controlo burguês da imprensa e da rádio para as usar como órgãos das suas denúncias e exigências.
Era esta impetuosa aspiração de mudança das massas avançadas que lhes permitia marcar o andamento da política e cilindrar a resistência medrosa da direita e a inércia da grande massa, indecisa e flutuante. Era ela que engrossava dia-a-dia a ala esquerda do MFA, dava vida aos grupos revolucionários e condicionava a política do PCP.
Este movimento que começava a descobrir a sua voz e a sua força estava contudo ainda longe de descobrir a sua identidade política. Aceitava o MFA, o PCP, o MDP, em parte até o PS, como seus representantes. Só as franjas mais radicalizadas seguiam os grupos revolucionários, opostos a toda a autoridade estabelecida. Esses grupos, porém, não passavam de parcelas confusas da nova corrente revolucionária que fermentava na luta de classes.
O MFA pôde assim adiantar-se à rua e proclamar o «socialismo» e o «poder popular» antes que ela o fizesse. Sancionou com a sua autoridade as iniciativas populares que nunca supusera possível admitir. Cedeu a tudo com o justo instinto de que o mais vital era não perder o controlo do poder. A força do movimento tornara-se tão indiscutível que a luta contra o proletariado só podia ser travada em nome do socialismo e da revolução.
Esta súbita conversão do MFA ao socialismo, seria um erro vê-la como uma manobra maquiavélica para confiscar a bandeira da revolução aos operários e assalariados. A luta de classes não é assim tão simples.
O MFA viera aprendendo à sua custa que o nobre projecto de «devolver a liberdade ao povo» não escapava à acção devastadora da luta de classes. Dividia-se em tantas tendências quantas as forças políticas que do exterior o solicitavam. De momento, estava dominado pela corrente radical.
Acicatados pela sabotagem económica dos capitalistas e pelas conspirações reaccionárias, comovidos pela razão das exigências populares, desejosos de se manter coerentes até ao fim com as suas promessas democráticas, os oficiais progressistas deslocavam-se para a esquerda a cada luta que eram obrigados a travar contra a direita e contra os militares moderados. Sentiram-se encantados por poder dar uma lição aos monopolistas, latifundiários e grandes colonos que até aí tinham escarnecido do 25 de Abril. Em breve, ganharam a hegemonia nas Assembleias do MFA e reconheceram-se embriagados como protagonistas de uma revolução «a sério». O fim do Império colonial e do fascismo seria também o fim do capitalismo português.
As nacionalizações e as intervenções estatais nas empresas, exigência objectiva para afastar o perigo de bancarrota do sistema, apareceram-lhes como a prova de que se entrara em plena revolução socialista. Declararam solenemente a «opção socialista da revolução portuguesa». E como, obviamente, não se podia avançar para o socialismo com uma Constituinte dominada por partidos retintamente burgueses, anunciaram, perante o pasmo indignado do PS e PPD, que «democracia socialista não é votação formal mais nacionalizações, mas sim poder popular»(4). Estava lançada a ideia do «poder popular», que viria a constituir o cerne da luta de classes nos meses seguintes.
A euforia reinante não deixava perceber aos oficiais progressistas a falsidade paternalista do seu projecto, que advinha deste facto muito prosaico: eram eles que conservavam o comando dos soldados e o controlo das armas e, por sua vontade soberana, se arvoravam em libertadores do povo. Dizer que o MFA era «o povo armado» ou que as Forças Armadas estavam em vias de se transformar num Exército Popular não passava de flores de retórica.
Na realidade, as comissões do «poder popular» que mais tarde vieram a reunir sob a presidência benévola dos oficiais, vinham na linha de continuidade das campanhas de «dinamização cultural», que tinham percorrido a província, a explicar às populações o que era bom para elas. Eram uma reminiscência sublimada da «acção psicossocial» em África. Ansiosos por se resgatar da ignomínia colonialista, os oficiais progressistas exultavam por julgar estar a dar a libertação, desta vez verdadeira, ao seu próprio povo. Não sabiam que estavam, mais uma vez e em condições diferentes, a afogar uma revolução.
Mas nem tudo era ingénuo no projecto «socialista» do MFA. A luta surda entre a ala esquerda e a direita do Movimento era arbitrada pelo bloco central «gonçalvista», que aprendera em meses de governo a defender-se das massas e a desconfiar dos seus impulsos destrutivos. A teoria do MFA como «motor e garante da Revolução», reafirmada por Vasco Gonçalves em 7 de Abril, foi aclamada como a decisão de não entregar o poder à social-democracia. Na realidade, expressava já em embrião a luta em duas frentes em que o CR se iria empenhar: impor as reformas democráticas de estrutura contra a resistência da social-democracia e da direita; mas também manter sob controlo os impulsos anárquicos da rua.
