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Ao passar à exposição do cristianismo, de sua odiada e desprezada encarnação da positividade filosófica, do despotismo político, encontraremos não somente um tom completamente novo no estilo expositivo – coisa bastante natural —, senão, além disso, um modo de consideração muito mais histórico, ainda que sem dúvida dentro do marco que não podia rebaixar o historicismo do jovem Hegel em seu período de Berna.
Vimos que Hegel ligou estreitamente a antiga grandeza e o heroísmo republicano com seus fundamentos econômicos, concebidos à Rousseau. Entretanto também vimos que a questão da origem de tal sociedade, de tal Estado, não se apresenta nem como tal em Hegel, a Antiguidade é uma imagem desiderativa puramente utópica. Essa ahistoricidade de sua metodologia não é somente uma simples consequência de seu extremado subjetivismo filosófico, pois pudemos observar em alguns detalhes que esse subjetivismo não o impede de modo algum ter uma concepção muito realista de determinadas conexões sociais concretas. Cremos, além disso, que essa ausência de posicionamento histórico pelo que faz à Antiguidade depende a situação econômica e política da atrasada Alemanha. Por ilusório que fosse também, em França o sonho de renovação do republicanismo antigo, esse sonho estava apesar de tudo nesse país em uma estreita e real situação com objetivos reais de uma revolução real e de sua preparação ideológica. A possibilidade e necessidade de por em conexão real esses ideais e ilusões com a realidade social conseguiu por isso mesmo em França um grau mais elevado de historicidade. Entretanto a situação social real pôs na Alemanha na ordem do dia a revolução democrática. Por isso o entusiasmo do jovem Hegel por ela era mais do que ideológico. E por isso também a imagem da realização de seus sonhos, o cúmulo de sua realização, é sempre a farte mais fraca, pálida e incorreta de suas exposições. (Veremos que esta debilidade da filosofia de Hegel subsistirá mesmo sem se modificar durante longo período, e que jamais se superará de todo no curso de seu desenvolvimento.). O período bernense de Hegel não somente é a culminação de seu entusiasmo revolucionário, além disso, e ao mesmo tempo – a consequência da grande distância que existe entre a posição ideológica de objetivos e a real situação social da Alemanha -, a culminação daquele caráter abstrato.
Este caráter abstrato, essa distância em relação às perspectivas do futuro, se reflexa no posicionamento abstrato, em sua ahistoricidade quando se trata de averiguar como se originou aquela imagem ideal das antigas repúblicas na realidade.
Muito diferente é a situação quando se trata da concepção hegeliana do cristianismo neste período. Aqui o posicionamento histórico segue em linha reta ao entusiasmo revolucionário do jovem Hegel. Quanto maior é seu entusiasmo pela vida antiga, quando não vê o contraste entre a mesquinhez miserável do desenvolvimento posterior, quanto mais sofrem o mesmo sob o peso da vida cristã-moderna, tanto mais enérgica, concreta e historicamente teve de posicionar-se o problema: como pode sucumbir uma sociedade tão bela e digna do homem, para dar passagem a um espaço humano miserável? Assim escreve Hegel: “A repressão da religião pagã pela cristã é uma das assombrosas revoluções, a investigação das causas deve ocupar ao historiador que pense. Às grandes revoluções que saltam à vista tem que haver sido precedida uma revolução silenciosa e secreta no espírito da época, a qual não é visível por um olhar, nem, sobretudo, para os contemporâneos, e é tão difícil de compreender como expor com palavras. O desconhecimento destas revoluções do mundo espiritual faz que seu resultado seja assombroso: uma revolução desta natureza, uma revolução na qual uma antiga religião autônoma, é substituída por outra estrangeira, uma revolução que se realiza diretamente no reino do espírito da época. Como pode ser desprezada uma religião que se havia estabelecido desde séculos nos estados, que estava entrelaçada do modo mais íntimo com a constituição política? Como pode extinguir-se a fé em alguns deuses aos quais as cidades e os impérios atribuíam seu nascimento, aos que os povos ofereciam sacrifícios todos os dias, cujas bênçãos invocavam para todos os assuntos, sobre cujo ensino haviam sido vitoriosos os exércitos, aos que haviam honrado pela vitória, aos que se dirigia como uma aura de alegria de suas canções igual à seriedade de suas orações, cujos templos, altares, tesouros e estátuas eram o orgulho das nações, a glória das artes, cuja veneração e cujas festas eram pretextos da alegria universal, como pode despregar-se do tecido da vida humana a fé daqueles deuses, que tão entranhada estava com ele?”(1).
Conhecemos já a básica resposta histórica de Hegel a este problema pela extensa citação que aduzimos antes do estudo bernese sobre A positividade da religião cristã: a causa foi o desenvolvimento da desigualdade das fortunas, desigualdade que, segundo Hegel e segundo seus predecessores franceses e ingleses, acarreta necessariamente a perda da liberdade, o despotismo. Tampouco neste ponto Hegel alcança a concretização histórica de um Gibbon ou um Fergunson, um Montesquieu ou um Rousseau. Assim, pois, quando afirmamos que a temática da origem do cristianismo o jovem Hegel mostra de grande historicismo do que nas antigas repúblicas, isso deve entender-se, naturalmente, somente dentro dos marcos das possibilidades do filósofo naquela época.
