Cunhal Condenado a Perder a Batalha

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1991


Primeira Edição: Política Operária  nº 30, Maio-Junho 1991

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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“Recusa à mudança” é talvez a ideia que mais surge associada a Álvaro Cunhal. Como elogio ou como condenação, mas sempre com o significado de “comunista intransigente”. A realidade não é tão simples, como julgamos ter mostrado numa série já longa de artigos e comentários desde há bastantes anos. Para se apreender o pensamento político de Cunhal há que estudá-lo na sua complexidade, descascá-lo, por assim dizer, como um fruto, caminhando do revestimento para o miolo.

Há primeiro, à superfície, uma firmeza aparentemente inabalável de posições, que é a imagem que retêm os espíritos simples (Cunhal proclama hoje como há meio século a “actualidade do leninismo”, o “carácter de classe do partido”, o valor histórico da revolução russa, a luta anti-imperialista, o “orgulho de ser comunista”, etc.); todavia, se observarmos com um pouco mais de atenção o seu percurso político, encontraremos uma segunda camada, marcada por uma incoerência pasmosa; é assim que ele abandona sem autocrítica, por exemplo, a tese do “regime não-capitalista” que, segundo parece, ainda há dez anos vigorava em Portugal por força das “conquistas irreversíveis”; ou que passa das afirmações obsessivas sobre a “força inabalável da comunidade socialista” para a admissão de que tudo foi deitado a perder por um conjunto de misteriosos “erros”; ou que rejeita a noção de “ditadura do proletariado” não a rejeitando…

É então Cunhal um vulgar oportunista e demagogo? Claro que não; se o fosse, não se manteria à cabeça do único partido com real influência operária do nosso país, durante mais de meio século. Se cavarmos mais fundos, encontraremos na base desta incoerência uma linha de pensamento imutável: a utopia romântica duma revolução socialista apoiada em massa pela pequena burguesia graças à contenção, paciência e humildade da classe operária — este sim, o verdadeiro núcleo duro da ideologia cunhalista: o progresso pela colaboração fraterna das classes “populares”, ideia que ainda conserva certo atractivo na cabeça dos operários.

Novos exemplos deste sistema de ideias surgiram, há cerca de um ano, na entrevista que Cunhal deu à Politika, a revista dos jovens comunistas (?). Dessa entrevista, que passou mais ou menos despercebida, retirámos alguns tópicos que ilustram o que afirmamos.

"Comunidade Socialista" que se Evapora

Não podendo já negar a situação catastrófica na URSS e na Europa de Leste, mas não querendo reconhecer a falsidade da sua propaganda de tantos anos à “poderosa comunidade socialista”, Cunhal debate-se numa série de absurdos.

Diz que as transformações surgidas na Europa Oriental vieram “corrigir situações que necessitavam de ser corrigidas” mas acrescenta logo adiante que essas medidas estão a “voltar-se noutra direcção que poderá ser a restauração do capitalismo”. Este contra-senso — uma “correcção” que degenera numa liquidação — resulta da impossibilidade em que Cunhal se encontra de reconhecer, muito simplesmente, que as tais medidas que ele apelidava de “correctivas” eram já o preâmbulo da actual “restauração”, como aliás demonstraram, de há trinta anos para cá, numerosos críticos (os tais “provocadores esquerdistas”…). Quantas vezes foi dito que a introdução “controlada” dos mecanismos de mercado e de lucro nessas economias acabaria necessariamente por impor a sua lógica e devorar todo o sector estatal? Quantas vezes foi dito que o Estado generosamente partilhado com “todo o povo” acabaria por reverterem benefício exclusivo da burguesia?

Da mesma forma, Cunhal defende sem titubear que a perestroika é uma “revolução real” porque isso lhe é indispensável para ressalvar um resto de esperança quanto ao futuro da URSS; mas nega que esta “revolução” ponha classes frente a frente — como poderia haver na URSS “socialista” classes antagónicas? O objectivo da perestroika acaba assim numa modesta “renovação no quadro do socialismo”, deixando toda a gente sem perceber como pode esta simples “correcção” causar tantas convulsões.

Assim vai Cunhal fazendo ao longo da entrevista uma tortuosa colagem de paradoxos, sob uma firmeza de princípios meramente verbal.

Socialismo para Engenheiros

Mas nesta embrulhada de contradições há um fio condutor, como dissemos. Cunhal demarca-se com ênfase de ideias “simplistas” e “utópicas” que atribuem ao socialismo a meta da extinção das classes; para ele, o objectivo da fase socialista é apenas eliminar as “classes antagónicas” (isto é, eliminar os donos do capital, não a organização capitalista do trabalho; a experiência soviética continua a ser a sua cartilha); além disso, não vê nenhuma impossibilidade para revoluções socialistas em países onde não haja proletariado; e admite que a noção de classe operária se tornou muito complexa e tem que ser revista.

Tudo isto conflui para uma conclusão que é o eixo do seu pensamento político: o “socialismo” como produto duma vasta aliança entre operários, quadros, pequenos e médios patrões; o “socialismo” como um mosaico de formas económicas, onde o sector estatal convive em boa paz com o sector privado; o “socialismo” sem as explosões de revolta dos explorados contra os exploradores; numa palavra, o “socialismo” sem a malfadada “ditadura do proletariado”…

A Ditadura persegue-o

Cunhal continua enleado na necessidade de dar explicações sobre a “ditadura do proletariado”, riscada do Programa do partido em Dezembro de 74. Sim, admite, riscámos, “mas esclarecemos que a palavra ditadura não tinha que ver com o regime político, era a definição genérica dum sociedade dividida em classes”.

É inevitável a pergunta: se o PCP achava a expressão importante e esclareceu o significado da palavra “ditadura”, porque a riscou? Acaso pode um partido que se declara marxista riscar a única expressão que define com rigor as relações sociais após a revolução?

A verdade conhecida de quase todos é que, em atenção aos pruridos da burguesia democrática, Cunhal riscou a ‘ditadura do proletariado’ para alargar o espaço de manobra do PCP. Cedência que de pouco lhe serviu, porque havia muito mais coisas que a burguesia não tolerava: as manifestações, as comissões de trabalhadores, a reforma agrária, a perda de autoridade do Estado…

A “revolução” intermédia, “democrática e nacional”, sem “ditadura do proletariado”, naufragou num desastre completo, não sem primeiro sacrificar à sua lógica todos os interesses operários e populares, todo o espírito de vigilância e de resistência de classe, deixando os trabalhadores na mais profunda crise política e ideológica. Mas Cunhal quer que os operários saibam que continua a gostar muito da ‘ditadura do proletariado’…

Frases Marxistas miolo Anti-Operário

À superfície, para os operários, frases marxistas sobre a luta de classes; no interior, um projecto utópico de “socialismo” pequeno-burguês, anti-operário; como resultante, um percurso contraditório e incoerente — eis em resumo o pensamento político de Álvaro Cunhal.

Percebe-se assim melhor a derrota que o espera na polémica que vem travando com os liberais do seu partido, que “perderam a confiança no socialismo, na construção da sociedade nova”, querem “pôr em causa a natureza de classe do partido” e caem na órbita do PS. Ele quer impedir o florescimento das concepções que tem semeado ao longo da sua vida. Trabalho perdido. Foi a vida que demonstrou que o “cunhalismo” desabrocha na social-democracia.


Inclusão 02/10/2018