MFA e Revolução Socialista

César Oliveira


CAPITULO III
DEMOCRACIA BURGUESA OU TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO?

PORTUGAL 75 — TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO


Teses para discussão — breve introdução

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MUITAS DIFICULDADES se levantam, nesta época natalícia de congressos, conferências, reuniões de cúpulas partidárias, etc., à discussão pública e fecunda da problemática política portuguesa, nomeadamente no que respeita à construção efectiva (teórica e prática) dos avanços da movimentação real das classes trabalhadoras para o socialismo. Tais dificuldades, se em boa parte resultam das próprias insuficiências da capacidade de análise e perspectivação, derivam também da impossibilidade real de fazer sentar a uma mesa ou perante um auditório membros da esquerda portuguesa (dos movimentos, dos partidos, das correntes de opinião e do próprio M. F. A) para livremente e sem os habituais espartilhos partidários se discutir e reflectir em comum, serena e pacificamente, acerca dos difíceis caminhos da luta revolucionária em Portugal.

Por outro lado, na Televisão, na Rádio e na grande maioria dos órgãos de informação escrita, uma série de obstáculos se costumam levantar à discussão de uma série de problemas (quer tais obstáculos sejam levantados em nome de um pretenso estatuto de neutralidade política, quer por haver pessoas e partidos que têm já prontas todas as respostas e, assim, na prática, apesar das aparentes e tempestuosas lucubrações intelectuais visíveis, nada se discute de fundo. Claro que a culpa é, como sempre, da «longa noite fascista», dos «48 anos de férrea ditadura», da dificuldade «em aprender a viver em democracia», etc.

Assim, venho mais uma vez à liça tentar provocar uma discussão pública, apelar para eventuais contraditores (que serão muitos certamente), propor uma temática para uma discussão colectiva que, segundo parece, não será «apetite» das frustrações de um «intelectual» pequeno burguês (no caso com alguma fachada socialista, mas tem mesmo, no concerto da sociedade portuguesa neste findar de 1974, bastante importância.

Feita esta longa introdução, resta dizer que não tive grandes preocupações de descer a um grande rigor de fundamentação e análise que, de resto, não caberiam agora neste livro.

1. Há uma relação dialéctica entre o desenvolvimento do modo de produção capitalista (das forças produtivas), a consciência de classe e a organização política do proletariado. Esta relação dialéctica não existe abstractamente mas insere-se no processo da luta de classes (burguesia-proletariado) numa dada formação social concreta (no nosso caso a sociedade portuguesa).

A uma prática política revolucionária que vise a emancipação efectiva do proletariado e dos seus aliados históricos e potenciais tácticos (pequena burguesia urbana e rural, p. ex.), não é indiferente nem o nível e as expressões concretas da consciência de classe, nem a extensão e qualidade da organização política revolucionária das classes trabalhadoras. Em termos da relação dialéctica atrás aludida, a estrutura produtiva de uma dada sociedade capitalista, a composição social e o processo de formação do proletariado, a inserção de uma formação social concreta (numa dada fase) no modo de produção capitalista, fase do imperialismo), as expressões e as funções concretas do aparelho de Estado, a memória colectiva do proletariado não são «factores» a desprezar para uma correcta perspectivação da luta revolucionária.

Porém, está longe de haver uma correspondência mecânica entre o desenvolvimento das forças produtivas (instância determinante da superação do próprio capitalismo) e a consciência e organização política de classe; a história do movimento operário e das sociedades contemporâneas têm mostrado que o acelerar do processo revolucionário de superação das contradições plasmadas pela sociedade classista tem muito a ver, em períodos e condições concretas, com factores conjunturais, isto é, momentos de crise económica e política, desenvolvimento da luta ideológica, prática política de classe, propaganda e agitação.

Constituindo o aparelho de Estado, a ideologia, os exércitos, as escolas, a informação, as instituições políticas superstruturas concretas numa dada sociedade onde decorre um processo de luta também concreto, período há em que o político (o superstrutural) pode constituir-se numa sobredeterminação face à instância determinante (i. e. o desenvolvimento das forças produtivas), ou seja, numa dada sociedade poderá haver momentos em que a crise das superstruturas poderá criar condições que permitam uma resolução revolucionária das contradições entre a burguesia e o proletariado qualitativamente mais avançada do que a permitida pelo desenvolvimento das forças produtivas num estádio determinado do seu processo evolutivo. A Rússia de 1917, a China, Cuba em 58/60, a revolução no interior da guerra civil espanhola, são exemplos muito ilustrativos.