Entretanto este espírito histórico do posicionamento do problema se manifesta antes de tudo no fato de que para explicar o domínio do cristianismo Hegel não busca a explicação diretamente na história da origem desta religião, antes na história da decadência dos estados antigos. Hegel parte da necessidade social de uma religião correspondente ao novo estado da decadência da liberdade, correspondente ao despotismo, e explica a vitória do cristianismo pelo fato de que o cristianismo satisfez essas necessidades. “Nessa situação, sem fé em nada sustentável, em nada absoluto, com este costume já de obedecer a uma vontade alheia, a uma legislação estranha, sem pátria, em um estado que não era já objeto de nenhuma alegria (...), nessa situação se ofereceu aos homens uma religião que o bem estava já por si mesma adaptada às necessidades do tempo – pois havia nascido no povo de análoga corrupção e análogo vácuo e deficiência, mesmo tendo outras cores —, ou bem possibilitou aos homens que obtiveram dela aquilo a que podiam aferrar-se com satisfação de suas necessidades”(2).
O primário é, pois, para Hegel a dissolução da antiga liberdade democrática, da antiga livre atividade do povo, por causa da crescente desigualdade das fortunas. À antiga situação corresponde àquela religião não-positiva que não é , em última instancia, o ferro em brasa que move às ações heroicas em uma vida natural, intimamente unida com a natureza. A destruição dessas formas de vida é o processo mais importante que Hegel investiga aqui. Repetidamente diz que a extensão do Império Romano nivelou as diversas nações e aniquilou suas religiões nacionais. Porém em seus estudos posteriores rebaixa também este dado e comprova e afirma a aniquilação das velhas relações do homem com a natureza em conexão com a decadência da República Romana: “Pela instituição do Estado Romano, o qual arrebatou a liberdade de quase toda a terra conhecida, a natureza ficou submetida a uma lei estranha ao homem, e ficou desgarrada da união com ela. A vida da natureza se petrificou; os deuses se converteram em seres criados e servidores de outro. Onde se manifestava o poder natural, o benefício, a grandeza, estavam o coração e o caráter do homem. Teseu não foi herói para os atenienses, somente depois de sua morte (...) Os césares romanos foram divinizados, Apolônio de Tiana fazia milagres. O grande não era já sobrenatural, mas antinatural, contra a natureza, pois a natureza havia deixado de ser divina, e não era já formosa nem livre. Nessa separação da natureza e do divino um homem se apresentou como unificador de ambos, como reconciliador e salvador”(3).
Hegel estuda depois as diversas correntes espirituais no marco da Roma decadente, com objetivo de mostrar nesta fase o caminho que devia levar com necessidade histórica a aceitação da religião cristã. “Após a catástrofe da liberdade romana e grega, quando o homem perdeu o domínio de suas ideias sobre os objetos, cindiu-se o gênio da humanidade. O espírito da multidão corrompida disse aos objetos: sou vosso, toma-me! Se lançou à corrente dos objetos, se deixou arrastar por eles e sucumbiu em suas mudanças”. Seque a isto uma análise das diversas correntes espirituais que se encontraram em oposição a este processo, e Hegel descobre com uma penetração histórica assombrosa para a época que essas correntes, apesar de sua oposição ao curso básico dos acontecimentos, não podiam mudá-lo em nada. Por este dado estrutural explica, por exemplo, que os estoicos romanos tardios se afastaram da vida real. (É característico que neste período o filósofo não se ocupe dos epicúreos, nem dos céticos. O estudo do ceticismo grego chega ao período de Iena a um nível alto de compreensão. Com Epicuro, por outro lado, nunca conseguiu Hegel uma relação correta.) Depois Hegel mostra como o sentimento de impotência levou a admitir a existência de objetos imperceptíveis pelos sentidos, à adoração destes e as correntes trágicas em geral. Depois da qual indica que dessas correntes havia já uma via direta para o cristianismo. E disse para terminar: “A Igreja já desenvolvida reuniu em si ambas as coisas: os desejos dos estoicos e os daqueles de espíritos alquebrados. A Igreja permite ao homem viver em meio ao torvelinho dos objetos e lhe promete ao mesmo tempo levantar-lhe sobre eles por meio de fáceis exercícios, gestos, movimentos dos lábios, etc.”(4).
Assim pois, o ponto essencial que, segundo a concepção de Hegel, havia suscitado em Roma, e em todo mundo romano a necessidade de uma nova religião, necessidade então satisfeita pelo cristianismo, foi à extinção do caráter público e livre da vida republicana, a privatização das manifestações da vida humana. Nessa atmosfera social surge, segundo Hegel, o individualismo no sentido moderno: o indivíduo que se preocupa de suas próprias necessidades estreitas, materiais e no melhor dos casos espirituais, o indivíduo que se sente “átomo” isolado da sociedade; cuja atividade social não é mais do que uma pequena engrenagem de uma máquina gigantesca, nem pode ser outra coisa, máquina cuja totalidade, finalidade e meta o indivíduo não pode nem quer penetrar com o olhar. O moderno individualismo é, pois, segundo Hegel, ao mesmo tempo, um produto da divisão social do trabalho. Em tal sociedade surge a necessidade de uma religião privada, uma religião da vida privada.
