Marx & Engels
Curso de Marxismo da Academia de Moscou

David Riazanov


Sexta Conferência
A reação de 1852 a 1862. O New York Tribune. A guerra da Crimeia. As opiniões de Marx e Engels. A questão italiana. Debate de Marx e Engels com Lassalle. Polêmica com Vogt. A atitude de Marx diante de Lassalle.


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Após virmos como a liquidação da Liga dos Comunistas fez com que Marx e Engels cessassem durante longos anos toda atividade política direta, analisaremos agora o período que vai do ano 1852 até a fundação da Primeira Internacional e intentarei explicar o porquê de Marx e Engels ter permanecido inativos por todo este tempo. A reação iniciada em 1849 se intensificou até culminar em 1854. Foram suprimidas todas as liberdades políticas, proibidas todas as uniões operárias. A imprensa livre já havia desaparecido no segundo semestre de 1849. A Prússia havia conservado uma câmara de deputados, porém terrivelmente reacionária.

Marx e Engels tiveram que resolver então tão árdua questão para a existência material que é a do pão cotidiano, já que um gênio, como qualquer homem, necessita comer.

É difícil imaginar até que extremo era penosa sua situação nesses momentos, sobretudo devido ao fato de que Engels havia tido violentas discussões com seu pai, um rico industrial, dono de fábricas na Alemanha e Inglaterra, e não queria se humilhar perante dele.

Ambos buscaram com empenho alguma tarefa intelectual, porém a Alemanha lhes era hostil. Na América tinha a possibilidade de trabalhar em jornais operários, mas essa colaboração nada aportava.

Marx escreveu então para uma revista estadunidense sua obra histórica mais genial: O 18 Brumário de Luís Bonaparte. É a história da Revolução de Fevereiro e nela Marx demonstra como a luta de classes determinou sua sorte, como os distintos partidos da burguesia, até a fração mais democrática, voluntária e jubilosamente, ou sem querer e derramando lágrimas, traíram ao proletariado entregando-o aos generais e verdugos e como, no final, foram preparadas progressivamente as condições que permitiram a uma nulidade como Napoleão III tomar o poder.

A situação material de Marx piorou. Durante os primeiros anos de sua estadia em Londres perdeu dois dos seus filhos, um garoto e uma menina. Ao morrer esta não se tinha dinheiro sequer para o enterro.

Engels decidiu então, mesmo com má vontade, voltar a seu "ofício desprezível", como chamava a prática do comércio, ocupando um emprego na sucursal inglesa da fábrica do seu pai. Foi para Manchester. No começo não era mais do que um simples empregado e teve que, por conseguinte, ganhar a confiança do pai e da direção da sucursal, demonstrando ser capaz de ser um bom comerciante.

Marx permaneceu em Londres. Da Liga dos Comunistas só restou um pequeno número de operários, alfaiates e tipógrafos, reunidos em torno de uma sociedade de educação comunista. Inesperadamente, até fins de 1851, Marx teve a oportunidade de trabalhar em um diário estadunidense dos mais influentes: New York Tribune. Um dos seus redatores, Charles Danna, que havia conhecido Marx na Alemanha durante o desenrolar da Revolução de 1848 e admirando-o como jornalista, o solicitou que escrevesse uma série de artigos sobre aquele país, julgando conveniente ampliar as páginas dedicadas aos assuntos da Europa ocidental, dado o aumento significativo da imigração alemã na América, devido à revolução.

A oferta pôs Marx em um problema, pois naquele momento era incapaz de escrever em inglês. Assim teve que estabelecer com Engels uma curiosa colaboração. O Manifesto Comunista fora escrito quase unicamente por Marx; ainda assim está assinado por ambos, ainda que Engels não tenha participado nele mais do que no A Sagrada Família. Desta vez, ao contrário, a Engels correspondia um grande trabalho. Seus artigos, reunidos em seguida no volume que recebeu o título A Revolução e a Contrarrevolução na Alemanha, foram atribuídos a Marx. Pela correspondência de Marx e Engels, hoje sabemos que são obras deste último. Não convém, porém, exagerar. No fundo, é obra comum de Marx e Engels e este escreveu utilizando inúmeras indicações de Marx, assim como os artigos que ambos haviam publicado na Nova Gazeta Renana. Desta maneira começou a colaboração de Marx no New York Tribune. Após um ano, Marx já dominava tão bem a língua inglesa que começou a escrever diretamente seus artigos neste idioma. Assim, em 1853, Marx dispunha de uma tribuna para expressar suas opiniões. Por desgraça, esta tribuna não estava localizada na Europa, mas na América. Os leitores do diário buscavam nele uma resposta a seus problemas. Os acontecimentos ocidentais interessavam muito, mas somente na medida da sua repercussão na vida estadunidense. Para os Estados Unidos, a questão capital era então a supressão da escravidão, ou seja, a libertação dos negros, ao mesmo tempo de um litígio sobre liberdade comercial entre os estados do Norte e do Sul.

Na primeira questão, o New York Tribune estava posicionado na extrema esquerda: reivindicava a abolição da escravidão. Na da liberdade de comércio opinava como os protecionistas. Marx, evidentemente, estava de acordo com o primeiro ponto de vista, mas não com o segundo. Felizmente. A Europa fornecia bastante material para outros temas.

Na primavera de 1853, os acontecimentos europeus se precipitaram, ainda que convenha destacar, que não se tratou de produto da pressão das camadas populares. Vários grandes Estados, como Rússia, França e Inglaterra, interessados pela conservação da ordem, começaram de forma repentina a digladiar-se entre si. É essa uma característica das classes e nações dominantes: quando se sentem livres do movimento revolucionário, surgem as desavenças.