Para a luta política revolucionária, tudo está em saber determinar qual a instância fundamental e dominante num dado momento da luta de classes: se a instância económico-social, se a instância política.

Porém, só a teoria revolucionária entendida aqui como sistematização das condições gerais e concretas para a superação revolucionária das contradições de classe, pode clarificar o sentido e a dimensão da luta política e da prática política de classe numa dada sociedade. Teoria revolucionária, prática política colectiva e organização são, todavia, elementos indissociáveis. Só a teoria revolucionária poderá elaborar as perspectivas políticas que façam inserir o avanço revolucionário nas instâncias determinantes do processo da transformação numa sociedade concreta. Ou se privilegia a luta económica e social ou se aproveitam as condições geradas por uma crise nas instâncias superstruturais. Articular um e outro pólo com o privilegiar correcto da instância dominante é função da teoria revolucionária.

2. O 25 de Abril abriu um processo de luta política cujas contradições foram parcialmente resolvidas pelo 28 de Setembro. Se o capital dominante tinha um peso político considerável no período anterior ao 28 de Setembro, viu, a partir desta data, esse peso ser restringido. Entre o bloco social dominante (burguesias capitalistas lideradas pelo capital financeiro) e o poder político não há, neste momento, a correspondência anterior ao 28 de Setembro e muito menos a existente em 24 de Abril.

Há, portanto, e isto para uma evidência claríssima, uma crise política do bloco social dominante na sociedade portuguesa. Se essa crise política corresponde em grande parte ao processo de reconversão do capitalismo no interior desse bloco social dominante, também é certo que o centro de decisão política fundamental (M. F. A.) só parcialmente tem a ver com tal processo de reconversão que, de resto, se insere na crise actual do capitalismo mundial.

Por outro lado, nem o desenvolvimento das forças produtivas em Portugal, nem a consciência de classe, nem a organização revolucionária de classe atingiram um estádio que, mesmo na presença de uma crise económica e social do bloco social dominante, façam da instância económico-social o pólo fundamental da superação das contradições na sociedade classista em Portugal.

Dada a não correspondência estrita entre o poder político e o bloco social dominante, parece evidente que a instância superstrutural (poder político, aparelho de Estado, etc.) é sobredeterminante no processo da luta política revolucionária. Isto é, a transformação nas superstruturas é susceptível de acelerar o processo e a expressão da luta de classe em Portugal, de modo a que avanços qualitativos da luta dos trabalhadores possam exprimir-se.

3. Uma das soluções preconizadas por alguns ou mesmo todos (tudo vai de como se dizem certas coisas) partidos da coligação é a institucionalização da democracia pluralista, o que significa institucionalização da democracia burguesa parlamentar (qualquer que seja o tipo). A democracia pluralista seria assim uma fórmula política que, sem o explicitar claramente, permitiria a reconversão do capitalismo em termos de o adaptar quer à Europa do Mercado Comum quer a uma nova ordem política. Na prática, pois, uma nova forma de continuar a dominação política do do bloco social dominante; apesar de quase todos ou mesmo todos os partidos de coligação proporem estratégias antimonopolistas, esquecem-se de que o capital monopolista, sendo a última fase do processo de desenvolvimento capitalista, poderá encontrar nos «holdings» estatais uma via adequada, se na iniciativa pública não for dado um papel fundamental aos trabalhadores.

Na entanto, a tal democracia pluralista pressupõe uma burguesia capitalista capaz de suportar e absorver no seu próprio processo económico-social-político boa parte das reivindicações de classes trabalhadoras cujo salário mínimo é, agora, de 3300$00.

A burguesia capitalista, tendo tido certa margem de manobra que o imperialismo lhe concedeu, encontra-se hoje altamente dependente (económica, financeira e tecnologicamente) do capital estrangeiro e, como realizou o seu processo de acumulação por intermédio da sobre-exploração dos trabalhadores e da repressão sistemática, não pode encontrar nos quadros da democracia burguesa típica (esta é sempre pluralista) solução para a sua própria crise.

Admitindo que o PPD e o CDS são as principais forças políticas interessadas no processo de reconversão do capitalismo português e que poderiam ganhar as duas próximas eleições, algumas questões subsistem. O que fariam os sindicatos? E a Intersindical? E os estudantes? E os camponeses organizados do Alentejo e do Ribatejo? E o M. F. A.?