As iniciativas imprevistas dos trabalhadores, a quem nada parecia capaz de satisfazer, a recusa insolente dos grupos de extrema esquerda a assinar o Pacto, as exigências «irrealistas» de que se expropriassem as fortunas e se submetessem a julgamento os anteriores governantes e os pides, a reivindicação «provocatória» do abandono da NATO, a «falta de respeito» que começava a contagiar os soldados, eram outros tantos golpes na confiança de Vasco Gonçalves no civismo do povo.
Os dois meses seguintes fizeram amadurecer rapidamente esta atitude. À direita, o PS, apoiado em grandes comícios e manifestações tornava-se cada vez mais audacioso na exigência do lugar que lhe correspondia pelas eleições. À esquerda, as comissões de trabalhadores e moradores criavam conflitos e sobressalto permanente com as suas reivindicações insaciáveis, sem quererem saber do estado catastrófico da economia.
Para agravar as coisas, o ELP fazia a sua aparição em público e os pides fugiam da cadeia, enquanto Otelo, sempre impulsivo, declarava que teria sido melhor se no 25 de Abril os contra-revolucionários tivessem sido encostados à parede ou metidos no Campo Pequeno.
A necessidade de encontrar um partido que lhe servisse de suporte político para navegar gradualmente para o «socialismo», evitando os escolhos da reacção e da revolução, começou a impor-se ao CR. Inviabilizada a ideia inicial de apoiar o MDP como grande frente unitária ao serviço do MFA e sem perspectivas de ver materializado o projecto de um novo partido da esquerda socialista(5), a maioria do CR teve que optar pelo apoio no PCP. Apesar de todos os inconvenientes que isso acarretava (o medo ao comunismo, a retracção dos capitais, a hostilidade da NATO), o PCP era a única força capaz de enquadrar o movimento de massas e já com provas dadas de «responsabilidade».
Nada mais longe da verdade do que a acusação de que o PCP teria tentado, após o 11 de Março, «queimar etapas» e impor uma Democracia Popular em Portugal. Dizer que Cunhal tentou «seguir rigorosamente as pisadas» dos Partidos Comunistas da Europa oriental(6) ou atribuir a fractura do bloco militar em Agosto à manipulação e desvirtuamento dos movimentos sociais populares pelo PCP(7), é verdadeiramente injusto.
Na realidade, Álvaro Cunhal já não sabia se devia felicitar-se ou alarmar-se pela marcha imparável dos acontecimentos. Todas as suas metas, previstas para um largo período histórico, realizavam-se em marcha acelerada, de forma tumultuosa e imprudente.
A impaciência e temeridade das massas, que facilmente davam ouvidos aos incitamentos «esquerdistas», ameaçavam romper todo o delicado equilíbrio requerido pelo projecto da «Revolução Democrática e Nacional». As acções no República e na Rádio Renascença eram uma provocação gratuita ao PS e à Igreja. A torrente incontrolável das comissões suplantava as direcções sindicais e autarquias, conquistadas em luta árdua como pilares do novo poder democrático. O entusiasmo ingénuo da ala esquerda do MFA, e sobretudo do Copcon, pelo poder popular («o povo tem sempre razão», declarava Otelo por essa altura) dava rédea solta à anarquia e acentuava perigosamente o retraimento dos militares moderados. Em princípio de Julho esteve-se à beira de uma ruptura no Conselho da Revolução.
O pior é que o PCP, se previa atormentado o perigo fatal da desunião das forças democráticas, previa também o perigo de ver fugirem-lhe pela esquerda amplos sectores do proletariado da região de Lisboa, do Alentejo, do Porto. A jornada de trabalho da Intersindical a 10 de Junho caíra no ridículo. A 4 de Julho, a Siderurgia veio para a rua, sem querer saber dos avisos dramáticos de que se poderia dar pretexto a um golpe fascista. Muitos militantes operários do partido, perturbados por se encontrarem a cada passo na cauda do movimento, começavam a vacilar na luta contra o «esquerdismo».