A rivalidade que existia entre Inglaterra, França e Rússia, antes de 1848, circunstancialmente convertida em aliança para combater a revolução, voltava a se manifestar. A Rússia czarista considerou que havia chegado o momento de tirar da Turquia uma parte dos seus domínios, como forma de recompensa por sua ajuda na restauração da "ordem" na Europa Ocidental. O partido da guerra se reforçava na corte de Nicolau I. Esperava-se que a França não estaria em condições de opor resistência e a Inglaterra, com seu governo "tory", não romperia o amistoso acordo com os russos.

Assim, foi levantada uma questão a propósito das chaves do Santo Sepulcro; na realidade, pela possessão dos Dardanelos.

Transcorridos alguns meses, a situação se agravou de tal modo que França e Alemanha, ainda que relutantemente, pois presumiam que a guerra não conduziria a nenhum lugar, entraram em conflito com a Rússia. A Guerra da Crimeia, colocou o problema do Oriente em toda sua amplitude. Marx e Engels tiveram então a possibilidade de trabalhar na América, já que não era possível fazê-lo na Europa, com o interessante tema proporcionado pelos recentes acontecimentos. Ambos se felicitavam por esta guerra, uma vez que eram as três principais potências da contrarrevolução europeia que se destruíam mutuamente. E quando os ladrões se desentendem entre si, os honrados saem ganhando. A partir deste ponto de vista, Marx e Engels analisavam esta guerra, mas ainda assim deveriam determinar qual posição a ser adotada a respeito de cada um dos países beligerantes.

Julgo necessário deter-me um pouco neste ponto, porque ao decidir a tática frente as partes em conflito, que tanta importância tiveram em nossas revoluções e, sobretudo na última, nos referimos constantemente a posição que seguiram Marx e Engels em 1853. Entre nós, geralmente se considera que diante da Guerra da Crimeia, Marx e Engels imediatamente tomaram partido em favor da Turquia, contra a Rússia. Desta forma, atribuíam enorme importância ao czarismo russo, sustentação da reação europeia e, por conseguinte, atribuíam a guerra contra a Rússia, considerando-a como um fator suscetível de desenvolver a energia revolucionária na própria Alemanha. Deviam, pois, aclamar a guerra contra a Rússia. Nos artigos que escreviam em comum, dividindo as funções — Engels redigia especialmente os assuntos militares e Marx os diplomáticos e econômicos —, a Rússia era criticada sem piedade. A partir disso se pode inferir que Marx e Engels tomaram partido da civilização e do progresso contra a Rússia, que se levantaram contra esta para se colocar ao lado dos ingleses e franceses cultos e civilizados? Creio que seria um erro crasso. Em seus artigos, os dois amigos criticavam tanto a França e Inglaterra como a Rússia, e desmascaravam todas as tentativas de Napoleão e Palmerston de apresentar essa guerra como a da civilização e do progresso contra a barbárie asiática. Outro erro, no qual incorre a maior parte das pessoas, é acreditar que no que concerne à Turquia, pretexto da guerra, Marx era seu partidário. Não esqueciam Marx e Engels que a Turquia era um país ainda mais asiático e bárbaro que a Rússia. Suas críticas, pois, não perdoavam a nenhum dos beligerantes. Inspirados em um só critério, examinavam cada acontecimento segundo a influência que tivera na aceleração da revolução. A partir deste ponto de vista, criticavam a conduta da França e da Inglaterra que, como disse, empreenderam a guerra contra sua própria vontade, forçadas pela enérgica negativa de Nicolau I a qualquer tipo de acordo. O temor das classes dirigentes estava justificado: a guerra se prolongou mais do que se pensava, pois, iniciada em 1853, não terminou até 1856, com a paz de Paris. Na Inglaterra e na França, provocou uma viva efervescência entre os operários e camponeses, e Napoleão e os dirigentes ingleses se viram obrigados a fazer uma série de concessões e promessas aos povos de seus países. A guerra terminou com a vitória da França, Inglaterra e Turquia. Na Rússia, a guerra havia provado a inferioridade de um país no qual ainda existia a servidão feudal, para a luta contra países capitalistas, e como consequência teve impulso para a realização das grandes reformas e se fez necessário considerar a questão da liberdade dos camponeses.

Faltava, todavia, outro choque para que a Europa adormecida depois da explosão revolucionária de 1848 e 1849, saísse do seu torpor de forma definitiva. Após sua saída do grupo de Willich e Schapper, Marx e Engels declararam que a nova revolução não poderia ser senão a consequência de outro transtorno econômico violento e que, assim como a Revolução de 1848 havia sido resultado da crise de 1847, a nova seria de nova crise.

A expansão econômica iniciada em 1849, havia progredido com tal força durante os anos seguintes que nem a Guerra da Crimeia pode restringi-la. Parecia destinada a prosseguir indefinidamente. Em 1851, Marx e Engels estavam convencidos de que a crise se produziria, no mais tardar, no ano de 1853, pois suas investigações anteriores (principalmente as de Engels), lhes haviam persuadidos de que as crises periódicas que afetam e interromper o desenvolvimento da produção capitalista se repetem a cada 5 ou 7 anos.

Estavam equivocados. O período de desenvolvimento ininterrupto da produção capitalista, com alternativas insignificantes, durou até 1857, ano em que se produziu a crise com um alcance extraordinário, tanto em sua intensidade como em sua extensão.

Isso entusiasmou fortemente a Marx, ainda que tenha gerado consequências desagradáveis para ele. A procura de sua colaboração no New York Tribune não era grande: no princípio recebia por cada artigo o equivalente a dez rublos de ouro, e logo a remuneração se elevou a quinze. Contudo, em comparação aos primeiros anos de sua vida de emigrado em Londres, esta remuneração, graças a Engels, que realizava a maior parte do trabalho para os diários estadunidenses, mal lhe permitia satisfazer suas necessidades. Ademais, trabalhava assiduamente em sua grande obra econômica e encontrava ainda tempo para escrever para o órgão central dos cartistas, The People's Paper.

