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Primeira Edição: Política Operária nº 36, Set-Out 1992
Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Porquê continuar a mastigar sobre a revolução russa? Porque o progresso futuro do marxismo está suspenso do balanço daquela que foi a primeira grande revolução operária da história. Se deixarmos sem resposta as «lições» reaccionárias sobre Outubro de 1917 agora propagadas a torto e a direito, ficaremos desarmados face à talvez ainda distante mas inevitável crise revolucionária que amadurece na Europa.
Adeptos incondicionais do regime soviético em que víamos a fortaleza anticapitalista, muitos anos passaram antes que o conseguíssemos avaliar com alguma objectividade. Foi preciso rompermos com o marxismo-leninismo «ortodoxo» (entretanto falecido de causas naturais, paz à sua alma) para percebermos que a ordem stalinista não era a concretização da revolução operária de 1917, apenas desfeada por algumas manchas, mas um outro regime erguido sobre os escombros daquela; um capitalismo estatal, de transição, que, por isso mesmo, precisava de se amparar a slogans socialistas enquanto caminhava para o seu alvo ignorado: a economia de mercado livre.
Deveremos agora dizer algo sobre este outro aparente mistério: a metamorfose dos ideais emancipadores de 1917 na estagnada ditadura terrorista dos anos trinta; dos audazes revolucionários em aparatchiks ranhosos; do internacionalismo militante em nacional-stalinismo. Isso é tanto mais necessário quanto, na época actual, devido ao hara-kiri da URSS, a campanha de exterminação do leninismo foi dada como vitoriosa, quer por parte da social-democracia, quer do lado do anarquismo, com o acordo mais ou menos geral da opinião de esquerda.
Claro, pode-se sempre mostrar como o antileninismo transformou os social-democratas em leais gestores do imperialismo e os libertários em utopistas folclóricos. Mas isso não chega para nos dar razão. A muita gente parece lógico que, se o Estado fundado por Lenine se volatilizou depois de ma tenebrosa agonia é porque o leninismo estava errado.
Mesmo deixando de parte os convertidos, tipo J. C. Espada, que julgam poder riscar os anos da revolução, como um erro que se apaga com uma borracha, há hoje na esquerda um grande cepticismo quanto a leninismo, bolcheviques, sovietes… Muitos comunistas cansaram-se da busca frustrada das causas da derrota, numa longa marcha para trás que os conduziu sempre à conclusão de que o mal veio ainda mais detrás. «Disseram-nos que a culpa estava no XX Congresso, depois no pacto germano-soviético, depois nos massacres dos anos trinta. Condenámos Kruchov, Trotsky, Staline, Mao, Bukarine… Não será que afinal o descarrilamento começou na própria tomada do poder, com Lenine?»
Este estado de espírito traduz-se na impaciência manifestada por alguns leitores, em cartas a que temos dado publicidade. Já nos têm observado que, em matéria de balanço à revolução russa, Política Operária apenas tem chegado com grande prudência e enorme atraso a conclusões há muito atingidas por outros. Fomos dos últimos a repudiar o «bolchevismo» terrorista de Staline. Só concluímos que o «socialismo real» era um capitalismo real muitos anos depois de os libertários o terem dito. Quanto tempo iremos agora esperar para dar o passo que falta: reconhecer que entre o regime chefiado por Lenine e o de Staline não houve nenhuma ruptura e que portanto o leninismo foi o verdadeiro responsável pela falência da revolução?
Se não nos sentimos motivados por estas exortações não é por considerar Lenine intocável mas porque só à luz do leninismo conseguimos entender a agonia da revolução e a derrota do próprio Lenine.
A série de artigos que hoje iniciamos não pretende fazer descobertas num tema já tão debatido mas apenas focar sob vários ângulos esta ideia que nos parece insuficientemente explorada: a revolução afogada, não por «erros» ou «desvios», mas pelas suas próprias limitações históricas insuperáveis.