Parece que só a repressão poderia permitir a hegemonia política daqueles partidos e, assim, lá ia a democracia pluralista por água abaixo. Nem o PPD, nem o CDS, podem ser Governo viável sem grande repressão às lutas e organização dos trabalhadores.

Parece pois que, perante a força social dos trabalhadores, perante a crise económica do bloco social dominante, perante a dependência da burguesia capitalista, só uma solução autoritária e repressiva de «fachada democrática» pode ser originada pela insistência no projecto democrato-pluralista. Desta solução a fórmulas fascistizantes é um pulo de criança...

4. A revolução socialista a médio prazo só seria possível se fossem realizáveis entre outras três condições fundamentais:

  1. o capitalismo não encontrar saída política nos quadros políticos que o seu próprio processo de desenvolvimento implica;
  2. o imperialismo, em cuja zona de influência se encontra Portugal, se desinteressar da solução política da problemática e da actual crise portuguesa;
  3. ser possível, a muito curto prazo, acelerar o processo de formação de consciência de classe (o que só poderia acontecer na luta contra o capital), e a rápida organização, em termos de uma vanguarda revolucionária autêntica, dos trabalhadores e do proletariado. Exigir-se-ia também a definição de um projecto político revolucionário e socialista que aglutinasse e enquadrasse, embora com subalternidade, a pequena burguesia urbana e rural. O «deslocamento» para a esquerda da pequena burguesia seria condição deste projecto.

Não parece, pela forte influência nas soluções políticas portuguesas do imperialismo, que a segunda condição seja viável, nem parece que o desenvolvimento das forças produtivas em Portugal, porque integradas numa formação social que, ainda que em crise, se não esgotou a si própria, torne exequível a primeira condição. Atente-se também na enorme influência, e de resto grandemente dominante, do PCP nas classes trabalhadoras e do PSP na pequena burguesia, o que vem a impossibilitar a concretização, a curto prazo, da terceira condição, dada a predominância do reformismo.

5. É um facto evidente a crise política em termos de hegemonia no poder político, no aparelho de Estado, na informação, em suma, nas superstruturas do bloco social dominante. O próprio M. F. A., como vanguarda organizada das Forças Armadas, não é linearmente o braço armado do bloco social dominante, o que agrava a crise das classes dominantes sobredeterminante da instância política no actual estádio da luta de classes em Portugal.

Assim, torna-se necessário impedir (como tarefa fundamental) que o bloco social dominante hegemonize a sua dominação nas superstruturas, nomeadamente no poder político, ao mesmo tempo que, no económico-social, se deverá impedir também a «recuperação» da burguesia capitalista no seu processo de reconversão da exploração capitalista sobre os trabalhadores.

Este «impedir global», a todos os níveis portanto, da recuperação burguesa só poderá fazer-se por um confronto permanente quer com o poder político quer com o capital, no terreno fundamental da exploração: a fábrica, a empresa, o campo. Mas esta via, sendo essencialmente construída na negação da ordem social e política existente, conduz, por ausência de perspectivas revolucionárias de saída para a crise política do bloco social dominante e ignorar também a natureza sobredeterminante da instância política, inevitavelmente a soluções autoritárias já referidas. Isto porque não parece que a burguesia dê tempo a que se verifiquem as condições essenciais para a revolução socialista nem para que possa permanecer-se por muito tempo nas actuais condições de crise política, económica e social.

6. A grande questão e porventura a questão essencial a discutir e a resolver é, por conseguinte, esta: sendo sobredeterminante a instância política na actual fase do desenvolvimento das forças produtivas, sendo inviável a revolução socialista, pelo menos a curto e a médio prazo, em que condições e como pode concretizar-se uma fase de transição que, evitando as soluções autoritárias de fachada democrática ou/e fascistizantes, abra de facto perspectivas para a construção do socialismo em Portugal?

Como pode aproveitar-se a crise política do bloco social dominante para criar condições que levem à destruição do capitalismo, à construção do socialismo como etapa para a sociedade sem classes?

Esta fase de transição só poderá realizar-se se envolver o M. F. A. (como um dos centros essenciais do poder político), as formações políticas de esquerda que lutam pelo socialismo e que têm influência real nas massas trabalhadoras e nas pequenas burguesias e se houver garantias de que, no seu decurso, o processo revolucionário se desenvolveria como expressão da movimentação e da capacidade colectiva dos trabalhadores portugueses.