Foi necessário portanto apurar a táctica para tentar aquilo de que nenhum outro partido seria capaz: enganchar na mesma dinâmica o ascenso operário e o recuo pequeno-burguês. É isso que dá sentido à política do PCP no Verão de 1975 e não o plano para um imaginário «golpe de Praga».
A acusação, lançada pelo PS para galvanizar os pequenos patrões e a massa intermédia das cidades (e também para estimular o empenhamento mais directo dos americanos), apresentava como provas a insaciável ocupação de lugares pelos quadros do PCP — na comunicação social, no aparelho económico estatal, na 5.ª Divisão. A verdade, porém, é que a hipótese de um golpe «comunista» estava excluída à partida pelo lugar de Portugal na NATO. Mesmo antes de ir a Moscovo conferenciar com Brejnev, Cunhal já o sabia.
Alarmado pela tendência para a desintegração da aliança Povo/MFA em facções antagónicas, o PCP procurava ganhar influência a todos os níveis do aparelho – para persuadir a burguesia liberal à colaboração, dissuadir a burguesia reaccionária de tentações golpistas e impedir os trabalhadores de se lançarem em «aventuras». A recente lição do Chile, para Cunhal, não era obviamente o fracasso estrondoso da táctica reformista em fase de crise revolucionária mas a necessidade de aperfeiçoar essa táctica. O Chile ensinava que era preciso levar mais longe as medidas preventivas contra uma reviravolta imprevista da direita ou uma explosão de «esquerdismo». Por um momento, pareceu que iria consegui-lo.
Julho começou com um novo salto do PREC (o «processo revolucionário em curso»), quando a Assembleia do MFA institucionalizou, após dura luta interna, a aliança Povo/MFA como base da construção do socialismo. Os militares outorgavam às Assembleias Populares o direito de partilhar o poder e reconheciam as organizações unitárias de base como «embriões de um sistema de democracia directa», passando o parlamento para segundo plano. Do MFA-motor, passava-se para a aliança Povo/MFA «binómio-motor da Revolução».
A convicção de que o MFA rompera definitivamente com a social-democracia desencadeou uma explosão de entusiasmo. No dia em que o PS abandonou o governo, uma enorme manifestação da Inter foi a Belém aclamar o Conselho da Revolução e Vasco Gonçalves. Manifestação semelhante teve lugar dias depois no Porto. A TAP suspendeu a greve em sinal de boa vontade. No Alentejo, romperam-se os últimos diques que ainda retinham a ocupação maciça dos latifúndios. As cooperativas e UCPs, somando-se às novas nacionalizações, ao controlo de gestão, às Assembleias Populares... — que mais era preciso para acreditar na realidade do socialismo? Além disso, o reconhecimento sucessivo da independência das colónias não provava a boa-fé e habilidade do CR para pôr termo também ao pesadelo de Angola, afastando o perigo de uma explosão chauvinista reaccionária?
A avalanche das ilusões num socialismo redentor permitia ao boletim do MFA enumerar, nas «classes trabalhadoras interessadas em caminhar para a revolução socialista», «os pequenos e médios agricultores, comerciantes, industriais, os funcionários públicos, intelectuais, técnicos».(8) Um país inteiro feito de «classes trabalhadoras» dispostas a marchar para o socialismo!
Não era difícil porém divisar, sob a demagogia arrevesada do «binómio-motor da Revolução», a inconsistência suspeita do Programa de Acção Política do CR. «Esquecia-se» de definir como funcionaria a «democracia directa» nos quartéis, especificava que «não serão admitidas organizações civis armadas» e prometia reprimir por igual as actividades contra-revolucionárias e o «esquerdismo pseudo-revolucionário», contra o qual admitia, inclusive, o recurso à «acção armada». A repressão sobre os manejos obscuros do MRPP «maoísta» poderia servir de precedente para uma real perseguição à esquerda em caso de necessidade.
Os militares estavam conscientes do risco deste novo passo «irreversível» para o socialismo. Com a oferta de um poder fictício às Assembleias Populares esperavam descomprimir de novo a pressão da rua e recuperar espaço de manobra para enfrentar a campanha do PS e da direita. Mas sem perder o controlo da situação. «Urge inserir os órgãos populares na aliança Povo/MFA», alertava a 5.ª Divisão, «de modo a prevenir o seu desenvolvimento anarquizante ou aventureirista»(9). Não tardaria muito que o ascenso paralelo à esquerda e à direita espalmasse os bons propósitos dos socialistas militares.