Com a abertura dos arquivos da Rússia por Ieltsin tomou novo impulso a campanha contra o poder bolchevique no tempo de Lenine, que já ninguém se atreve a defender. Os que simpatizavam com a revolução de Outubro agora renegam as suas antigas convicções, chocados pela revelação dos rios de sangue derramado. Afinal era falsa a imagem idealizada da revolução que a URSS propagandeava; quem tinha razão eram os reaccionários que bradavam contra os «horrores do bolchevismo»! E aí temos outra vez o «golpe de força dos bolchevistas minoritários, usurpadores da verdadeira revolução democrática russa», a «paranóia leninista de forçar o ritmo da História», os «avisos proféticos de Kautsky»…
Por muito frustrante que seja um debate a este nível, não o podemos ignorar. Já lá vai o tempo em que até mesmo Mário Soares, se queria ser ouvido pelos trabalhadores, tinha que fazer vénias à revolução russa. Hoje, nesta época de contra-revolução aberta, e sobretudo na atmosfera social bafienta do nosso país, que há séculos não é lavado por um abalo radical, a difamação da revolução sob pretextos legalistas é facilmente aceite como pensamento político profundo. Há que arrancar essa crosta pequeno-burguesa as vezes que forem necessárias, se quisermos caminhar para algum lado.
Não vamos, claro, desmentir as violências imputadas aos bolcheviques nos primeiros anos da revolução. Sabemos que são, na sua esmagadora maioria, verdadeiras; mas nem por isso é menos mentirosa a revisão da História construída com base só numa parte dos acontecimentos. O procedimento é bem conhecido. Omite-se, esbate-se ou põe-se em dúvida a extensão e a ferocidade da contra-revolução e obtém-se uma imagem odiosa da revolução.
Silenciam-se os massacres de «vermelhos» pelos exércitos brancos, as valas comuns, os enforcados nos postes telegráficos ao longo das vias férreas — e já se pode elevar uma severa condenação moral das execuções sumárias da Tcheka e da sua prática de fuzilar reféns, «coisa que nunca fizera a Okhrana czarista». Esquecem-se os milhões de mortos (cinco? sete?) em três anos de combates ferozes, de fomes, de epidemias — e já se pode considerar «precursora do nazismo» a instituição pelos bolcheviques da pena de morte e dos campos de concentração e de trabalho para os inimigos capturados e para os suspeitos. Omite-se o acordo entre as potências para a partilha da Rússia e os exércitos brancos convergindo em direcção a Moscovo — e já se pode acusar o governo bolchevique por ter instaurado o estado de sítio, ilegalizado os partidos oposicionistas e suprimido a sua imprensa.
Mas, por muito que se pinte o novo regime como uma tirania de energúmenos, não se podem apagar os seus começos: a explosão de adesões e de iniciativas populares, a liberdade de debate no partido e nos sovietes, as tentativas frustradas dos bolcheviques para formar um governo de coligação, a libertação sob palavra dos oficiais e políticos burgueses que logo a seguir pegaram em armas contra o poder vermelho… O terror surgiu como defesa do novo regime contra o assalto que lhe foi movido, não como base da sua formação.
O regime de ditadura em tempo de guerra civil e de invasão estrangeira pareceria normal a todos os nossos campeões da democracia se não tivesse sido instituído por um poder revolucionário de trabalhadores. Essa foi a sua grande e imperdoável «falta». O terror revolucionário como medida defensiva contra o terror da reacção — que monstruosidade intolerável! Quem tem direito a impor a guerra, a repressão e o terror é o campo da ordem; podem lamentar-se os seus «excessos» mas aceitam-se como uma força da natureza. É uma filosofia antiquíssima: a culpa é sempre dos que se levantam contra a ordem estabelecida. Manda quem pode, obedece quem deve…
Mas essa espiral de horrores, dizem-nos, foi desencadeada pelo assalto ao poder dos bolcheviques contra a vontade da maioria do povo. Outra mentira. A lenda sobre o «golpe» dos bolcheviques destina-se a pôr na sombra a gigantesca revolução popular que elevou o partido de Lenine ao poder. A insurreição de Outubro foi o coroamento de oito meses de levantamento revolucionário em que o povo, depois de derrubar a monarquia, teve que entrar em luta contra uma falsa «democracia socialista» que o condenava à fome e ao massacre. Liberais, socialistas, socialistas-revolucionários perderam sucessivamente a confiança dos trabalhadores pela duplicidade com que prometiam a revolução enquanto namoravam a burguesia e o imperialismo anglo-francês. Como não se sentiam com forças para dissolver os sovietes, esse segundo poder criado pelos trabalhadores, prostituíam-nos a partir do governo.