Depois da crise de 1857, a situação piorou novamente. Nos Estados Unidos havia sido afetado enormemente e o New York Tribune se viu na necessidade de reduzir os seus gastos, em detrimento aos correspondentes estrangeiros. Obrigado a buscar qualquer tipo de trabalhos ocasionais, Marx voltou a se endividar consideravelmente, até que em 1859, pode retomar sua colaboração com o New York Tribune, para não a abandonar até 1862.

Porém, se em sua vida pessoal Marx tinha demasiados desgostos, após 1857 podia se sentir feliz como revolucionário. Segundo havia previsto, a nova crise foi a principal causa de uma série de movimentos revolucionários em um grande número de países. Na América, a abolição da escravidão se colocava como um problema imperativo; na Rússia, a supressão da servidão estava na ordem do dia. A Inglaterra precisou fazer grandes esforços para sufocar uma imensa insurreição na Índia oriental; e o ocidente europeu estava em efervescência. A Revolução de 1848 deixou sem solução uma quantidade grande de problemas. A Itália permanecia dividida, com a maior parte das províncias do norte em poder da Áustria, que havia conseguido, com a ajuda das tropas czaristas, dominar a Hungria. A Alemanha seguia formada como um conglomerado de principados e estados muitos desiguais, sob os quais Prússia e Áustria aspiravam, separadamente, estabelecer sua hegemonia.

Em 1858, se manifestou, nos estados da Europa ocidental, um movimento de oposição revolucionária que colocou sobre o tapete todas as questões pendentes. Na Alemanha, foi reforçada a posição em favor da unificação, revivendo a luta entre o partido pangermânico, que aspirava a completa união da Alemanha, inclusa a Áustria, e o partido moderado, que apoiava a Prússia em primeiro plano, pretendendo que todos os estados se unissem ao seu redor, com exclusão da Áustria.

Na Itália se assistiu igualmente o despertar das aspirações nacionais. Na França, país onde a crise de 1857 havia arrastado à falência inúmeros estabelecimentos, com maior prejuízo na indústria têxtil, a oposição pequeno-burguesa se desenvolveu, e as organizações revolucionárias clandestinas, sobretudo, os agrupamentos blanquistas, voltaram novamente à atividade. O movimento operário, em decadência desde a derrota de junho, se reanimou, particularmente nos ramos da construção e do setor imobiliário. Em Moscou, muitas casas de comércio se declararam em estado de falência e o governo se encaminhou, pouco a pouco, até as reformas liberais. Para tentar sanar as dificuldades internas, os governos europeus, o francês à frente, se esforçavam para desviar a atenção popular para a política exterior. Napoleão, a quem o atentado revolucionário do italiano Felice Orsini, em janeiro de 1858, trouxe a recordação de que a polícia não era onipotente, teve que se preocupar com a agitação crescente, e com aquele propósito lançou a palavra de ordem da libertação da Itália do jugo austríaco. Nesse mesmo ano, 1858, celebrou um acordo secreto com Cavour, ministro do rei da Sardenha. Assim como na Alemanha dividida a Prússia era o estado mais forte, na Itália era a Sardenha o reinado mais poderoso e que se converteu no centro em torno do qual se unificou o país. A imprensa oficial clamava ruidosamente pela unidade da Itália, porém o acordo que comprometia a ajuda de Napoleão à Sardenha tinha na realidade outro alcance: não se tratava de unificar a Itália, mas estender as possessões da Sardenha com a prometida anexação da Lombardia e de Veneza. Em compensação, Napoleão, recebia, ademais, a promessa de não tocar as possessões do Papa e do condado de Niza e Saboia. Debatendo-se como estava entre a oposição de esquerda e o partido clerical, não queria se indispor com o Papa e por isso estava contra a verdadeira unificação da Itália. Esperava, por outra parte, satisfazer os partidos franceses com a incorporação dessas novas províncias. Dessa forma, suscitou uma nova questão política que agitou a Europa e, sobretudo, os revolucionários de distintos países.

Que posição deveriam adotar os revolucionários socialistas? Apoiar Napoleão, que desempenhava um papel quase revolucionário sustentando o direito à autodeterminação da Itália, ou colocar-se do lado da Áustria, que representava então o despotismo que oprimia Itália e Hungria? O problema era muito importante e exigia uma tática determinada que nos relembra agora a situação de 1914. Veremos qual a posição assumiram Marx e Engels e qual adotou Lassalle. Até agora não falei de Lassalle, não obstante ter sido um dos primeiros discípulos de Marx e que teve participação nos acontecimentos de 1848. Não me deterei em sua biografia para não fugir do tema.

Após um período no cárcere, Lassalle permaneceu na Alemanha, onde se ocupava com trabalhos científicos e mantinha relações com Marx e Engels. A questão italiana gerou entre ele e os dois amigos uma polêmica de grande interesse, sobretudo porque criava, pode-se assim dizer, duas frações dentro de um mesmo partido. Vejamos qual a divergência. Napoleão III e seus aliados sabiam muito bem preparar a opinião pública. Como durante a Guerra da Crimeia, a França de 18581859 estava inundada de publicações e panfletos que elogiavam o liberalismo de Napoleão e a causa justiceira da Itália. Propagandistas subornados e propagandistas de boa-fé contribuíram nessa campanha. Entre os últimos se encontravam, sobretudo, emigrados húngaros e poloneses, que assim como em anos anteriores consideravam a Guerra da Crimeia como uma ação da civilização e do progresso contra o despotismo asiático e se alistavam em legiões de voluntários nas fileiras de Napoleão e Palmerston, acreditavam agora que Napoleão reascendia a luta pelo progresso e pelo direito das nações de dispor de si mesmas e que era, pois, necessário apoiá-lo. Estes emigrados, alguns dos quais não dispunham do dinheiro de Napoleão, prestaram serviço no exército ítalo-francês.