A ressaca ao «poder popular» não se fez esperar. O PS, na oposição, arrastou o PPD para fora do governo e iniciou uma grande prova de força. Gigantescas manifestações nas Antas e na Alameda, a 18 e 19 de Julho, comprovaram a base de apoio do «socialismo democrático». Já não se podia pretender que a oposição ao CR era obra só dos saudosistas do antigo regime. O PCP iria pagar cara a tentativa de impedir estas acções por meio de barragens, como se elas fossem uma mera repetição da «maioria silenciosa» do 28 de Setembro.
Não havia qualquer exagero nas denúncias de Cunhal acerca de uma escalada reaccionária orquestrada. Os assaltos e incêndios do ELP articulavam-se com as manifestações católicas, com a agitação promovida pelas confederações patronais, com a ofensiva separatista nos Açores e com a conspiração febril dos colonos de Angola, dispostos a tudo para salvar os seus bens da independência. Mas o ataque geral da direita fazia-se agora, ao contrário do ano anterior, a coberto de um grande movimento de massas da pequena burguesia e em nome da defesa do «verdadeiro espírito do 25 de Abril». Já não se podia ocultar que a «revolução de Abril» se fraccionara em dois ramos antagónicos.
O PCP, contudo, respirava confiança inabalável na Revolução. A ocupação do Alentejo pela vaga dos assalariados rurais, o congresso da Intersindical presidido por Costa Gomes e Vasco Gonçalves, a nacionalização do grupo CUF, não eram a prova da vitória? Cunhal triunfava em comícios delirantes. Demonstrava aos que o tinham suspeitado de timidez que tudo vinha a seu tempo. A ideia de que estavam em curso conquistas «irreversíveis» e de que o partido avançava imparavelmente para o poder («em aliança com os militares revolucionários, os democratas e patriotas») embebedava a base proletária do PCP.
Uma espessa tradição de reformismo crónico ocultava-lhes o quadro real da luta de classes. Convenciam-se de que todos esses avanços, à sombra do MFA e do respeito pelo capital estrangeiro e pela NATO, formavam um matreiro plano revolucionário para roubar uma a uma as bases de apoio da burguesia, até deixá-la suspensa no ar, sem a assustar com excessos «irresponsáveis», como fazia a extrema esquerda.
Era esta ilusão de que estavam a fazer uma revolução «pela surra» que levava os operários mais combativos do PCP a alinhar com fervor na «batalha da produção», a aclamar os discursos lacrimejantes de Vasco e a minimizar a força de massas do PS. Não entendiam que, ao entregar-se nas mãos dos «militares revolucionários» e ao instalar-se no aparelho de Estado em vez de o desmantelar, o seu partido os conduzia para uma derrota certa.
Em Julho, a extrema esquerda começava a abrir espaço no impasse a que chegara a crise política. À medida que se definia a ameaça de direita e a incapacidade do PCP, maiores sectores da vanguarda operária e popular se voltavam para as palavras de ordem da esquerda revolucionária. Começavam a reconhecer a justeza das suas denúncias acerca dos alçapões da aliança Povo/MFA e da necessidade de luta mais radical.
As manifestações de 16 e 18 de Julho (Lisboa e Porto) e sobretudo a de 20 de Agosto, promovidas por comissões de moradores e trabalhadores e apoiadas por contingentes de soldados, projectaram para primeiro plano a aspiração de uma unidade popular renovada, por cima da divisão cavada entre os blocos do PS e do PCP. As suas palavras de ordem centrais eram a efectivação do poder popular e a passagem à ofensiva contra a direita. O seu documento programático, a Proposta de Trabalho do Copcon, divulgada em Agosto, pretendia-se uma alternativa ao V Governo e ao Documento dos Nove.
Havia contudo muito pouca convicção nesta exigência de poder popular. As comissões de moradores e trabalhadores (estas últimas já em grande parte neutralizadas pela influência moderadora do PCP) tinham feito um largo caminho desde o ano anterior, mas estavam longe de querer assumir realmente o poder. Rodeavam as instituições como órgãos de reivindicação, pressão e vigilância, mas não se atreviam a substituir-se a elas.
Faltava-lhes a força para o fazer. Não se chegara de nenhuma forma a um quadro político em que as comissões, apoiadas em órgãos armados, se pudessem apossar do poder pela força. Por isso, o objectivo político difuso que inspirava as manifestações pelo poder popular e a articulação das comissões em Assembleias Populares era ainda o de tentar encontrar essa força nas unidades do Copcon. No fundo, a corrente do «poder popular» cingia-se a tentar revitalizar e «revolucionarizar» a aliança Povo/MFA, descolando, pela pressão das massas, uma nova ala esquerda do MFA. A lógica democrático-revolucionária pequeno-burguesa, mesmo levada ao limite, não se transformava em lógica proletária, soviética. Teria sido necessária a intervenção massiva da classe operária conduzida por um partido comunista que não existia.