O partido bolchevique cresceu vertiginosamente por ser o único cujas propostas satisfaziam os soldados que desertavam em massa da frente de combate, os operários que tomavam o controlo da produção nas fábricas, as aldeias sublevadas que ocupavam as casas senhoriais. Foi o povo em revolta que fez a força dos bolcheviques — eis o simples facto que se silencia para se poder continuar a vender a lenda do «blanquismo» e da «sede de poder» de Lenine.
Pelo contrário, a seriedade com que o partido bolchevique acompanhou o estado de espírito das massas é um modelo para os revolucionários de todos os países. Logo nas Teses de Abril, reconhecendo as potencialidades revolucionárias criadas pelos sovietes, Lenine deu como directiva aos seus partidários obter aí a maioria através da propaganda. «Não temos que temer nada de uma democracia autêntica — dizia—; a vida está do nosso lado». Em Julho opôs-se à iniciativa insurreccional da vanguarda, justamente porque esta ainda não era seguida pela maioria e «iria lançar uma parte dos trabalhadores contra a outra parte». Em Setembro precisou: «Para ter êxito, a insurreição deve apoiar-se não sobre uma conspiração, não sobre um partido, mas sobre a classe de vanguarda, sobre o impulso revolucionário do povo».
Esse impulso revolucionário, foi o governo que o acicatou. Obediente às potências ocidentais, impôs uma ofensiva contra a Alemanha, causando centenas de milhares de vítimas; pôs os bolcheviques fora da lei; foi adiando com desculpas a convocação da Assembleia Constituinte; favoreceu um golpe militar de direita, esmagado no ovo pela pronta reacção dos trabalhadores. Por fim, meteu-se a reprimir as ocupações de terras pelos camponeses. E com isto ditou a sua ruína.
Chegados ao ponto em que os bolcheviques obtiveram, em livres eleições democráticas, a maioria nos sovietes, nos comités de fábrica, nos principais sindicatos, na Duma de Moscovo; em que o poder já era exercido pelos sovietes em várias regiões, perante a paralisia das autoridades burguesas em desagregação; e face à evidência de que o governo se preparava para entregar Petrogrado aos alemães para se ver livre do povo revolucionário — a insurreição bolchevique era obviamente a única medida de defesa da liberdade popular. Tão madura estava a necessidade do levantamento que o governo caiu sem ninguém que o defendesse. Quase não chegou a haver combates.
Pois mesmo quando tem que se reconhecer tudo isto, ainda se encontra uma maneira de condenar os bolcheviques! «Se tivessem realmente confiança nas massas, esperariam pelo livre curso da acção espontânea destas, em vez de organizar a insurreição». Ou seja: os outros partidos conduziam a contra-revolução, mas o partido revolucionário deveria abster-se de conduzir a revolução para não cair nas perversões do substitucionismo… E difícil levar mais longe o sofisma.
Até mesmo o facto de os bolcheviques terem sido mandatados pelo congresso dos sovietes para formar governo não é suficiente para estes exigentes legalistas, que noutras situações se acomodam sem dificuldade aos entorses burgueses à legalidade vigente!
Porquê insistir em episódios tão gastos? Porque as mentiras sobre a «conspiração totalitária» continuam a ocultar à nossa visão o acontecimento de maior significado revolucionário deste século. O Outono russo de 1917 ficou como um daqueles raros momentos em que a democracia das massas em acção encontrou um partido capaz de agir como catalisador da sua vontade e de levar o conflito até às últimas consequências. Em vez da cena mil vezes repetida da vacilação das massas dispersas, enganadas por chefes de duas caras, até ficarem à mercê da burguesia (quem não se lembrado nosso Verão quente de 75?), dessa vez formou-se no seio do povo politicamente activo uma maioria com clareza de objectivos. Conduzidos pelos bolcheviques, os operários declararam abolida a ordem dos capitalistas e proprietários e encetaram um outro tipo de ordem social.
É compreensível que ainda hoje a burguesia não seja capaz de engolir um tal ultraje, mesmo passado quase um século. Se nem os «excessos» das grandes revoluções burguesas ela conseguiu digerir, quanto mais a «monstruosidade» duma revolução operária, horror que nesse tempo, quando Churchill reclamava que se «estrangulasse a criança no berço».