Pelos apontamentos de Tubinga sabemos já que o jovem Hegel viu nesse caráter privado o momento decisivo do cristianismo. Diferente das antigas religiões, que sempre se dirigem ao povo inteiro, é característico do cristianismo o fato que se refira ao indivíduo, à salvação, a redenção e bem-aventurança do indivíduo.
Entretanto, Hegel posiciona mesmo neste ponto outra questão histórica. Aquele cristianismo recebido da Roma imperial não é idêntico ao cristianismo originariamente fundado por Jesus, segundo o modo como essa fundação nos foi transmitida por determinadas partes do Novo Testamento.
Esta contraposição é uma antiquíssima questão da história das religiões. Já nas seitas revolucionárias da Idade Média opuseram as doutrinas originárias de Jesus à da Igreja Católica em sua polêmica com esta, e viram no abandono daquelas, a causa da decadência do cristianismo. Essas ideias seguem desempenhando um papel importante entre os partidários de Thomas Münzer, e na ala mais radical dos puritanos na revolução inglesa. Terminada esta termina também a época na qual determinadas doutrinas e narrações do Velho e do Novo Testamento se utilizam como bandeiras ideológicas por parte dos grupos políticos radicais. A preparação da revolução democrático-burguesa em França se orienta cada vez mais resolutamente contra o cristianismo, contra a religião e a Igreja em geral. Porém isso não significa que a contraposição das doutrinas morais de Jesus com a imoralidade da prática antissocial da Igreja deixe de desempenhar um papel na polêmica antieclesiástica do Iluminismo. Inclusive na Revolução Francesa aparece de vez em quando propagandisticamente a ideia do “bom sans-culotte Jesus” utilizada contra os sacerdotes contrarrevolucionários e monarquistas. Na atrasada Alemanha, aonde, como vimos, não pode surgir um materialismo ateu resoluto nem uma luta radical contra a religião, onde inclusive no campo do Iluminismo a “religião nacional” ocupou um lugar ideológico central, se utilizam, como é natural, ideologicamente muitas sentenças e doutrinas de Jesus (Sermão da Montanha, etc.) como elementos daquela “religião racional”.
Também é natural que estas concepções dominantes na Alemanha exerçam determinada influência no jovem Hegel. Este posicionamento alemão contribuirá mesmo, como veremos no capítulo seguinte, para reforçar essencialmente sua perspectiva de desenvolvimento da humanidade – no curso da crise sofrida em Frankfurt – e chegará a uma concepção do fundador do cristianismo como figura trágica da história universal. Em Berna, sua simpatia e empatia em relação a Jesus são mais substancialmente menores, Hegel sente sem dúvida por ele certa simpatia, como fundador de uma doutrina moral pura. Porém, inclusive nesse assunto lhe coloca muito abaixo de Sócrates, como vimos anteriormente. Esta comparação desfavorável para Jesus se desprende organicamente da concepção geral do jovem Hegel. Jesus como mestre coloca a seus discípulos em uma separação da vida em sociedade, em seu isolamento individual, enquanto Sócrates leva de novo a seus discípulos à atividade da vida pública.
Por maior que sejam as diferenças entre a religião de Jesus e o cristianismo posterior, um e outro são religiões privadas: por isso já a primitiva comunidade de discípulos de Jesus tem para o jovem Hegel certo caráter de “positividade”. Isto se expressa já no número dos discípulos de Jesus, no qual o jovem Hegel vê um sinal de feiticismo(5).
A base dessa positividade das doutrinas e da atividade de Jesus se encontra, segundo Hegel no fato de que Jesus se dirige por princípio e sempre ao indivíduo, e ignora por princípio os problemas da sociedade. Isto se exprime precisamente do modo mais claro em seus ataques à riqueza, a desigualdade, etc., nos quais defende opiniões que a primeira vista, deveriam ser simpáticas ao jovem Hegel, porém que este recusa muito coerentemente pelo caráter associal de sua proclamação. Hegel, fala, por exemplo, do seguinte modo acerca do célebre caso do jovem rico: “Mas se queres ser perfeito vende tudo o que tens e dá aos pobres, disse Cristo ao jovem. Esta imagem de perfeição que estabelece Cristo leva em si a prova de como Cristo não considerava em sua instrução, a formação, a perfeição do homem individual, e o pouco que esta instrução pode ampliar-se a uma sociedade maior”.(6)
Com isto chegamos à segunda interrogação histórica que Hegel põe aqui. A necessidade em que se encontra o cristianismo de fazer-se positivo no sentido pejorativo do filósofo alemão consiste em que mandamentos morais que se dirigiam somente ao indivíduo e não tinham outra finalidade do que a perfeição deste como individuo se ampliaram no curso do desenvolvimento da sociedade. Hegel diferencia várias fases desse processo; em primeiro lugar, as doutrinas do próprio Jesus e suas relações com os discípulos imediatos; em segundo lugar, a seita cristã surgida depois de sua execução, em cuja seita vão reforçando-se os traços positivos já presentes em germe no ensino de Jesus, e que, pela unificação intencional moral das primeiras comunidades cristãs, se produz uma seita religiosa de pronunciados traços positivos; em terceiro lugar, por último, a posterior ampliação da doutrina a toda sociedade, a fase do cristianismo como Igreja dominante na qual aquelas forças estranhas e hostis à vida, as forças da positividade, conseguem nociva importância histórica que determina o desenvolvimento inteiro da Idade Média e da Idade Moderna.