Contudo, tampouco a Áustria permanecia inativa. Subsidiava por sua parte, outros propagandistas para que demonstrassem que nessa guerra ela defendia o interesse de toda a Alemanha, enquanto que se Napoleão vencesse os austríacos, se apoderaria também do Reno; que não estava em jogo a Itália, mas a Alemanha e que, por conseguinte, a Áustria ao manter sob seu domínio a Itália setentrional, defendia na realidade a Alemanha. Para proteger o Reno, diziam, era necessário ter o Pó. Eis aqui quais eram as duas principais correntes da imprensa europeia de então.

Na Alemanha, a questão se complicava ainda mais pelo desacordo que opunha os partidos pangermânico e alemão moderado; o primeiro queria a unidade de toda a Alemanha, compreendida a Áustria, e estava, em consequência, ao lado desta, enquanto os moderados inclinados à Prússia declaravam que a Áustria deveria desenvolver por si mesma. Entre uma e outra tendência, havia diversas matizes de opinião, porém não modificavam sensivelmente o quadro geral. Que posição então adotaram nessa questão, Marx e Engels por um lado, e Lassalle, por outro? Marx, Engels e Lassalle sustentavam a plataforma do Manifesto Comunista. Os três haviam lutado durante a revolução de 1848 pela formação de uma república alemã que compreendia as regiões alemãs da Áustria. Não podia se suspeitar, pois, que existisse entre eles divergências de juízo. E, ainda assim, o fato é que haviam, e não menos profundas das que dividiram os social-democratas unidos pelo mesmo programa marxista, quando eclodiu a guerra imperialista. Em seus artigos e folhetos, Marx e Engels demonstraram que a Alemanha não precisava da Itália setentrional para defender o Reno e que podia consentir, sem riscos, que a Áustria restituiria à Itália unificada todas as províncias italianas. Sustentavam que tomar partido pela Áustria, ainda que em nome do interesse da Alemanha, não era outra coisa senão um compromisso com o despotismo austríaco.

Mas, por outro lado, — e essa é uma das características da posição —, Marx e Engels criticavam com igual violência a Napoleão, como a empregada contra a reação austríaca e prussiana. O perigo de uma vitória completa de Napoleão lhes parecia menor que o de uma vitória austríaca.

Engels demonstrava que depois de vencer a Áustria, Napoleão atacaria a Alemanha, e apresentava por isso esta tese: Itália e Alemanha deviam unificar-se por suas próprias forças; na questão italiana os revolucionários não devem favorecer nem a Napoleão nem a Áustria e sim ter somente em vista o interesse da revolução proletária.

Não se deve esquecer que nesta ocasião havia ainda um fator de considerável importância. Assinalava Engels, com justeza, que Napoleão não ousaria declarar a guerra contra a Áustria se não tivesse contado com o apoio tácito da Rússia e a segurança de que não interviria em auxílio à aquela. Presumia como muito provável a existência de um tratado a este respeito entre França e Rússia.

No momento da Guerra da Crimeia, a Áustria, como gritavam nossos compatriotas, pagou com ingratidão a generosa e desinteressada ajuda que a Rússia prestou para sufocar a revolução húngara. E, aparentemente, a Rússia não podia deixar de ver com bons olhos o castigo à Áustria por Napoleão. Se este suposto acordo existia e a Rússia acudiria em ajuda à França, toda Alemanha deveria então se aliar a Áustria, mas essa Alemanha seria revolucionária. Assistiria assim, a situação com que contavam Marx e Engels ao eclodir a Revolução de 1848; assistia à guerra da revolução contra a reação, no curso da qual os partidos burgueses que não soubessem captar as classes inferiores cederiam lugar a partidos cada vez mais radicais e preparariam desse modo o terreno para o triunfo do partido revolucionário, o do proletariado.

Tal era o ponto de vista de Marx e Engels. Outro era o de Lassalle, o que pode ser explicado, em parte, pelas diferentes condições objetivas em que se encontravam. Lassalle vivia na Prússia, muito ligado ao seu meio. Marx e Engels residiam na Inglaterra; livres da influência direta do ambiente alemão, julgavam os acontecimentos europeus considerando apenas os interesses da revolução internacional e com a convivência da Alemanha, ou da Prússia.

Para Lassalle, o maior e mais perigoso inimigo da Alemanha não era a França liberal ou a Rússia que se encaminhava para as reformas, mas sim seu inimigo interno: Áustria, pois a considerava a causa principal da dura reação que pesava sobre toda a Alemanha. Ainda que usurpador do poder, Napoleão representasse o liberalismo, o progresso e a civilização, o qual impunha a democracia prussiana o dever de abandonar a Áustria a sua própria sorte, desejando-lhe a derrota na guerra.

Quando se lê os trabalhos de Lassalle em que saúda Napoleão e a Rússia e trata com benevolência o governo prussiano, é necessário recordar, para compreender sua atitude, que se esforçava para falar tal como um democrata prussiano para demonstrar às classes dominantes — os junkers — que não convinha auxiliar a Áustria.

Mas ao sustentar tal posição, emitia ideias fundamentalmente opostas as de Marx e Engels. As divergências que se manifestaram então tomaram uma forma mais aguda. Levado pelo desejo de obter um êxito positivo imediatamente, não como doutrinário, mas como um "político realista", Lassalle usava argumentos que o comprometiam diante do partido governante e julgava favoravelmente a aqueles a quem tentava persuadir para que não colaborassem com a Áustria. As injúrias contra este Estado, a atitude conciliatória ante o governo prussiano e russo, poderiam assim ser atribuídos ao jornalista, sem prejuízo para o partido. Porém, a tática preconizada para que este intervisse praticamente na luta, como se viu depois pela ação de Lassalle, oferecia múltiplos perigos.