É isso que significam as novas excomunhões da «contra-revolução» bolchevique: a burguesia jamais reconhecerá aos assalariados o direito democrático de a expropriarem. É bom que o tenham presente os que gostam de devaneios em torno dos «hábitos democráticos enraizados na vida política europeia». Na eventualidade de uma crise revolucionária e de levantamentos proletários no continente, a burguesia imperialista só não reagirá por um banho de sangue se for reduzida à impotência pelo rolo compressor das massas. A lição de Outubro de 1917 continua plenamente válida.
Não se provando que os bolcheviques tenham dado um golpe na democracia ou tenham tomado a iniciativa do terror, será forçoso absolvê-los? Não, porque ainda existe uma terceira acusação: a «loucura utópica do salto mortal para o socialismo» e a sua consequência, o totalitarismo, como «única forma de esmagar a resistência da enorme maioria da população».
Mas esta acusação é tão inventada como as outras. Na realidade, o que os bolcheviques encetaram após a conquista do poder não foi nenhuma mirífica revolução comunista mas as transformações democráticas que os governos da pequena burguesia vinham bloqueando desde Fevereiro: confiscação das terras dos latifundiários e dos conventos e sua entrega aos conselhos de camponeses; proposta de uma paz democrática e sem anexações a todos os beligerantes; divulgação dos tratados secretos; instituição do controlo operário na indústria para restabelecer a produção; separação entre o Estado e a Igreja, igualdade de direitos para a mulher, reconhecimento de direitos soberanos a todas as nacionalidades, campanha de educação popular, propaganda ateísta…
Sem dúvida, os bolcheviques declaravam a sua intenção de aproveitar as condições favoráveis criadas pelo poder dos operários e camponeses para irem mais além, passarem sem interrupção ao socialismo, apoiados na grande revolução socialista europeia que julgavam prestes a rebentar. Mas sabiam que, de momento, a amplitude das transformações tinha que se pautar pelo atraso da base material do país.
A adopção do «comunismo de guerra» a partir do início da guerra civil, com a nacionalização sucessiva de toda a indústria e do comércio, a troca directa, as comunas, o igualitarismo, as requisições da produção camponesa, etc., foi uma medida de emergência, em situação de catástrofe; esse «comunismo de miséria», trágica caricatura do comunismo, nunca fora programado pelos bolcheviques.
Quando, após o fim da guerra, o poder revolucionário pôde finalmente encetar a reorganização económica, a revolução estava já ferida de morte.
Mesmo assim, na Rússia soviética dos anos vinte, esgotada pelos desastres da contra-revolução e da guerra, os ideais da revolução ainda tinham força para produzir uma cultura, uma arte e uma ciência de vanguarda, o reconhecimento dos direitos do povo trabalhador, o internacionalismo— ideias novas que da Rússia irradiaram para o mundo inteiro, tornando-se ponto de referência para o pensamento avançado e obrigando a burguesia imperialista a concessões que de outra forma nunca teria admitido.
Nem mesmo a posterior decadência, apodrecimento e derrocada da União Soviética e a reacção em toda a linha a que assistimos puderam apagar a marca deixada pela revolução de Outubro no nosso século. A social-democracia, cujas «revoluções» se têm saldado invariavelmente por farsas, por vezes sangrentas, faz um papel ridículo ao pregar moral à grande revolução russa.
Toda essa grande revolução popular e democrática estaria hoje certamente aceite, digerida e embelezada numa aura romântica, como tantas outras, se não tivesse criado o poder dos sovietes. Aqui está o «crime», a «barbárie comunista», a grande questão de princípio onde a burguesia não transige.
Dizem-nos que essa República dos conselhos operários e camponeses violou os mais elementares princípios do Estado de direito ao abolir as instituições representativas tradicionais. Essa teria sido a origem da posterior evolução totalitária do regime. Kautsky teria demonstrado certeiramente no seu tempo que o conceito de «ditadura do proletariado», ao dividir os cidadãos segundo a sua origem de classe, era uma provocação à guerra civil e servia de justificação à ditadura pura e simples. O regime dos sovietes, apresentando-se como o mais democrático, seria um regime de puro arbítrio coberto com frases românticas sobre os «direitos do povo».
Convém determo-nos nesta objecção porque, sob a aparência de isenção democrática, ela revela o raciocínio tortuoso dos partidários do capitalismo. O princípio, já cem vezes desmistificado e hoje novamente tido por indiscutível, de que o Estado se compõe de cidadãos iguais, abstraindo da sua divisão real em possuidores e assalariados do capital, é a pedra angular da fraude democrática burguesa.