Esta timidez tinha raízes na base social confusa da corrente do «poder popular»: sectores operários avançados em fusão com moradores pobres, estudantes, pequenos comerciantes arruinados, intelectuais de esquerda – toda uma massa popular amorfa sem espinha dorsal de classe. Isto mesmo se traduzia na poeira de grupos políticos que lhe disputavam a direcção, nenhum deles capaz de ganhar hegemonia: maoístas, socialistas de esquerda, trotskistas, anarquistas.
Na ausência de uma força política dirigente, o movimento era levado a buscar no prestígio popular de Otelo a coerência unificadora que lhe faltava. Otelo, porém, não era mais do que o intérprete vacilante de um movimento vacilante. Tentava manobrar entre os ataques que lhe eram desferidos pelos Nove e pelos gonçalvistas, pelo PS e pelo PCP. em busca de um espaço político que nunca chegou a encontrar. Em mais de um momento, as suas oscilações levaram-no a aproximar-se dos Nove. A sua decisão conciliatória de reintegrar Jaime Neves, saneado pelos soldados dos Comandos, viria a ser-lhe fatal.
A corrente do «poder popular» não tinha táctica porque não tinha um projecto real de poder. Tão depressa apoiava os ataques do PCP contra o PS como os do PS contra o PCP, o que a conduzia à desagregação. Se, em vez de denunciar o V Governo como um «governo fantoche», tivesse sido capaz de enunciar as condições para uma luta comum contra o PS e os Nove, ela teria certamente deslocado para si uma boa parte das massas que se agarravam com desespero ao PCP e ao «gonçalvismo». Assim, a luta ficou de facto cingida à disputa entre o PCP e o PS.
Fracassadas as negociações para um novo governo de coligação, Agosto serviu para a disputa febril do apoio de massas a cada um dos diversos programas de saída da crise. Frente a frente ficaram o V Governo, que apostava no prolongamento da aliança Povo/MFA, e o Documento dos Nove, defensor da passagem à «normalidade democrática». Tornou-se claro desde logo que a terceira via defendida pelo Copcon com a sua Proposta de Trabalho não dispunha de força para triunfar.
Quem contasse o número de manifestantes e de moções que se pronunciavam em apoio de cada uma das correntes seria inclinado a atribuir a vitória ao V Governo. O Documento dos Nove foi repudiado e estes foram suspensos do Conselho da Revolução. Vasco Gonçalves produzia uma enxurrada de leis «socialistas» e tentava incendiar as massas com discursos sobre a «batalha da produção». O PCP garantia-lhe o apoio com os Comités de Defesa da Revolução. No Século, Miguel Urbano Rodrigues reclamava «um governo que governe» e que se apressasse a «criação do Poder Revolucionário».
Na realidade, as aclamações ao «companheiro Vasco» mobilizavam multidões mas não podiam suprir a impotência real do V Governo. Com as massas operárias desencantadas pela carestia e o desemprego, os camponeses exasperados pela ausência de medidas de apoio à produção, a pequena burguesia em pânico com a desordem, o V Governo só consolidaria uma base de apoio sólida se adoptasse medidas políticas e económicas eficazes em benefício dos trabalhadores, à custa da burguesia, e as impusesse pela força.
Só o conseguiu em relação aos assalariados rurais do Sul. No conjunto do país, as suas indecisões, em vez de desarmarem a hostilidade do PS e da direita, como ele esperava, semearam a vacilação nas massas e tornaram cada vez mais afoita a ofensiva unida para o derrubar. A força maioritária aparentada pelo centro gonçalvista era fictícia. Apostar na estabilização da luta de classes no ponto a que esta chegara era puro suicídio.
Incapaz de desmantelar o ELP e as conspirações militares que fervilhavam, de golpear seriamente os especuladores, os patrões sabotadores, a padralhada, de dissolver a Constituinte, o V Governo revelava-se como um «tigre de papel».