Como se vê, o esboço desse processo é incomparavelmente mais histórico que a concepção do jovem Hegel fazia da polis antiga. E é interessante e notável observar que o fundamento deste desenvolvimento histórico é para o jovem Hegel a ideia rousseauniana do efeito qualitativo que tem nas democracias a ampliação quantitativa. Na seção sobre a democracia (O Contrato social, livro III, capítulo IV) diz precisamente Rousseau que a ampliação simplesmente quantitativa de uma democracia é perigosa para seu caráter democrático e pode inclusive ser seu final. É muito característico do jovem Hegel que estas observações de Rousseau, em que este se refere diretamente às democracias antigas, se convertam em nosso filósofo em observações sobre o cristianismo. Com a natural e relevante modificação de acento que consiste em que o motor da decadência não seja, como em Rousseau, uma dialética interna das democracias diretas, mas a ampliação da moral privada, dos mandamentos morais que se referem a indivíduos como tais, a uma sociedade maior. Este aumento da sociedade comporta então, segundo o jovem Hegel, diversas formas qualitativas de desenvolvimento da positividade, em correspondência com as dimensões do aumento quantitativo. (Aqui pode, pois, assinalar a primeira forma, mesmo muito primitiva, inconsciente e esquemática, da passagem da quantidade à qualidade em Hegel. E será interessante indicar, que a ideia rousseauniana, mesmo generalizada e modificada, reaparece explicitamente em Hegel mais tarde, a propósito de assuntos estatais e constitucionais, por exemplo, na Enciclopédia, parágrafo 108, Apêndice).
Hegel parte, pois, do fato de que os terríveis aspectos posteriormente manifestados no cristianismo “estão já contidos em seu primeiro e incompleto esboço, e foram depois utilizados e ampliados pela ânsia de domínio e pela hipocrisia”. E depois acrescenta generalizando: a história da religião cristã “nos acrescenta um novo exemplo aos muitos do que temos de que as instituições, as leis de uma sociedade pequena em que cada cidadão tem a liberdade de ser ou não membro dela, deixam sempre de ser adequadas quando se estendem a uma grande sociedade, e não podem subsistir com a liberdade civil”(7).
Hegel analisa então com grande detalhe, as modificações sofridas pelas doutrinas e os mandamentos de Jesus seja na comunidade primitiva, seja como mais tarde essas modificações continuaram desenvolvendo-se, até chegar a positividade completa, a hipocrisia e o despotismo da Igreja cristã plena. Este detalhe de análise se explica pela situação da Alemanha da época; sabemos pelas cartas de Hegel o modo como a ortodoxia reacionária havia utilizado para seus fins, por exemplo, a filosofia de Kant. Entretanto, como é natural, tampouco estes estudos de Hegel fazem de seus escritos juvenis como “teológicos”, pois seu conteúdo fundamental é antiteológico; porém a história da degeneração das diversas doutrinas cristãs particulares não tem para nós atualmente interesse. Limitaremos-nos, pois, à exposição do aspecto principal do desenvolvimento histórico. E aqui é necessário sublinhar uma vez mais que o jovem Hegel complementa sempre o motivo da ampliação quantitativa da comunidade cristã com a penetração de diferenças econômicas e sociais nela, isto é, que também aqui desempenha o papel principal o problema básico de Hegel, o problema da desigualdade das riquezas. Com a ampliação da comunidade se perde a íntima união e fraternidade original de seus membros. Assim termina a comunidade de bens inicialmente praticada nas primeiras comunidades, porque os membros procedem agora de camadas sociais material e socialmente diferentes. Aquela primitiva comunidade de bens “não se exige já como condição de sua admissão [do novo membro, G. L.] (...) porém se aceitam por outro lado tanto mais prazerosamente as contribuições voluntárias à caixa da sociedade, meio de comprar a própria parcela de céu (...); com isto ganhou muito o clero nos tempos posteriores, recomendando aos leigos que praticasse essa generosidade em benefício do sacerdócio, enquanto este teimava em dissipar o acumulado, e assim, para enriquecerem-se eles que se apresentavam como pobres e necessitados de ajuda, foram convertendo em mendigos a outra metade de homens”. Do mesmo modo se converte a igualdade primitiva em uma hipocrisia, em um dogma religioso positivo; “certamente, esta teoria se conservou em todo seu tenor, porem acrescentando-se prudente e astutamente que essa igualdade é diante os olhos do céu, pelo que não é preciso levá-la em consideração nesta vida terrena”.
Todos os costumes e cerimônias do cristianismo se fazem deste modo positivos, isto é, se convertem em comédias desumanas que ignoram hipocritamente a verdadeira situação dos homens que participam neles. Assim, por exemplo, foi originalmente a cena, o banquete eucarístico, a despedida que tomou o mestre de seus discípulos; depois, se converteu em festa comemorativa do amado mestre morto, ficando como decisivo problema religioso-moral a igualdade e a fraternidade dos discípulos. “Porém esta confraternização se foi extinguindo à medida que no curso da universalização do cristianismo se produziu em suas fileiras uma desigualdade crescente entre os cristãos, desigualdade que a teoria recusava sem dúvida, mas que permanecia na prática”(8). O cristianismo se desenvolveu em todos os terrenos até converter-se numa Igreja positiva e transforma a inicial moral privada de seu fundador, naquela dogmática hipocrisia que, segundo as concepções do jovem Hegel, é a religião necessária e adequada para a sociedade baseada nos interesses privados, para a sociedade do burguês.