Quando Kautsky condenava o poder soviético porque «suprimia o reconhecimento dos direitos da minoria», ele exprimia bem a lógica burguesa: deve reconhecer-se liberdade a todas as actividades que não ponham em causa o respeito inviolável pela propriedade privada e pela reprodução do capital. Estabelecer como limite à liberdade de cada um os direitos invioláveis dos trabalhadores surgia-lhe como uma violência porque privava a minoria burguesa do seu «direito» de exploração.
Se formos às motivações profundas da actual campanha contra o terror dos bolcheviques veremos que ela é essencialmente semelhante à que ouvíamos no tempo de Salazar. Em vez de se amaldiçoar o «comunismo ateu», critica-se a «vocação totalitária» dos bolchevistas e a «febre persecutória» de Lenine; mas a atitude de fundo é a mesma. A revolução é o mal absoluto porque viola os mandamentos sagrados da ordem burguesa: «não expropriarás a propriedade privada», «respeitarás o capital acima de todas as coisas», «não semearás a desordem», «não confraternizarás com trabalhadores estrangeiros em prejuízo da tua Pátria», «não desafiarás as instituições legítimas com órgãos da populaça»…
Não há contudo campanhas que possam apagar o facto novo: ao colocar-se como objectivo a supressão das relações de exploração entre cidadãos, o poder soviético pôs a nu a monumental mentira do Estado de direito burguês e anunciou a decadência da democracia burguesa. Não conseguiu ir além dos primeiros passos, é certo. Mas o ano de 1917 ficou a marcar o começo da nova época histórica da democracia dos conselhos. O seu retorno em revoluções futuras é inevitável.
Mas há acusações precisas. Primeira: o regime soviético seria desde o início uma fachada para a ditadura dos bolcheviques, que não admitiam a alternância do poder, nem sequer a existência de outros partidos, e não descansaram até impor o comando férreo do partido único e reduzir as eleições e liberdades populares a uma farsa. A pretensa justiça social proporcionada pelo regime soviético traduzir-se-ia no totalitarismo puro e simples.
Num ponto temos que concordar com a acusação: os comunistas assumiram o poder sem nenhum «espírito de alternância». Mandatados pelo II Congresso dos sovietes, foram para o governo dispostos a lá permanecer até levarem a cabo o seu programa revolucionário. E fizeram muito bem; deveríamos criticá-los, sim, se não o tivessem feito (como os nossos «revolucionários abrilistas», que tentaram conciliar reforma agrária, nacionalizações e controlo operário com campanhas eleitorais e alternância do poder, tornando-se motivo de chacota para amigos e inimigos). Só depois de realizado o programa que levou o partido revolucionário ao poder pode encetar-se uma nova normalidade constitucional. Medir um período de transformação radical das relações sociais pelas regras do jogo parlamentar em épocas de estabilidade é confusão bem própria de socialistas; o pior é que cabe sempre aos trabalhadores pagarem a factura dessa confusão.
Mas é falso que os bolcheviques não admitissem a existência dos outros partidos. Exigiam-lhes apenas que respeitassem o novo regime. Nos primeiros meses, os S-R de esquerda participaram no governo, de que só saíram por decisão sua. mencheviques, S-R de direita, maximalistas, anarquistas, mantinham os seus delegados nos sovietes, editavam a sua imprensa, reuniam nas suas sedes, etc.
A partir do Verão de 1918, contudo, com o começo da guerra, com os socialistas-revolucionários apelando à intervenção estrangeira e cometendo uma série de atentados em que foram mortos membros do governo; com os mencheviques, mais dúplices, explorando as vantagens da legalidade soviética ao mesmo tempo que colaboravam com os generais brancos — a proibição das suas actividades era uma questão de salvação da República.
Nessa guerra o país foi reduzido ao estado de catástrofe, milhões de pessoas foram mortas e a economia aniquilada. Será de estranhar que, no fim dela, nada restasse da democracia dos conselhos e o poder se concentrasse em exclusivo no aparelho do partido? A democracia soviética foi esmagada, juntamente com a revolução, pela ferocidade da contra-revolução — eis o que teriam que reconhecer os críticos se não partissem da ideia de que tudo o que se afasta da democracia burguesa é «anormal».