Isso mesmo entendiam social-democratas, liberais e reaccionários. O Documento dos Nove e o Programa de Acção Imediata do PS, ao exigir o fim do «anarco-populismo», das «formas selvagens e anarquizantes do exercício do Poder», das «usurpações e vandalismo» no Alentejo e a concentração do poder na Assembleia Constituinte, galvanizaram as massas burguesas e permitiram-lhe puxar à sua órbita largos sectores de camponeses pobres, assalariados, desempregados, desejosos do retorno à estabilidade. O PS e os Nove dispunham de vantagem esmagadora: eram os únicos que apresentavam um modelo de organização social, contra o marasmo do centro gonçalvista e as indecisões da esquerda.
Entrou-se então no penúltimo acto da comédia revolucionária. Sob a fachada das proclamações cada vez mais exaltantes, Álvaro Cunhal começou a procurar uma plataforma de compromisso com o PS e os Nove. As imponentes manifestações de fins de Agosto, em Lisboa e Porto, de apoio ao Copcon, serviram-lhe de capital de negociação. O PCP aderiu à última hora às manifestações, procurando inflecti-las para o apoio ao V Governo. Em seguida, foi mais longe e entrou com alguns grupos da extrema esquerda na chamada Frente de Unidade Revolucionária (FUR). Os ingénuos incorrigíveis exultaram com o «passo decisivo» que se dava para a unidade da esquerda. Três dias depois, estabelecido um acordo básico com o PS sobre a distribuição de forças no futuro governo, Cunhal negou qualquer apoio à FUR e apelou a uma conciliação entre as três tendências do MFA. Era o fim do V Governo.
A partir daqui, estava aberto o caminho para o golpe de Tancos e para a morte política de Vasco Gonçalves. Os Nove tomaram o controlo do Conselho da Revolução e acabaram com as subversivas Assembleias do MFA. O PS redobrou de energia no ataque ao movimento popular. O 25 de Novembro estava em marcha. Nem sequer a extrema esquerda lhe conseguiu ser obstáculo.
Tem sido fácil ridicularizar os grupos de extrema esquerda pela desproporção entre as suas exigências radicais e a escassez das suas forças. Seria necessário concluir, pelo contrário, que foi a moderação das suas propostas políticas que os impediu de ganhar a direcção do movimento no Verão de 75.
Tudo o que os grupos tinham feito de positivo pelo movimento nos meses anteriores, levando-lhe ideias novas, avançadas, ensinando-lhe anti-imperialismo militante, impondo-lhe saltos para diante, estilhaçando o bronco conformismo legalista e sindicaleiro do PCP, tinha que ser elevado a um nível novo que eles não se atreveram a franquear.
De facto, apesar do radicalismo exasperado da sua linguagem, o arsenal estratégico dos grupos não tinha nenhuma resposta coerente para o cerco à revolução, montado pelo duelo entre as duas alas pequeno-burguesas agrupadas em torno do PS e do PCP.
Se excluirmos a direita da corrente maoísta (MRPP, PCPML/AOC), que viera evoluindo com o seu «anti-social-fascismo» assanhado, para reserva do PS e da reacção (também a OCMLP enveredou por esse caminho a partir do Verão) e a ala esquerda social-democrata (FSP, LUAR, LCI), que se limitava a flutuar na esteira do PCP e do Conselho da Revolução, as forças que constituíam a extrema esquerda propriamente dita (UDP, PRP, MES) não passaram além da busca de um impossível arranjo popular-militar.
A UDP, por exemplo, uma das forças então mais influentes da esquerda revolucionária, tentou corresponder à nova situação com a proposta de um «Governo de Independência Nacional, em aliança com o Terceiro Mundo», numa tentativa nítida de ganhar o apoio de parte da pequena burguesia. A verdade é que a UDP começava a recuar perante a perspectiva de um confronto: por isso entrou em campanha contra o «aventureirismo», pela atracção das camadas médias e pela «unidade do povo contra o fascismo», quando o que estava em jogo era saber se se avançava ou não para derrubar a burguesia. Por isso também, a sua breve agitação a favor de milícias populares não foi levada à prática. A UDP viria a acabar logicamente no defensismo impotente do «não à guerra civil» de Outubro.
Mais radical soava a proclamação da revolução socialista anunciada pelo PRP e a sua iniciativa de constituir comités revolucionários (CRTSM), inclusive alguns deles armados. Mas o seu primitivismo político, formado na escola da acção directa, não dava ao PRP estofo para ganhar sectores significativos do proletariado. O mais que conseguiu foi um corpo de brigadas girando em volta dos quartéis e a reunião de algumas assembleias populares, tão tumultuosas como indecisas. O seu revolucionarismo «activo» era afinal tão impotente como os apelos unitários da UDP. Para já não falar do MES, que se evadia das tarefas revolucionárias com uma combinação aberrante de «socialismo militar» e «revolução cultural».