A guerra entre França e Áustria terminou de um modo inesperado para ambas as partes. No começo, Áustria, sem outro inimigo senão os italianos, obteve vitórias, porém logo foi derrotada pela coalização das tropas francesas e italianas. Todavia, quando a guerra começou a se popularizar e Napoleão compreendeu que toda Itália realizaria a unidade revolucionária, e que com ela se reuniriam os estados pontifícios, voltou atrás, e aproveitou a mediação de Rússia para encerrar o conflito.

A Sardenha teve de contentar-se com a Lombardia; a Veneza ficou nas mãos da Áustria. Para compensar suas perdas de homens e dinheiro, Napoleão se apropriou de toda Saboia, pátria dos reis da Sardenha, e sem dúvidas, para demonstrar a Garibaldi que dali para frente devia desconfiar das promessas dos monarcas, anexou a cidade natal do célebre revolucionário italiano, Niza, juntamente com o território em suas cercanias. E assim como defendeu Napoleão o direito da Itália, respondendo aos louvores dos liberais imbecis e revolucionários caricatos, e o próprio Lassalle teve que se convencer que nenhuma vantagem havia nos austríacos, a Itália permaneceu tão dividida como anteriormente; somente a Sardenha saiu vitoriosa. Se produziu então um fenômeno "singular e incompreensível" — segundo as palavras de Dobrolyubov — incompreensível para quem crê que a sorte do povo se decide na mesa dos diplomatas. A decepção e a indignação provocadas pela política de Napoleão na Itália suscitaram um forte movimento revolucionário, dirigido por Garibaldi, lutador generoso, mas mal político, e em 1861 toda a Itália, com exceção de Veneza, estava reunida sob o cetro do rei da Sardenha. A realização definitiva da unidade italiana foi assumida logo por aventureiros burgueses e renegados do garibaldismo.

A guerra franco-austríaca obrigou a Marx a travar outra polêmica. Toda a democracia alemã — como já disse — havia tomado posição na disputa entre Napoleão e Áustria. Naquele tempo, o mais eminente e influente dos democratas alemães era Karl Vogt, velho revolucionário forçado a emigrar a Suíça em 1849 e famoso na Europa por seus conhecimentos. Era um dos principais representantes do materialismo naturalista, posição filosófica que os intelectuais burgueses confundem tão frequentemente com o materialismo de Marx e Engels. Muito popular na Rússia até 1860, teve notável influência na formação filosófica de vários pensadores russos. Amigo íntimo de Herzen, que o considerava o mais honesto, sincero e sério dos homens. Gozava de imensa autoridade moral não só entre os democratas alemães, mas também entre a emigração revolucionária internacional e, particularmente, entre as colônias polonesa, italiana e húngara. Sua casa em Genebra era um verdadeiro centro político. Para Napoleão importava muito conquistar Vogt para sua causa, o que conseguiu facilmente graças a vaidade do velho professor. Vogt estava muito vinculado ao irmão de Napoleão, conhecido com o nome de príncipe Plon-Plon, que flertava com o liberalismo e aparecia como protetor da ciência. Dele, Vogt recebeu dinheiro para distribuir aos representantes das diferentes colônias de emigrados.

Quando Vogt interviu resolutamente em favor de Napoleão e Itália, sua decisão produziu entre todos os emigrados revolucionários uma profunda impressão, comparável a que suscitou a intervenção de Plekhanov em favor dos aliados na última guerra.

Entre os desterrados mais ligados a Marx e Engels, havia alguns que, como geralmente ocorria, mantinham relações com a emigração republicana. Um dos representantes desta, Karl Blind, declarou na presença de alguns comunistas que Vogt havia recebido dinheiro de Napoleão, e um jornal de Londres publicou tal afirmação. Quando Wilhelm Liebknecht transmitiu o rumor a Gazeta de Ausburg, da qual era correspondente, Vogt, sentindo-se caluniado levou o assunto aos tribunais, onde ganhou o processo pois a parte adversária não pode apresentar prova alguma. Triunfante, Vogt publicou então um folheto especial dedicado ao processo, e seguro de que Liebknecht nada fazia nem escrevia uma linha sem consultar Marx, fez deste alvo de todos seus ataques, e baseado em antecedentes precisos, segundo afirmava, o acusou de liderar um bando de expropriadores e falsificadores de moeda, dispostos a não retroceder diante de nada. Monstruosas calúnias circularam contra os comunistas. Conhecido ele mesmo por seu amor a comodidade, Vogt acusou Marx de levar uma vida suntuosa às custas dos operários.

Graças ao nome do autor e ao renome do atacado (Marx acabara de publicar a primeira edição de sua Crítica da Economia Política), o libelo de Vogt fez bastante ruído, alcançando grande difusão. Os publicistas burgueses e sobretudo os renegados do socialismo que haviam conhecido pessoalmente Marx, se regozijaram do acontecimento e jogaram bastante lama contra seu adversário. Pessoalmente, Marx considerava que a imprensa tinha o direito de atacar e injuriar a um político. É privilégio — escrevia — de todos aqueles que se entregam a ação pública, políticos, parlamentares, atores, etc., escutar o elogio ou a desaprovação.