Nada há de mais sólido nessa situação, segundo as concepções do jovem Hegel: a renovação da liberdade antiga e da atividade autônoma do homem na sociedade antiga. Aludimos ao fato de que os interpretes imperialistas do desenvolvimento do jovem Hegel aduzem triunfalmente que este estudou detidamente a História da Igreja, de Mosheim. Entretanto tampouco deste fato é possível obter um argumento a favor do caráter teológico do desenvolvimento juvenil de Hegel. Pois Hegel recusa toda tentativa de superar por vias religiosas cristãs a positividade do cristianismo, considerando-o sem perspectivas. É evidente que surgiram na história das seitas tardias, e não é menos precisamente esse estudo o levou à conclusão indicada negativa. Referindo-se precisamente ao livro de Mosheim, fala Hegel desses homens que aparecem de vez em quando com o intuito de superar a positividade do cristianismo mediante uma volta à sua modalidade original. E diz sobre o destino de tais esforços: “Porém se não guardam sua fé para eles mesmos, se convertem em fundadores de uma seita que ou bem foi reprimida pela Igreja ou bem se ampliou e, na medida em que se afasta de sua fonte, permanece sem outra coisa que as regras de seu fundador; as quais deixaram de ser para seus membros chaves da liberdade e tornaram-se estatutos eclesiásticos; o qual suscitou depois o nascimento de novas seitas (...)”(9). A positividade do cristianismo, com todas suas consequências nocivas é, pois, insuperável enquanto subsista a forma de sociedade humana à que o cristianismo deve sua difusão e seu domínio.
Os textos do jovem Hegel contêm descrições muito detalhadas de como o cristianismo deformou todos os problemas morais e os converteu em hipocrisia e em submissão ao despotismo. Deixaremos à patê todos os estudos de Hegel relativos a questões de moral puramente individual e atenderemos à crítica que dedica à ação do cristianismo no terreno da vida pública, do estado e da história.
As observações mais características e mais agudamente críticas se encontram nos apontamentos de Berna que se relacionam diretamente com as citações que Hegel toma da obra de Gibbon. Diz Hegel neles: “Os primeiros cristãos falaram em sua religião, consolo e esperança em retribuição futura para si e de castigo para seus inimigos – seus opressores, que eram adoradores de ídolos -, porém o servo de um monastério ou um general o súdito de um Estado despótico não pode depois apelar para vingança contra o prelado o proprietário que abusam do suor dos pobres, não pode convocar sua religião como vingança porque o que oprime ouve as mesmas missas que ele, ou inclusive as reza, etc.: entretanto esse súdito ou servo cristão encontrou em sua religião mecânica tanto consolo, quanto indenização da perda de seus direitos humanos, que chegou a perder em sua animalidade o sentido de sua humanidade (...)
Sob os imperadores romanos a religião cristã não foi capaz de por oposição à decadência daquela virtude, à opressão da liberdade e dos direitos dos romanos, à tirania e a crueldade dos governantes, à decadência do gênio de todas as artes e todas as ciências sérias, nem foi capaz de dar nova vida ao valor fundido, aos ramos secos da virtude nacional e da felicidade nacional, mas que, envenenada e corroída por essa peste geral e convertida, nessa deformada imagem, em servidora e instrumento dos déspotas, converteu em sistema a decadência das artes e ciência, fiz virtude da paciência da covardia com que se contemplava o pisoteamento daquelas formosas flores de humanidade e liberdade, converteu em virtude a obediência ao déspota, se converteu ela em advogada e fogosa cantora dos tremendos crimes do despotismo e de algo ainda pior que os crimes particulares, a saber, do despotismo que absorvia toda força humana vital e destruía com seu oculto veneno de longa ação”(10).
Hegel esboçou essa obscura estampa dos efeitos históricos do cristianismo não só relativo a Roma decadente, mas também para toda a história medieval e moderna. Em outro lugar, falando da eficácia histórica da religião cristã, disse o seguinte: “Quanto pouco foi capaz de levantar-se acima da corrupção de todos os estamentos, da barbaria dos tempos dos grosseiros preconceitos dos povos! Os inimigos da religião cristã que liam com um coração cheio de sensibilidade humana a história das criaturas, do descobrimento da América, do atual tráfico de escravos, e não somente essas brilhantes histórias nas quais a religião cristã desempenhou um papel destacado, mas toda a grande cadeia de podridão dos príncipes e da vergonha das nações, e que ao ler sentiam que as sangrava o coração, para depois ouvir as pretensões dos mestres e servidores da religião pelo que faz a utilidade geral dela e outras declamações parecidas, tinham necessariamente de encher-se de ódio amargo à religião cristã (...)”(11).
De modo parecido trata Hegel os efeitos da religião cristã em todos os períodos da História e em todos os terrenos de sua influência histórica. Por exemplo, sublinha com insistência que precisamente os países em que é mais forte a influência da Igreja - , como por exemplo, o Estado da Igreja ou Nápoles – são politica e socialmente os países mais decadentes da Europa. E em uma ocasião formula a seguinte modo grave a repetida acusação contra a Igreja: “A Igreja ensinou a desprezar como excrementos a liberdade civil e a liberdade política comparadas com os bens celestiais e mesmo com o gozo da vida”(12). E assim o cristianismo produziu durante todo o seu domínio um rebaixamento de toda a humanidade e se converteu no apoio principal do árbitro despótico, da mais sinistra reação. Para o jovem Hegel não se trata aqui de excessos particulares de senhores eclesiásticos ou mundanos. Esses efeitos do cristianismo se desprendem isso sim, segundo ele, de sua mais íntima essência de sua positividade.
