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O FIM DO SPINOLISMO?
1. O Movimento das Forças Armadas abriu em 25 de Abril de 1974 um processo que não se tem esgotado nem nas tentativas direitistas de travarem toda a dinâmica criada pela movimentação de massas dos primeiros tempos a seguir à derrocada do fascismo nem no cumprimento escrupuloso e democrático do Programa do M. F. A.
A luta política em Portugal tem conhecido não apenas a ambiguidade aberta pelas várias interpretações possíveis do texto programático fundamental, mas a resistência, nem sempre bem conseguida, do M. F. A. em ser instrumento ao serviço de um capitalismo «democrático» e à «europeia».
A crise Palma Carlos mais não foi que uma tentativa, felizmente abortada, de golpe de Estado constitucional a que o M. F. A. soube responder com decisão, acabando por comprometer-se num poder democrático que, para se exercer, necessita da repressão à luta dos trabalhadores.
A figura e a legenda democrática do general António de Spínola, altamente comprometido com o ministro «independente» Vieira de Almeida e com o «leader» democrático Sá Carneiro, encontraram na insensatez política de Palma Carlos a eventualidade de uma manobra que acabaria por consolidar o poder do capital financeiro conduzindo, por essa via, à reorganização política das forças direitistas e reaccionárias ao serviço do capitalismo.
O M. F. A. no entanto respondeu ao golpe institucionalizando-se indirectamente, isto é, fazendo preencher alguns ministérios com militares seus representantes.
Vieira de Almeida, Palma Carlos e Sá Carneiro saíram. O general Spínola continuou e continuou a mexer.
À burguesia capitalista abria-se uma perspectiva aliciante: a de utilizar o M. F. A, ainda que indirectamente, como instrumento da repressão aos trabalhadores na mira de cavar um fosso entre estes e as F. A., abrindo assim maior espaço político às manobras do spinolismo que, entretanto, permanecera intacto como força política instalada nos centros vitais do poder.
A TAP, a LISNAVE, o «Jornal do Comércio», a lei sobre o direito à greve são outras tantas medidas a que conduziu quer o compromisso político então obtido, quer o resultado das manobras das forças capitalistas instaladas em Belém mas prolongadas em S. Bento.
O ar «triunfante e vencedor» com que o general Spínola surge a encabeçar, nos fins de Julho, a fase final do processo de descolonização correspondia não apenas à necessidade de recuperar publicamente um prestígio enorme, mas abalado por «zunzuns» que não conseguiram abafar a tempo como também à necessidade de «mascarar» as derrotas que, no terreno muito concreto e decisivo das colónias portuguesas, os movimentos de libertação iam vibrando nas hipóteses de neocolonialismo.
Apesar desta meridiana evidência, aclamou-se o general Spínola, agradeceu-se a iniciativa àquele que, pretendendo ser um novo Bonaparte-De Gaule à escala portuguesa, mais não era, como conta agora o brigadeiro Saraiva de Carvalho, o anfitrião acolhedor da «alta finança». Enfim o oportunismo político, o desejo de não assustar a burguesia incapaz e já medrosa, a miopia política comprometeram, mais uma vez, a necessidade de dizer a verdade e de não mistificar o povo português. Agora como desmontar a legenda do general Spínola?
2. Em Agosto e Setembro, ao mesmo tempo que se militarizava a TAP (quem determinou esta outra miopia política?) e se impedia o saneamento nos Ministérios, nas Forças Armadas, no «Jornal do Comércio» e na LISNAVE, constavam boatos sobre tentativas de militares spinolistas para acabarem com o M. F. A., enviava-se o almirante Rosa Coutinho para Angola, o vice-almirante Vítor Crespo para Moçambique.
Fez-se a independência da Guiné e os acordos de Lusaka, mas internamente nem uma medida antimonopolista se tomou, nem se avançaram concretizações tendentes à melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras. Com a onda dos despedimentos a alastrar cada vez mais, a legislação primitiva às falsas falências e ao abandono das empresas ficava no tinteiro da «consolidação da democracia», enquanto a lei da greve era publicada na completa ignorância do que era realmente a realidade da luta das classes trabalhadoras que não reconheciam nas manobras cupulistas dos dirigentes sindicais, a maioria dos quais não-legitimados por eleições, representatividade suficiente para aconselharem calma e ponderação a quem foi reprimido e barbaramente explorado durante 48 anos.
Entretanto, e perante isto, a reacção e a burguesia capitalista organizava-se: campanha anticomunista e antidemocrática nas «folhas de província», homilias hábeis e astutas dum clero empedernido e guloso de completar a exploração e o embrutecimento, assaltos a bancos, publicação de jornais como o «Tempo Novo», «Tribuna Popular», «Bandarra», etc.
Foi assim criado o clima para a montagem da grande manifestação da que viria a ser conhecida como «maioria silenciosa» que, reforçada pelo discurso do general Spínola de 10 de Setembro que diversos partidos democráticos aplaudiram, ganhou maior e mais amplo campo para as suas certeiras e engenhosas manobras.
3. Não importa agora recordar os aspectos meramente actuais dos acontecimentos ocorridos desde meados de Setembro até ao dia 1 de Outubro em que Spínola renunciou, muito politicamente, à presidência da República.
Importa sim perceber a verdadeira natureza dos acontecimentos que levaram não apenas à renúncia de general António de Spínola, mas também à de três outros generais, porventura mais direitistas e messiânicos, certamente por falta de qualidades e gabarito.