Segunda acusação: os bolcheviques teriam espezinhado toda a legalidade ao dissolver a Assembleia Constituinte, cuja convocação exigiam antes ao governo de Kerensky. Esta acusação esquece:
Mas há outra acusação: os sovietes não eram democráticos porque privavam do direito de voto diversas categorias de cidadãos (todos os que não fizessem prova de que viviam do seu trabalho, tais como membros da nobreza, capitalistas, padres, etc.). A isto chamam os nossos puristas democratas «um estúpido critério corporativo».
Note-se que, tendo adoptado esta medida nas condições de guerra civil e invasão estrangeira, Lenine precisou que «privar os exploradores do direito de voto é um problema puramente russo, não um problema da ditadura do proletariado em geral». «Seria um erro decidir desde agora que em futuras revoluções proletárias na Europa a burguesia teria que ser privada do direito de voto». Pela nossa parte, poderíamos acrescentar que, também na futura revolução europeia, a privação de direitos eleitorais aos cidadãos burgueses em período de convulsão, quando o novo poder revolucionário ainda não estiver consolidado, será uma medida perfeitamente legítima a que nenhum partido revolucionário pode renunciar antecipadamente, porque pode ser vital para a defesa da democracia dos trabalhadores. Não é preciso demonstrar que a extensão dos direitos democráticos a todas as categorias da população depende da solidez das instituições.
Por último, o regime de eleições indirectas para os sovietes de cúpula, apresentado como mais uma prova da falta de democracia do sistema, só mais tarde, no tempo de Staline, foi defendido como norma obrigatória do regime. Para Lenine era simplesmente um procedimento temporário, para «facilitar o funcionamento do sistema num período de efervescência em que se impõe proceder com rapidez na eleição ou destituição dum deputado ao Congresso Geral dos sovietes».
Outras inovações da democracia dos conselhos, como a associação do poder legislativo ao poder executivo, a prestação de contas dos eleitos ou a capacidade dos eleitores revogarem em qualquer momento o mandato dos seus deputados, não suscitam obviamente tanto interesse crítico nos nossos santarrões da democracia pura.
… E no entanto, é inegável que Lenine se enganava quando, em vésperas da insurreição, assegurava:
«Ao propor de imediato uma paz democrática, ao dar a terra aos camponeses e restabelecer as instituições e liberdades democráticas espezinhadas por Kerensky, os bolcheviques formarão um governo que ninguém conseguirá derrubar». (26, 10).
O governo bolchevique não foi de facto derrubado mas porque suprimiu por sua vez as instituições e liberdades democráticas. Os plenos poderes policiais, as execuções sumárias, a vigilância tentacular que se foi estendendo a todos os sectores da vida social, as repressões contra greves operárias e levantamentos camponeses em nome do estado de excepção, as restrições cada vez mais apertadas à oposição no seio dos sovietes, a supressão dos partidos e da imprensa de oposição, destruíram a promessa de Lenine de «uma expansão até hoje desconhecida do princípio democrático em benefício das classes oprimidas pelo capitalismo».
Lenine errou na previsão de que os sovietes iriam desempenhar as funções do velho aparelho de Estado, «iniciando a massa dos trabalhadores na aprendizagem da gestão do Estado»; enganou-se na convicção de que iriam estalar na Europa «revoluções socialistas em cadeia» «num futuro muito próximo»; falhou na sua esperança de que «nunca chegaremos ao terror dos revolucionários franceses que guilhotinavam pessoas desarmadas» (26, 307). E teve em 1921, a propósito de Cronstadt, uma palavra terrível, que resume tudo o que viria a acontecer mais tarde:
«O descontentamento e efervescência entre os operários sem partido fazem da democracia uma palavra de ordem para o derrubamento do poder soviético» (32, 198).
Isto equivalia a reconhecer (embora ele não o tenha nunca admitido) que o regime já nada tinha a ver com a ditadura do proletariado.
Nesse ano-chave de 1921, a adopção da NEP, a repressão de Cronstadt e a proibição de fracções no partido marcam o nó de estrangulamentos em que a revolução se perde: para sobreviver, o poder tem que se defender de todos — camponeses, operários, comunistas.