Pelas citações anteriores de Hegel nas que o filósofo compara a mesquinhez do cristianismo com a moral heroica dos antigos vimos com clareza suficiente como o cristianismo, como religião que é da vida privada, dos interesses privados, como religião que se dirige aos indivíduos tinha forçosamente que destruir as virtudes superiores dos antigos. O cristianismo produz uma concepção do mundo em que é ridículo todo heroísmo, todo sacrifício do próprio interesse. Para um homem que se preocupa apenas de seu interesse, o sacrifício heroico da vida pelo bem comum tem que parecer ridículo(13). E o jovem Hegel recusa também as mais sutis e espirituais satisfações do individualismo como manifestações de um egoísmo pequeno-burguês. Assim especialmente condena a fé na imortalidade da alma, a fé na eterna bem-aventurança individual. Recordemos ao leitor, as palavras de Hegel sobre o heroísmo dos antigos republicanos, os quais, precisamente porque sua vida se dissolvia plenamente na comunidade republicana, não necessitavam nem buscavam uma imortalidade individual.
O fundamento desse heroísmo era, como sabemos, a atividade autônoma do povo nas antigas repúblicas. Em relação, com as concepções de Hegel a este respeito indicamos que o filósofo imaginava as antigas repúblicas como sociedades sem classes. Em troca, como claramente se depreende das últimas citações, Hegel põe em íntima relação o cristianismo com a estratificação estamental da sociedade, e especialmente considera o clero como estamento definido. Esta divisão estamental – Hegel compara algumas vezes o sacerdócio com os grêmios medievais – se refere nele a todos os interesses materiais e espirituais da sociedade. Já vimos antes como descreve Hegel a transformação do princípio da comunidade de bens em um enriquecimento egoísta dos monastérios: o descreve como um processo histórico necessário. Em outro lugar fala amplamente da ativa independência de um povo ainda não dividido em estamentos e contrapõe a isto o clero cristão como “depositário das lendas” como monopolista das verdades religiosas. Este monopólio também é um meio pelo qual o sacerdócio consegue exercer seu próprio domínio e apoiar o poder mundano. E o fato de que mitos e lendas do cristianismo sejam estranhos aos povos da Europa aumenta para Hegel tanto o poder desse monopólio quanto seu caráter inimigo da liberdade.
Sob o domínio da religião positiva do cristianismo, os homens vivem, pois, em um mundo social que lhe opõe como “dado”, insuperável, plenamente estranho. A grave missão histórica da religião positiva do cristianismo se resume, segundo o jovem Hegel, em quebrar no homem a vontade de ter uma atividade própria, de viver em uma sociedade de homens livres. Por isso Hegel diz, a título de resumo, sobre a função social da religião cristã: “Se mostrava também na divindade que lhe oferecia a religião cristã, mais além da esfera de nosso poder e nossa vontade, entretanto não do nosso implorar e pedir, e por isso a realização de uma ideia moral não poderia ser senão coisa simplesmente desejada (o que é objeto do desejo é que alguém no pode fazer por si mesmo, e espera conseguir sem ação própria) e não poderia ser já coisa querida. Os primeiros difusores da religião cristã suscitaram esperança em tal revolução, uma revolução que deveria realizar um ser divino enquanto que os homens se comportavam com toda passividade; e quando com o passar do tempo desapareceu completamente aquela esperança, os cristãos se contentaram em esperar aquela revolução da totalidade para o Final dos Tempos”(14).
Nesse texto se vê muito claramente que o ódio e desprezo que sente Hegel pela religião positiva, pelo cristianismo, tem sua fonte mais profunda em seu entusiasmo pela revolução. Precisamente porque o jovem Hegel representa a revolução de um modo puramente idealista, como realização da “razão-prática” que ele reinterpretou com sentimento social, o assunto da vontade tem que desempenhar papel decisivo em suas ideias. Como vimos, a vontade é para o jovem Hegel não somente o princípio do prático, senão, ao mesmo tempo, também o absoluto. Tudo depende dessa vontade. A grandeza das antigas repúblicas subsistiu enquanto os homens quiseram livremente. Entretanto ao converter o cristianismo a livre e ativa vontade em passivo e humilde desejo, pode e teve forçosamente que dominar o despotismo do mundo. Sem dúvida, Hegel via motivos sociais e históricos dessa transformação da vontade em simples desejo. Entretanto precisamente porque era um pensador alemão – e na Alemanha (mesmo no caso de que o próprio Hegel houvesse alimentado menos preconceitos e ilusões idealistas) não eram visíveis naquela época forças objetivos que movessem para uma revolução democrática -, sua utópica esperança revolucionária tinha que concentrar-se em uma vontade idealisticamente posta e hipertrofiada.