A raiz desta capitulação estava na linha centrista, maoísta-estalinista, em que se traduzia o marxismo-leninismo dos grupos comunistas. A sua perspectiva de uma revolução democrática-popular já não tinha nada para lhes dar, no ponto a que chegara a luta de classes. Baseava-se na esperança de uma aliança operário-pequeno-burguesa que a vida demonstrava ser inviável. Era essa ausência de estratégia revolucionária que os impedia de arrancar o grosso da vanguarda operária ao PCP e constituir o novo Partido Comunista que reconheciam como sua principal tarefa.
Pelo seu lado, a corrente «anti-estalinista» num leque que ia do PRP ao MES e aos trotskistas, condensava todos os preconceitos da social-democracia de esquerda: uma fé mística na «auto-organização das massas» e nos órgãos de «poder popular», como se deles pudesse sair espontaneamente o partido dirigente da revolução; o namoro aos oficiais revolucionários como chave da conquista do poder; como pano de fundo, uma incapacidade absoluta para diferenciar os interesses do proletariado dos da pequena burguesia. Resultava daqui o pragmatismo invertebrado que os levou à armadilha da FUR.
Numa palavra, a extrema esquerda nunca foi além de extrema esquerda das ilusões de Abril. Estava condenada a assistir impotente ao 25 de Novembro.
No Verão de 75 tratava-se de saber se a classe operária era capaz de enfrentar o desafio que a História inesperadamente lhe apresentava: reconhecer a morte do MFA, uma vez esgotada a tarefa democrática que lhe dera origem, e levar audaciosamente o confronto a um plano superior: pelas nacionalizações, pela reforma agrária à escala nacional, pelo castigo dos contra-revolucionários, pela solução da crise económica — todo o poder às comissões de trabalhadores, soldados e moradores, dissolução da Constituinte, formação de um governo revolucionário, armamento do povo, controlo operário, expropriações sem indemnização, ruptura com a NATO.
Para se poderem manter, as conquistas de Abril tinham que ser levadas muito mais longe. O próprio desenrolar dos acontecimentos demonstrava que não havia lugar para qualquer «revolução democrática e nacional», «revolução socialista de todo o povo» ou «revolução democrático-popular», todas elas imaginadas na base de um impossível bloco unido operário-pequeno-burguês. Os factos mostravam que a revolução só se tornaria realidade se rompesse o casulo da aliança Povo/ MFA e ganhasse a envergadura de uma luta definitiva dos produtores contra os exploradores, dos soldados contra os oficiais, das comissões contra as instituições — em suma, uma revolução do proletariado contra a burguesia, uma revolução socialista.
Poderia essa revolução triunfar sobre a ameaça de guerra civil e de cerco e invasão imperialistas? Pode-se duvidar. Mas não restam dúvidas de que era essa a única revolução que havia para fazer. Fora dela, só ficava o que efectivamente ficou — a reorganização da ordem burguesa.
Saber se a revolução era ou não possível não era questão que tivesse resposta antecipada. Dependia da capacidade do proletariado para assumir a direcção dos acontecimentos, disposto a vencer a todo o preço, e nesse processo arrastar para o seu lado as grandes massas semi-proletárias e retirar margem de manobra à pequena burguesia.
Essa situação não chegou sequer a esboçar-se. Acima de tudo porque faltou ao proletariado um partido revolucionário, comunista, capaz de se assumir e fazer reconhecer como a direcção política da revolução. Esta é naturalmente a conclusão imediata que se impõe a todo o marxista. Mas é preciso ir mais além e perguntar por que não chegou esse partido a formar-se, nem sequer como embrião, numa situação tão propícia, que não só favorecia como exigia o seu aparecimento.
E aqui entramos na questão-chave das relações políticas entre proletariado e pequena burguesia. Enquanto o proletariado procurava às apalpadelas o caminho da revolução, a pequena burguesia, dividida num arco-íris de tonalidades, tratou, toda ela, de lhe bloquear esse caminho. Criticar as «vacilações» da pequena burguesia, como habitualmente se fez, é ainda uma maneira de dourar a realidade. A pequena burguesia não vacilou nunca no essencial para a sociedade estabelecida, que era salvar o Estado.