Marx não respondia as injúrias pessoais, sobrecarregado como estava delas. Contudo, quando os interesses da causa, do partido, estavam em jogo, respondia diretamente, e então era implacável. Citados no panfleto de Vogt, Lassalle e alguns amigos seus eram partidários de ficar em silêncio, não porque acreditavam em uma só palavra escrita, mas porque viam o considerável prestígio que havia proporcionado a Vogt a vitória no processo. Segundo eles, Liebknecht havia tratado sem cortesia o grande democrata, quem, por sua vez, para defender sua honra, havia incorrido no mesmo excesso. Um novo processo não faria mais do que confirmar seu triunfo, devia a ausência de provas, de maneira que o mais razoável seria apaziguar a opinião pública. Argumentos tão vulgares não haviam de influir, por certo, sobre Marx e seus amigos. Podia deixar sem resposta os ataques pessoais; porém não as calúnias dirigidas contra o partido. Ainda que estivessem convencidos de que Vogt fora subornado, para Marx e seus colaboradores mais próximos a situação era embaraçosa, pois Blind e outro desterrado retiraram suas palavras e Wilhelm Liebknecht aparecia assim, como um vil caluniador. Finalmente, se decidiu responder com uma publicação, já que a parcialidade dos tribunais prussianos havia ficado evidenciada. Marx assumiu a responsabilidade. E aqui chegamos a um ponto de concordância com o falecido Mehring. Segundo este, Marx podia ter se livrado de tantos transtornos e inquietudes sem utilidade para a causa, bastava se negar a intervir na disputa criada por Liebknecht e Vogt. Mas isto teria sido exigir que deixasse de ser ele mesmo.

O erro de Mehring se explica pela circunstância de que este nunca participou de trabalho clandestino, até os últimos anos em que ainda teve um pouco mais de contato direto com a luta revolucionária. Apreciava somente literalmente o incidente com Vogt. Valia a pena — dizia — perder tanto tempo em uma polêmica com Vogt, que já — isto é, ao iniciar Mehring sua carreira literária — não gozava mais de influência política alguma? Por outro lado, se viu obrigado a imprimir o livro contra Vogt no exterior e só uma insignificante quantidade de exemplares chegou à Alemanha.

Advertimos que o número de exemplares não é o mais importante. Senão haveríamos de julgar inútil a obra de Plekhanov, Nossas Divergências, porque no máximo uma dúzia pode chegar a Rússia nos primeiros anos. Mehring deixou passar, sem percebê-la, a discussão fundamental que se desenvolvera no ambiente dos emigrados. Não reparou que nesse incidente aparentemente pessoal, se escondia profundas divergências sobre tática surgidas entre o partido proletário e os partidos burgueses e que, como revelava o exemplo de Lassalle, oscilações danosas se manifestavam até mesmo no partido proletário.

Tampouco notou Mehring que a obra dirigida contra Vogt criticava igualmente todos os argumentos de Lassalle e seus amigos. É pequeno o livro: contém somente quinze folhas, mas do ponto de vista literário é o melhor trabalho de polêmica feito por Marx. Não há na literatura mundial, excetuando o célebre panfleto de Pascal contra os jesuítas, outro libelo que o iguale. No século XVIII apareceram os panfletos de Lessing contra seus adversários na literatura, mas como a maior parte dos que conhecemos, não perseguem outra finalidade do que a literária.

Em Senhor Vogt, Marx não se propõe apenas a demolir política e moralmente um intelectual e homem público respeitado por todo o conjunto da burguesia, ainda que este propósito seja satisfeito brilhantemente. Não tinha contra Vogt mais do que alguns documentos impressos. Os principais depoentes haviam diminuído o assunto ou retirado suas palavras. Marx tomou então todas as obras políticas de Vogt, demonstrou que se tratava de um bonapartista, literal divulgador em suas obras políticas dos argumentos desenvolvidos pelos agentes de Napoleão e concluiu sustentando que Vogt é ou um vulgar papagaio que repete de forma estúpida todas as opiniões bonapartistas, ou um agente pago como os demais publicistas de Napoleão.

Contudo, Marx não se limita a destruir politicamente Vogt. Seu panfleto não é uma simples acusação. Marx emprega contra Vogt outra arma, manejada com maestria: o sarcasmo, a ironia. A medida que se avança na leitura da obra, o leitor vê se desenhar o personagem cômico de Vogt que, de grande intelectual e homem político se transforma em um Falstaff, fanfarrão, charlatão, bon vivant às custas dos demais. Não há uma obra da literatura clássica que Marx não buscara para descobrir uma passagem destinada a acrescentar uma nova característica a esse Falstaff moderno.

Vogt tinha consigo a parte mais influente da democracia burguesa alemã. Por isso, Marx põe em relevo a mesquinhez política dessa democracia e, de passagem, dá alguns golpes aos socialistas, que não podem despojar-se de certo respeito às "classes esclarecidas".

A tentativa de Vogt em caluniar a parte mais radical e a mais necessitada da emigração revolucionária, dá a Marx a oportunidade de pintar o quadro dos partidos burgueses no poder ou na oposição e, em particular, de caracterizar a venalidade da imprensa burguesa, transformada na empresa capitalista especuladora na venda de palavras, como outras empresas exploram a venda de resíduos.

Todavia, na vida de Marx, as pessoas que haviam conhecido bem o período de 1849 a 1859 afirmavam que não há obra que ofereça tanto material para caracterizar os partidos desta época como o livro de Marx contra Vogt.

Certamente o leitor contemporâneo terá a necessidade de um comentário maior para compreendê-lo em todos os detalhes, mas apreciará facilmente a importância política do panfleto.

O próprio Lassalle, quando publicado o livro, reconheceu que Marx havia escrito uma obra magnífica, que suas apreensões eram vãs, que Vogt ficara comprometido como homem político para sempre. Imaginemos, por exemplo, a ressonância que haveria tido na véspera da Revolução Russa de 1905, uma obra literária que tivesse transformado a Miliukov, também intelectual eminente e líder dos cadetes, em um personagem ridículo, em um desacreditado político.

Até 1860, quando começava um novo movimento entre a pequena burguesia e a classe operária, em momentos em que cada partido se esforçava para atrair os elementos pobres das cidades, importava muitíssimo demonstrar que os representantes da democracia proletária não eram intelectualmente inferiores aos mais populares e eminentes da democracia burguesa, mas que, de fato, os superavam. O golpe dado a Vogt foi funesto para o prestígio dos principais líderes da democracia burguesa. Lassalle não pode senão reconhecer que Marx facilitou a luta contra os progressistas por sua influência sobre os operários alemães.