A religião tem que ser naturalmente o motor central do movimento histórico concebido no marco de tal concepção idealista do mundo. Por isso, a positividade da religião resume-se para o jovem Hegel no obstáculo decisivo à liberdade da humanidade, o momento contra o qual grita, como Voltaire, écrassez l´infâme! Conscientemente resume suas concepções sobre a religião e seu papel histórico do seguinte modo: “Assim o despotismo expulsou dos princípios romanos ao espirito do homem da face da terra; a privação da liberdade obrigou ao homem a cobiçar seu eterno e seu absoluto na divindade; e a miséria produzida por aquela privação o obrigou a esperar e buscar a felicidade no céu. A objetividade da divindade caminhou passo a passo com a corrupção e a escravidão do homem, e a primeira não é propriamente mais do que uma revelação, uma manifestação daquele espírito dos tempos (...) o espírito do tempo se revela na objetividade de seu Deus, quando este (...) ficou situado em um mundo alienado ao nosso, em cujo território não tomávamos parte alguma, no que não podemos construir nem plantar com nosso esforço, senão, no máximo, coisas que fazer por oração ou por feitiçaria, quando o homem foi um Não-Eu e sua divindade outro Não-Eu (...) Nesse período a divindade tinha de deixar de ser algo subjetivo, e reduzir-se plenamente a objeto, e aquela inversão e perversão das máximas morais permaneceu então fácil e consequentemente justificada pela teoria (...) Tal é o sistema de toda Igreja”(15).
Resta-nos ainda por examinar um aspecto da crítica hegeliana da religião cristã, a saber, o assunto da reconciliação com a realidade. Este problema nos interessa sobretudo porque nela se apresenta com especial crueza a oposição entre o jovem Hegel e seu posterior desenvolvimento. Hegel fala desse assunto várias vezes e com as mais duras expressões: “No seio dessa humanidade corrupta que tinha de depreciar-se moralmente contra si (...) surgiu e se aceitou necessariamente a doutrina da corrupção da natureza humana; nessa doutrina (...) satisfazia ao orgulho, ao permiti-lo descarregar da culpa pessoal, e era capaz de dar no próprio sentimento da miséria uma ponta de orgulho; convertia em honra o que é vergonha, santificada e eternizada aquela incapacidade, ao declarar pecado inclusive o crer na possibilidade de uma força sadia”(16). E em outro lugar: “Entretanto quando o cristianismo penetrou na mais corrupta de todas as classes, na classe aristocrática, quando o despotismo envenenou todas as fontes da vida e do ser, a época manifestou toada nulidade de sua essência naquele aspecto novo que exigiram seus conceitos da divindade de Deus e suas polêmicas a respeito; e pode exibir sua miséria tanto mais abertamente quanto que dourava com o nimbo da santidade e cantavam com mais alta honra do homem”(17).
Em outro lugar o jovem Hegel chega a lançar a brincadeira contra a morte de Jesus. Diz ironicamente que o mundo inteiro, segundo a religião positiva, deveria estar cheio de agradecimento à pessoa de Jesus por aquele sacrifício, “como se não houvessem já sacrificado muitos milhões de homens por fins menores, entregando-se com o sorriso nos lábios, e não suando sangue, com alegria, pelo seu rei, por sua pátria, por sua amada: é preciso ver como haveria morto nada menos que pela linhagem humana em geral!”(18). E mais ainda: “Para um povo nessa situação tinha que ser bem-vinda uma religião que, sob o nome de obediência e sofrimento., convertia em virtude suprema o espírito dominante da época, a impotência moral, a desonra dos pisoteados; graças a esta operação os homens puderam contemplar com alegre assombro como o desprezo de outros e o sentimento da própria vergonha se convertiam em tranquilidade e em orgulho”(19).
Documentamos com muitas citações do jovem Hegel para que o conhecedor de suas ideias posteriores possa apreciar toda a distância que separa neste assunto ao jovem filósofo de sua atitude posterior. Sabemos que a “reconciliação” com a realidade será depois, um ponto central da tardia filosofia da história de Hegel, mesmo que o conceito deva, naturalmente, entender-se do modo dialético que expõe Engels em seu Feuerbach. No curso de nossos análises posteriores, quando estudarmos a gênese deste tardio ponto de vista na crise em Frankfurt e depois em Iena, veremos quantas contradições internas contem a atitude do Hegel maduro em relação a realidade histórica. Entretanto o núcleo dialético desta concepção é sempre o reconhecimento da realidade social tal como esta é: e isso ainda que esta realidade não seja naturalmente, mais que um estádio, um momento do desenvolvimento histórico, e têm que transformar-se no curso do desenvolvimento histórico em não-realidade, em não-ser, em algo superado e anulado. Por isso para o Hegel posterior as concepções do mundo tem de apresentar-se como resumos historicamente necessários das épocas no pensamento. Esta concepção tardia pressupõe uma imagem da história na qual um desenvolvimento continuo da dialética leva desde os começos do gênero humano até o presente.
A “reconciliação” é no posterior Hegel uma categoria na que se expressa a independência do curso objetivo da história em relação aos esforços e das valorizações morais do homem ativo naquele processo histórico objetivo. As diversas concepções do mundo, religiões, etecetera, aparecem portanto nessa ligação com resumos mentais de um determinado período histórico. Por isso, recusa consequentemente Hegel a valorização puramente moral das mesmas. O que significa, naturalmente, que não tome atitude alguma diante delas. Porém então, no Hegel maduro, o momento decisivo de cada religião, concepção do mundo, etc., e não como no jovem Hegel a relação das mesmas com a moral eterna e supra histórica. Neste sentido, a “reconciliação” significa um grande passo adiante no desenvolvimento do sentido histórico de Hegel.