Isso ficou evidente quanto à massa pequeno-burguesa alinhada atrás do PS e da direita contra a «anarquia». Mas já não ficou claro quanto à fracção radical da pequena burguesia, precisamente pelo seu comportamento pseudo-revolucionário. Guiada pelo instinto seguro de que o mais vital era ficar junto das massas revolucionárias para evitar uma convulsão irreparável, a pequena burguesia de «esquerda» montou uma fraude política de grandes proporções.
Todas as reivindicações revolucionárias dos operários e restantes trabalhadores foram por ela esvaziadas em palavras de ordem de fantasia: aliança Povo/ MFA em vez de aliança dos operários, camponeses pobres e soldados; «poder popular» tutelado pelos quartéis em vez de poder popular autêntico; «batalha da produção» em vez de expropriação da burguesia; respeito pelos compromissos internacionais em vez de saída da NATO; unidade popular em vez de partido operário revolucionário; «transição para o socialismo» em vez de revolução violenta.
Face ao bloco da ordem, comandado pela burguesia , forte do apoio imperialista, alinharam-se assim as hostes desgarradas de um «exército» operário-peque- no-burguês, cujas energias se esgotaram nas mãos de chefes de empréstimo, mais receosos da vitória do que da derrota.
Em vez de ser o proletariado a encostar a pequena burguesia à parede e forçá-la a escolher entre dois campos, foi a pequena burguesia que se arvorou em árbitro da crise. O resultado estava traçado de antemão. Nem chegou a haver batalha.
Hoje, a dez anos de distância, é evidente que a missão histórica da pequena burguesia «revolucionaria», agrupada no PCP e na ala gonçalvista do MFA, era promover a transição do regime fascista-colonialista defunto para a democracia burguesa, afastando o perigo de uma revolução. O que fez com êxito.
Naturalmente, uma vez cumprida essa missão, a pequena burguesia «revolucionária» foi empurrada sem cerimónia para fora do poder que lhe fora delegado provisoriamente pelas forças do Capital. Álvaro Cunhal, Vasco Gonçalves, Costa Gomes têm boas razões para se sentir vítimas de uma injustiça histórica. O serviço que prestaram à «democracia» jamais será reconhecido.
Resta-lhes uma consolação. É que a sua sabotagem da revolução pôde manter-se oculta aos olhos das grandes massas graças à incoerência e fraqueza da esquerda revolucionária. Ao cair pelo ultimato da direita e não ultrapassado pela esquerda, o V Governo santificou-se com uma enganosa auréola revolucionária que permanece até hoje no espírito do movimento operário. Não admira a crise ideológica em que este se debate: todo o sentido da luta de classes em 75 lhe permanece oculto.
Tornar claro o antagonismo de interesses entre proletariado e pequena burguesia de «esquerda» é afinal a lição de Abril que continua por tirar. Admitir ou não a necessidade de o proletariado se libertar da hegemonia pequeno-burguesa, como questão central da luta de classes nacional, é o que distingue, em última análise, o marxismo revolucionário do reformismo.
Notas de rodapé:
(1) Paul Sweezy, Luta de classes em Portugal, Ed. SLEMES, 1976, p. 21. (retornar ao texto)
(2) Comunicado da comissão política do CC do PCP, 11/3/ 75. (retornar ao texto)
(3) O processo de formação das instituições até aí banidas — diz saborosamente Medeiros Ferreira — «foi mais importante e determinante do ponto de vista da construção do regime político do que, por exemplo, a luta de classes que também se travou nessa altura» (!). J. Medeiros Ferreira, Ensaio histórico sobre a revolução do 25 de Abril. O período pré-constitucional. Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 88. (retornar ao texto)
(4) Boletim do MFA, nº 17, 6/5/75. (retornar ao texto)
(5) César Oliveira, na altura um dos principais ideólogos do MFA, expôs numa série de artigos os objectivos programaticos que deveria assumir esse partido. (retornar ao texto)
(6) João Martins Pereira, O socialismo, a transição e o caso português. Ed. Bertrand, 1976, p. 190. (retornar ao texto).
(7) Boaventura Sousa Santos, "A crise e a reconstituição do Estado em Portugal (1974-1984)". Revista Crítica de Ciências Sociais, n.° 14, Novembro 1984, p. 19. (retornar ao texto)
(8) Boletim do MFA. 25/7/75 (retornar ao texto)
(9) Nota da 5ª Divisão, 16/7/75 (retornar ao texto)