Mas perceber a verdadeira natureza de todos estes acontecimentos que, desembaraçando o poder das pressões mais directas do capital, abriram caminho a soluções económicas e políticas mais progressistas dentro do próprio espírito do Programa do M. F. A., exige a precisão de certas manobras e o encadear de certos factos que não temos, infelizmente, ainda acesso, apesar das revelações corajosas dessa determinação revolucionária que é Otelo Saraiva de Carvalho.
No entanto, parece serem pontos muito assentes os seguintes:
Estes são alguns factos fundamentais até agora apurados mas que de facto não fazem avançar na caracterização e definição dos acontecimentos.
No entanto duas hipóteses explicativas são ainda possíveis:
Hipótese A — Preparava-se de facto uma intentona armada ao serviço da nação e do capitalismo que visava a eliminação da esquerda e a entrega do poder ao general António Spínola. Para tanto existiriam grupos armados de civis, contar-se-ia com a influência em meios militares reaccionários de certos generais fascistas e uma manifestação montada para funcionar como girândola final de apoteose do triunfo sobre as forças de esquerda.
Hipótese B — O general António de Spínola na presença de uma grande manifestação aparentemente spinolista entendeu, quando as barricadas e as movimentações das massas populares se iniciaram, dar o seu próprio golpe falhado em Junho, Julho e Agosto e, liquidando a esquerda, reforçar o seu poder pessoal, construindo um poder autoritário mas democrático para o qual certamente chamaria de novo Sá Carneiro, Vasco Vieira de Almeida e promovendo Freitas do Amaral, Xavier Pintado e outros.
A retenção em Belém de Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho, as ameaças de imposição do «estado de sítio», as movimentações da P. S. P., da G. N. R., o silenciar da R. R. e do R. C. P. acompanhados pela música clássica da Emissora Nacional, parecem ser factos a reforçar esta eventualidade.
As duas hipóteses levariam por processos diferentes a um mesmo resultado: a liquidação da esquerda e o reforço do poder autoritário centrado na figura do ex-Presidente da República.
Aconteceu porém que, desta vez o general Spínola não continuou e saiu, não pela direita baixa como no teatro, mas pelas câmaras da R. T. P., através da sua figura abatida e triste que proferia palavras de repassada angústia e preocupação quanto aos destinos democráticos deste povo, desta economia capitalista, deste processo de descolonização desvirtuado.
4. Mas se o general Spínola saiu do poder todas as condições económicas e sociais que permitiram o spinolismo se mantêm e, a manterem-se, permitirão, como em 1926, o advento triunfante de um novo Messias encarregado pela Providência Divina de salvar Portugal das garras tentaculares do comunismo internacional. Em 1926 o «Messias» surgiu vestido de negro na figura jesuítica e fascista do Dr. Oliveira Salazar; daqui a uns tempos poderá surgir, com a voz por certo menos adocicada, com outras vestes mais luzidias e brilhantes e ligeiramente mais democráticas.
E isto porque o spinolismo é de facto a possibilidade de continuação do poder do capitalismo e sobretudo da dominação do capital financeiro. Porque o spinolismo cresce e fica mais maduro na ausência de claras medidas anticapitalistas que, destruindo de vez as bases económicas, sociais e culturais em que se apoiava o fascismo, permitam liquidar a capacidade de manobra do capital monopolista aliado ao imperialismo. Porque o spinolismo é de facto permitido pela ignorância das massas populares despolitizadas do interior do país às quais é necessário agora criar condições para a reflexão política e para uma vida com mais rasgados horizontes: aqui a informação, o esclarecimento e a discussão deverão acompanhar o início da reforma agrária e a criação, com apoios e ajudas financeiras, de cooperativas agrícolas de produção. E isto porque o spinolismo cresce e ganha campo de manobra se não se travarem os despedimentos, se não se fizer pagar ao capitalismo a sua própria crise. Porque de facto o spinolismo é a melhor garantia para a continuação da exploração capitalista.
O spinolismo é, no fundo, um sistema político autoritário que, concebendo uma certa manobra democrática às forças políticas apaziguadoras, é apoiado pelo capitalismo esclarecido que, à custa de novas formas de exploração que incluem desde a racionalização e automação da produção, os anúncios de «neon», os filmes maliciosos, as férias pagas depois de um ano de trabalho esgotante e alienante até aos processos eleitorais ilícitos e sem significado real para as massas trabalhadoras.
5. Os acontecimentos de 28 de Setembro afastaram, qualquer que fosse a sua natureza, um dos mais sérios obstáculos a uma interpretação claramente progressista do Programa do M. F. A., que inclui, como única saída consequente, o acelerar da iniciativa pública, a liquidação das manobras do capital financeiro, a reforma agrária, uma nova política fiscal, o dar corpo institucionalizado à capacidade de iniciativa das massas populares no que se refere a controlo de preços, a saneamento, à luta contra o custo de vida, etc.
Ou se destroem as bases onde o fascismo assentava ou se abre caminho ao general De Gaulle, perdão, ao general Spínola que, não sendo De Gaulle, fundará um regime autoritário, repressivo e que liquidará definitivamente as possibilidades de avanço, através de uma necessária fase de transição, para um socialismo adequado à realidade concreta da sociedade
portuguesa. O fascismo em torno de Spínola é improvável quer porque tal solução não será conveniente às forças capitalistas que o apoiaram, quer porque o tempo, apesar dos desejos do fadista, não volta para trás.