Assim, a fase de transição teria de garantia a coerência de uma estratégia antimonopolista que só é concebível se for também, adequadamente, anticapitalista e a expressão política, ao nível das superstruturas, da movimentação colectiva do proletariado e seus aliados; isto é: a fase de transição para o socialismo teria de implicar o avanço, a cada momento, nas estruturas produtivas e no poder político, da luta dos trabalhadores sob pena de efectivamente não ser transição para o socialismo e se saldar por ser apenas uma nova fase da gestão capitalista.

7. A forma política de garantia desta fase de transição para o socialismo (e aqui a solução será necessária de viabilidade a discutir) será a unidade popular que obviamente incluiria o PCP e o PS mas excederia o PPD, alargando à esquerda o leque das forças políticas.

Ora a experiência trágica da unidade popular chilena e o fracasso histórico das frentes populares obrigará a reflectir com ponderação, esta viabilidade deverá exigir longa e maturada discussão que, dadas as condições contra-relógio da acção política em Portugal, parece dever fazer-se com muita urgência.

No entanto, e isto torna absolutamente original o caso português, mormente enquanto persistir a crise referida, não houve até hoje nenhuma experiência de unidade ou frente popular na presença de três condições que se observam em Portugal e que condicionarão obviamente esta opção política fundamental:

  1. a existência de Forças Armadas, hegemonizadas por um M. F. A. onde, ao que parece, a iniciativa não tem pertencido nem parece que venha a pertencer no imediato das tendências políticas conservadoras ou ao serviço da burguesia. O actual processo de reconversão das Forças Armadas, o papel do M. F. A., em que medida poderia facilitar o triunfo de uma unidade popular.
  2. hegemonia política em parte das superstruturas de forças de esquerda (PCP, PSP, MDP/CDE) e desorganização relativa das forças políticas de direita.
  3. a sociedade portuguesa saiu simultaneamente do fascismo e do colonialismo num período de crise do capitalismo à escala mundial. À crise política originada pela saída pode somar-se a crise das burguesias da Europa mediterrânica e o aproximar de Portugal com o Terceiro Mundo. Como jogam estes factores em termos da vitória de uma unidade popular?

8. Não há período ou fase de transição para o socialismo sem um projecto político revolucionário que perspective desde já as condições concretas da transição, isto é, deverá ser claramente explicitada a hegemonia de uma prática política anticapitalista, no interior da própria fase de transição, como garantia da construção do socialismo e da dinamização da iniciativa anticapitalista das massas populares. Isto exige alterações profundas no aparelho de Estado de modo a abrir aí perspectivas para um movimento de massas e uma política económica e social que não vise o equilíbrio entre o capital e o trabalho.

9. A questão das eleições para a Constituição, na eventual possibilidade do seu adiamento, deverá ser discutida em função da viabilidade desta fase de transição e da viabilidade da unidade popular.

Um projecto de constituição que clarifique, ainda que em termos gerais o significado institucional anticapitalista que exprima, institucionalizadamente, o desenvolvimento da dinâmica das massas populares em movimento e ao mesmo tempo interessando o M. F. A. na transição para o socialismo, deverá constituir uma peça que, por acessória, não deverá, nas actuais condições deixar de ser considerada no processo revolucionário em curso. Como articular correctamente a unidade popular, a transição para o socialismo e a nova Constituição? E as próximas eleições?

Há por certo algumas questões que aparecem confusas e outras ainda extremamente controversas. Em alguns casos foi propositadamente que se deixaram mais interrogações que afirmações; noutros só a discussão colectiva pode fazer avançar a clarificação. O secretismo, a discussão do corredor, a metafísica dos acertos obtidos nos gabinetes sem pública discussão, em nada favorece uma saída progressista para a problemática portuguesa.

Uma coisa parece evidente: sobre a esquerda portuguesa, sobre as forças que lutam pelo socialismo e por uma sociedade sem classes, uma grave responsabilidade cai sobre os seus ombros. Por certo ninguém quererá ser julgado e condenado pela História em virtude de termos preferido agora a divisão à unidade revolucionária, o sectarismo à discussão colectiva, a insinuação torpe e a insídia de batedor, à expressão e discussão pública das divergências de modo a que a unidade na diversidade, mas a unidade com princípios vise uma estratégia revolucionária.


Inclusão: 23/05/2020