Eis no que consiste a importância histórica desse livro de Marx, que escapou por completo a Mehring. Talvez menos resoluto do que antes de 1914, este, em sua biografia de Marx, volta, ainda assim, a tratar o episódio apenas do ponto de vista literário: agora Mehring suaviza um pouco seu veredito e declara que esse livro "foi mais uma trava do que uma ajuda no grande trabalho de sua vida". Seguramente, se Marx não tivesse sido mais do que um literato e um erudito, teria sido melhor empregar seu tempo somente em obras como O 18 Brumário de Luís Bonaparte e O Capital. Desta forma, também poderíamos dizer que ao invés de polemizar com 300 páginas com uma nulidade como o posterior renegado Tikhonmirov, Plekhanov teria feito melhor ao dar um resumo popular de O Capital ou um manual de marxismo.

Vejamos agora que posição adotou Marx e Engels frente a agitação que Lassalle começou em 1862, quando a democracia burguesa se dividiu ao considerar a tática a ser empregada na luta contra o governo.

Em 1858 o velho rei da Prússia, que havia se destacado por suas "proezas" durante a Revolução de 1848, enlouqueceu definitivamente. Em seguida, foi nomeado um regente, a quem sucedeu no trono o príncipe Guilherme, que havia mandado fuzilar democratas em 1849-1950. Nos primeiros tempos, foi condescendente com o liberalismo, mas logo ocorreu um conflito entre ele e a Câmara dos Deputados em torno da organização do exército. O governo desejava reforçar os efetivos militares e também projetava novos impostos, mas a burguesia liberal reclamava garantias e fiscalização. Este conflito conduziu a discussões sobre tática. Lassalle, que continuava estreitamente ligado aos meios democráticos e progressistas burgueses, reivindicava uma tática mais ousada. Dado que toda constituição é a expressão da correlação efetiva das forças na sociedade, era necessário organizar uma nova força social contra o governo, à frente da qual estava então Bismarck, reacionário inteligente e decidido.

Em uma conferência especial que proferiu aos operários, Lassalle mostrou o que era esta nova força social. A dita conferência, consagrada a expor a "relação da época contemporânea com o pensamento da classe operária", é mais conhecida com o título de Programa Operário. Era, em síntese, um resumo das ideias fundamentais presentes no Manifesto Comunista, consideravelmente adocicadas e adaptadas as condições da legalidade. Porém ao mesmo tempo era, depois do fracasso da Revolução de 1848, a primeira proclamação aberta da necessidade de agrupar a classe operária em uma organização política independente, separado de todos os partidos burgueses, mesmo dos mais democráticos.

Esta intervenção de Lassalle coincidia com o movimento operário independente que estava em desenvolvimento de maneira particularmente intensa na Saxônia, onde no meio proletário a luta estava entre os democratas e os poucos representantes da "velha guarda" do movimento operário de 1848. Estudava-se o projeto de convocatória de um congresso de todos os operários alemães e para tal, se organizou um comitê especial em Leipzig. Convocado a pronunciar-se sobre os objetivos e tarefas do movimento operário, Lassalle apresentou seu programa em uma "carta aberta" dirigida ao mencionado comitê. Criticando violentamente o programa do partido dos progressistas burgueses e as medidas que este propunha para remediar a miséria dos operários, Lassalle mostrava como é imprescindível a organização do partido da classe operária. A reivindicação política capital, que há de se concentrar todas as forças para a obtenção, seria o sufrágio universal. Quanto ao programa econômico, Lassalle, apoiando-se na "lei de ferro", demonstrava que é impossível elevar o salário sobre um mínimo determinado. Daí se origina a recomendação para organização de sociedades de produção com a ajuda de crédito aberto pelo Estado.

Evidentemente, Marx não podia aprovar semelhante plano. Em vão Lassalle se esforçou para ganhá-lo para esta causa. Houve entre ambos outros motivos de desacordo, que não se manifestaram claramente até alguns meses anteriores, quando Lassalle, na ânsia de alcançar de imediato um êxito prático importante, se entusiasmou com a "política real" e em sua luta contra o partido progressista foi demasiadamente longe, chegando até a flertar com o governo.

De qualquer modo, é indubitável — o próprio Marx reconhece — que foi Lassalle quem, depois do longo período de reação que vai de 1849 a 1862, levantou o ensino operário na Alemanha, tornando-se o primeiro organizador do partido operário alemão. Esse é seu mérito inegável. Mas nesse trabalho intensivo, ainda que de curta duração (menos de dois anos), realizado por Lassalle em matéria de organização e de política, se apresentou defeitos essenciais de tal natureza ainda mais prejudicial do que seu programa insuficiente, o que o afastou de Marx e Engels.

Era evidente que Lassalle, longe de destacar a ligação da "União Operária Geral Alemã", por ele fundada, com o antigo movimento comunista, a negava de forma enérgica. Não obstante tomasse empréstimos das ideias fundamentais do Manifesto Comunista e outras obras de Marx, evitava cuidadosamente fazer referência à fonte original. Somente em uma de suas últimas obras citou Marx, e não como revolucionário comunista, mas como economista.