Somos assim de novo conduzidos à mesma interrogação dos críticos: o carácter prodigioso dos objectivos da revolução, a reacção maciça que suscitou, a agonia em que se afundou, não são afinal a contraprova de que não existiam condições reais para uma meta tão ambiciosa e que os bolcheviques tentaram de facto forçar o ritmo da história, «alienados pelo utopismo marxista»? Não será que quem tinha razão, afinal, era Kautsky quando dizia que ninguém conseguiria fazer marchar os camponeses em direcção ao socialismo e que a ditadura do proletariado acabaria numa tirania? Ou Zinoviev e Kamenev, quando se pronunciavam contra a tomada do poder, avisando que «todos vão estar contra nós»? Não será necessário reconhecer que o triunfo de Lenine em Outubro de 17 assentava num mal-entendido que não podia durar porque partia de «premissas falsas»? Não será que tudo foi um erro monumental? E nesse caso não deveremos apreciar com outros olhos a guerra civil e até a intervenção estrangeira, justificadas até certo ponto pelo pânico causado por tal cataclismo?
Incontestavelmente, os adversários da tomada do poder acertavam ao prever que nem os camponeses marchariam com os bolcheviques depois de receber a terra, nem o proletariado europeu estava maduro para a revolução, e que nessas condições o proletariado russo seria esmagado. Eram eles, com o seu pessimismo, que adivinhavam, não Lenine. Mas essa sabedoria não servia para nada quando a revolução batia à porta, exigindo um desenlace. Quando a História reclamava uma resposta, era justo e obrigatório contar com todas as eventualidades favoráveis, porque a alternativa era arriscar ou capitular. No ponto de viragem a que chegara a revolução, se os bolcheviques não tivessem tomado o poder teriam abandonado as massas insurrectas à mercê do ajuste de contas que contra elas preparava a burguesia. A conclusão sábia a que chegam todos os reformistas perante as revoluções derrotadas, de que «não se devia ter feito a revolução», serve, como sempre, para justificar a entrega da iniciativa burguesia para que ela meta na ordem os trabalhadores sublevados.
Lenine avançou, não por ser «jogador», mas porque sabia que o que contava acima de tudo para a evolução futura do movimento internacional era abrir uma saída ao caudal revolucionário dos operários e camponeses russos naquele momento. Kamenev e Zinoviev opunham-se, não por «lucidez» ou «prudência», mas porque tinham da revolução uma visão evolutiva, reformista. Viam o perigo de sacrificar as forças revolucionárias numa «aventura». Não viam o perigo de as sacrificar na inércia.
O dilema vivido pelos bolcheviques na Rússia fora retratado com flagrante nitidez por Engels, a propósito da agonia das guerras camponesas na Alemanha no século XVI:
«O pior que pode acontecer ao chefe de um partido extremista é ser forçado a encarregar-se do governo quando o movimento ainda não amadureceu suficientemente para que a classe que representa possa assumir o comando e para se poderem aplicar as medidas necessárias ao domínio dessa classe (…). Encontra-se pois, necessariamente, perante um dilema insolúvel: o que realmente pode fazer está em contradição com toda a sua actuação anterior, com os seus princípios e com os interesses imediatos do seu partido; e o que deve fazer não é realizável. Numa palavra, vê-se forçado a representar, não o seu partido ou a sua classe, mas sim a classe chamada a dominar nesse momento. Os que ocupam esta posição ambígua estão irremediavelmente perdidos.» (Engels, As guerras camponesas na Alemanha).
Esta nos parece a resposta para o «enigma russo» em torno do qual se têm bordado tantas melancólicas ou indignadas reflexões reformistas: a revolução operária foi forçada, pelo atraso da base material da sociedade, a pôr-se ao serviço da revolução democrática camponesa. Vitoriosa graças ao ascenso da vaga camponesa no ano de 17, a sua derrota tornou-se inevitável quando essa mesma vaga entrou em refluxo a partir de 1918. Uma República do Trabalho não podia manter-se num país onde a esmagadora maioria era constituída por pequenos produtores independentes, que só momentaneamente aderiam à revolução do proletariado. Na ausência de uma revolução socialista na Europa, o poder dos bolcheviques estava condenado a ser derrubado ou a degenerar.
A experiência russa não demonstrou que o derrube da ordem burguesa acarrete como consequência necessária a supressão das liberdades democráticas, o terror, o partido único; ela demonstrou sim que na Rússia era ainda muito reduzida a capacidade do proletariado para reorganizar a sociedade, levando a que se transferisse para um aparelho burocrático de Estado as funções que só uma poderosa democracia proletária poderia desempenhar. A revolução morreu, não por causa da ditadura do proletariado mas pela sua debilidade.
Inclusão | 08/08/2018 |