Entretanto esse desenvolvimento é muito contraditório. Por outro lado, a aplicação desta categoria de reconciliação significa também uma reconciliação real com as tendências miseráveis e retrógradas do passado e do presente; leva a cortês embelezamento de tias instituições miseráveis e reacionárias em seu presente alemão, e conduz ao abandono de toda luta e de toda crítica real, especialmente face ao cristianismo. O passado histórico-científico superador da mera indignação moral do período de Berna se paga, pois, em Hegel com grandes perdas pelo que faz ao caráter progressista de seu pensamento.
O jovem Hegel não vê ainda nenhum caminho objetivo historicamente necessário que leve ao presente “real”. O presente real é para ele a grande maravilha da Revolução Francesa, a ilusória renovação da antiga liberdade democrática. E entre a autêntica Antiguidade e sua renovação no futuro se encontra o período corrupto e decadente do despotismo, da opressão, da religião positiva. Hegel vê sem dúvida a necessidade histórica com a qual se originou a religião positiva, porém não pode perceber forças históricas reais presentes nela e cuja dialética interna leve a renovação da Antiguidade (É característico que não possuamos nem uma só anotação do jovem Hegel relativa as causas reais da Revolução Francesa).
Esse exacerbado caráter de sua saudade por uma renovação revolucionária da humanidade não permita a sua filosofia da história conseguir um ponto de vista metodologicamente unitário, mostrar realmente e por sua própria dialética o caminho que leva do presente à perspectiva do futuro. Por isso em sua própria perspectiva de futuro a renovação de liberdade antiga, não deixa de ser um postulado abstrato, o qual tem como complemento necessário e orgânico aquele ódio ao cristianismo cujas manifestações acabamos de ver. Este ódio tem sua fonte na ideia que o jovem Hegel faz da liberdade e de outros conceitos morais como categorias eternas e supra históricas. Em sua opinião, o cristianismo conclui precisamente essas eternas verdades da moral, as perverte, coloca o mentiroso nicho da santidade em torno do halo do eternamente recusável. O jovem Hegel descarrega todo seu ódio revolucionário contra essa perversão de conceitos morais.
Seria incorreto qualificar sem mais como progresso em suas concepções o amadurecimento de Hegel. Não há dúvida de que seu desenvolvimento para a maturidade há enormes progressos, e isso precisamente em sua concepção da história. Precisamente, contudo, porque se afastou dos ideais revolucionários de sua juventude pode Hegel converter-se na figura filosófica culminante do idealismo alemão e pode apressar a necessidade do desenvolvimento histórico e a metodologia adequada para a compreensão com toda profundidade e toda a verdade que eram possíveis sobre a base idealista. Entretanto no fato de que esse desenvolvimento, esse amadurecimento filosófico, não haja podido ter lugar senão à custa de uma renuncia aos fins da revolução democrática se expressa em Hegel o trágico caráter do atraso social e econômico da Alemanha. Marx e Engels assinalaram repetidamente que inclusive os maiores alemães da época sucumbiram em sua luta contra a “miséria teutônica”: que inclusive um gigante como Goethe não pode ser mais do que “algumas vezes colossal outras medíocre”(20).
Tampouco Hegel pode evitar este destino. E quando consideramos o posterior desenvolvimento de suas concepções até chegar a grandiosa forma em que apresentou como método unitário a dialética idealista, temos que recordar essa cisão do desenvolvimento alemão geral, o qual fez também de Hegel uma figura “algumas vezes colossal e outras medíocre”.
Notas de rodapé:
(1) Nohl, p. 220. (retornar ao texto)
(2) Ibidem, p. 224. (retornar ao texto)
(3) Rosenkranz, p. 522. (retornar ao texto)
(4) Ibidem, p. 521 e ss. (retornar ao texto)
(5) Nohl, p.33. (retornar ao texto)
(6) Ibidem, p. 360. (retornar ao texto)
(7) Nohl, p. 44. (retornar ao texto)
(8) Nohl, p. 163 e ss. (retornar ao texto)
(9) Nohl, p. 210 e ss. (retornar ao texto)
(10) Ibidem, p.365 e ss. (retornar ao texto)
(11) Nohl, p. 89. (retornar ao texto)
(12) Ibidem, p. 207. (retornar ao texto)
(13) Ibidem, p. 230. (retornar ao texto)
(14) Ibidem , p. 224 (itálico meu G.L.). (retornar ao texto)
(15) Nohl, p. 227 e seguintes. Precisamente aqui, neste lugar decisivo de sua luta central contra o cristianismo, a influência das concepções de George Foster no jovem Hegel é perceptível inclusive no estilo. (retornar ao texto)
(16) Ibidem, p. 225. (retornar ao texto)
(17) Ibidem, p. 46. (retornar ao texto)
(18) Nohl, p. 226. (retornar ao texto)
(19) Ibidem, p. 229. (retornar ao texto)
(20) Engels, Socialismo alemão em Verso e Prosa II, MEGA, I, vol. 6. P 57. Cf. Marx-Engels, Sobre literatura e arte, Berlim 1950, p. 218. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/05/2019 |