Lassalle justificava sua conduta por considerações táticas. Não queria assustar as massas ainda pouco conscientes, para as quais era necessário emancipar da tutela espiritual dos progressistas, quem continuamente apresentavam o terrível espectro do comunismo. Lassalle era extremamente vaidoso e também apreciava a pompa, a sensação e a reivindicação, que impressionavam tão fortemente as massas pouco adiantadas e ao mesmo tempo repugnavam aos operários conscientes. Gostava que o apresentassem como o criador do movimento operário alemão. Mas tudo isso precisamente o distanciava não só de Marx e Engels, mas também dos veteranos do antigo movimento revolucionário. Destes últimos, unicamente os velhos partidários de Weitling e os adversários de Marx uniram-se a ele. Transcorreram alguns anos para que os operários alemães compreendessem que seu movimento não havia começado apenas com Lassalle. E o que não entende Mehring é que Marx e seus amigos protestavam contra esse desejo de renegar toda filiação com o primeiro movimento revolucionário clandestino. Este desejo de não se comprometer por um vínculo com o velho partido ilegal se explicava pela exagerada propensão de Lassalle para a "política dos realistas".

Vejamos agora o segundo ponto de discordância: a questão sobre o sufrágio universal, reivindicação colocada já pelos cartistas e que Marx e Engels também haviam defendido. Mas estes não podiam conceder a importância excessiva que atribuía Lassalle a esta questão e tampouco aprovar a tese que ele sustentava. Para Lassalle, o sufrágio universal era, em certa medida, um meio milagroso que, sem outra modificação no regime político e econômico, bastaria para dar imediatamente o poder à classe operária. Em seus escritos afirmava, ingenuamente, que imediatamente depois da conquista do sufrágio universal os operários obteriam no Parlamento cerca de 90% das cadeiras. Da mesma maneira, os narodovoltsy russos acreditavam que na Assembleia Constituinte que seria convocada depois de uma série de atentados eficazes, os camponeses conquistariam uma maioria esmagadora, dado que constituíam a maioria da população. Lassalle não compreendia que faltava ainda uma série de condições muito importantes para fazer do sufrágio universal, então engano das massas populares, o instrumento de sua educação de classe.

Não menos profunda era também a divergência sobre as associações de produção. Para Marx e Engels, estas não passavam de um meio secundário, de escassa importância, úteis sobretudo para mostrar que o empresário ou o capitalista não é um fator absolutamente necessário para a produção. Mas ver nas associações de produção a maneira de apoderar-se progressivamente dos meios sociais de produção era esquecer que para isto seria necessário antes de tudo tomar o poder político, a fim de realizar em seguida, como havia sido dito no Manifesto, uma série de medidas apropriadas.

Marx e Engels tinham uma concepção completamente distinta da de Lassalle quanto a função dos sindicatos. Exagerando a importância das associações de produção, Lassalle considerava inútil a organização daqueles, voltando assim às opiniões dos utópicos, as que Marx havia feito a crítica definitiva no Miséria da Filosofia.

Também não menos profundas e praticamente mais importantes ainda eram as divergências no domínio da tática. Não temos razão alguma para acusar Marx, como o fez Mehring, de ter feito uma supervalorização na análise sobre a importância dos progressistas, e assim posto demasiadas esperanças na burguesia.

Já li em minha última conferência a caracterização que Marx deu à burguesia prussiana baseado na experiência da Revolução de 1848. Acabamos de ver que violenta crítica fez à democracia burguesa em sua polêmica com Vogt. Desta forma, não se poderia afirmar que Marx, desvinculado de sua pátria, acreditava no caráter progressista da burguesia prussiana, enquanto Lassalle, conhecendo-a melhor, estava já desenganado. O desacordo estava na tática a adotar diante desta burguesia. Durante a guerra entre as potências capitalistas, nesta luta entre a burguesia e Bismarck, era necessário encontrar, criar uma tática que não convertesse o socialismo em servidor de uma das partes beligerantes. A circunstância requeria uma firmeza singular e uma extrema prudência.

Bem, em sua luta contra os progressistas prussianos, Lassalle se esqueceu de que existia um feudalismo prussiano, uma casta de "junkers", que não era menos hostil aos operários do que a própria burguesia, mas não sabia manter-se nos limites necessários e constantemente comprometia sua causa brindando cumprimentos às autoridades.

Lassalle não se detinha nem diante de inadmissíveis compromissos. Assim, por exemplo, aos operários que haviam sido presos em uma cidade, lhes recomendou dirigir um apelo a Bismarck, que — dizia — para contrariar aos liberais, seguramente lhes daria a liberdade. Os operários se negaram a seguir tal estranho conselho de Lassalle. Se considerarmos os discursos deste, em particular, os do primeiro semestre de 1864, encontraremos neles muitos erros deste gênero. Não falarei das entrevistas que Lassalle teve com Bismarck, sem o conhecimento da organização operária, com risco de ocasionar deste modo um dano irreparável em sua reputação política e a causa que servia. Para tomar um exemplo da vida russa, poderia se criticar implacavelmente a Miliukov, porém aquela foi uma falta, se quiser um crime mais imperdoável que o de implorar aos Stolypin e os Gorémykin.

Tais eram as divergências que impediram Marx e Engels apoiar com a autoridade dos seus nomes a agitação de Lassalle. Mas há de se notar que não obstante a negação do apoio, evitaram intervir publicamente contra ele e aconselhavam nesse sentido, todos seus camaradas na Alemanha como, por exemplo, Liebknecht. Enquanto Lassalle, que estimava muito a neutralidade de Marx e Engels, seguia na defesa de sua ação, Liebknecht e os outros camaradas de Berlim e das províncias renanas incitavam a Marx para intervir contra a equivocada tática de Lassalle. Muito provavelmente haveria chegado a uma ruptura aberta, se Lassalle não tivesse sido morto em um duelo em 30 de agosto de 1864. Quatro semanas depois deste acontecimento, em 28 de setembro, foi fundada a Primeira Internacional, que proporcionou a Marx a possibilidade de voltar ao trabalho revolucionário direto, desta vez em uma escala internacional. Dada a considerável importância da história da Primeira Internacional e o papel eminente em que nela desempenhou Marx, a dedicarei duas conferências.


Inclusão: 15/11/2019