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Nas considerações feitas até agora expusemos o âmbito da filosofia da história do jovem Hegel na época estudada. Interessa-nos agora caracterizar com algumas observações a significação filosófica dos conceitos centrais do pensamento de Hegel neste período. Não chegaremos mesmo assim a uma verdadeira crítica destes conceitos hegelianos. Nossa tarefa consiste ainda momentaneamente em seguir o desenvolvimento das concepções de Hegel em suas linhas básicas, até chegar à formalização definitiva e historicamente relevante dessas ideias na Fenomenologia do Espírito. Nesse momento, e não antes, será possível necessário e verdadeiramente produtivo examinar o conteúdo de verdade do estado da dialética alcançado por Hegel, confrontá-lo com a dialética materialista e precisar deste modo à grandeza histórica e os limites filosóficos deste ponto culminante da dialética idealista. Até que chegue esse momento nosso posicionamento permanecerá, até certo ponto encerrado no desenvolvimento do próprio Hegel, isto é, se limitará a tentar estabelecer a importância que tiveram posicionamentos e determinadas soluções para os posteriores e mais perfeitos estados da dialética hegeliana. Não seria certamente difícil submeter a uma detalhada crítica materialista todos os conceitos do período hegeliano considerado até aqui. Mas acontece, por outro lado, que Hegel superou nos seus desenvolvimentos posteriores determinados aspectos adialéticos de seu pensamento, e, por outro lado, que as debilidades idealistas de suas concepções nunca superadas, são em seu núcleo, as mesmas através de todos seus períodos filosóficos. Em ambos os casos, pois, uma crítica filosófica detalhada realizada agora neste momento levaria inevitavelmente repetições mais à frente.
Vimos que o conceito central, histórica e filosoficamente decisivo, com que trabalha Hegel neste período é o conceito de positividade. Na forma da filosofia hegeliana alcançada no período que estudamos, na contraposição da atividade autônoma subjetiva e liberdade por um lado e morta objetividade, positividade, por outro, está contida em germe um problema central da posterior dialética plenamente desenvolvida por Hegel: o problema que mais tarde costuma exprimir Hegel com o termo “alienação”, no qual está contida – segundo as posteriores concepções de Hegel, unitárias e sistemáticas – todo o problema da coisidade ou objetivação no pensamento, na natureza e na história. Pense-se, por exemplo, no fato de que segundo a posterior filosofia de Hegel, toda a natureza deve conceber-se como uma alienação do espírito.
Neste período Hegel não posiciona ainda nenhum problema em sentido epistemológico próprio. Ainda se serve ocasionalmente da terminologia de Fichte, por exemplo, chama de Não-Eu ao homem e ao Deus do cristianismo, isto não significa, como vimos, que se encontre em verdade e simplesmente na teoria fichteana do conhecimento. Hegel utiliza esta expressão fichteana para denominar plástica e pateticamente um estado moral e social da humanidade. Com a mesma liberdade usa as categorias da filosofia kantista. O que lhe interessa neste período – poderia dizer-se quase exclusivamente é a interação da prática social com a ideologia religiosa-moral. E é nisto um estado muito particular do desenvolvimento alcançado pelo pensamento de Hegel que o sujeito desta prática social se conceba, certamente sempre como um sujeito coletivo, sem que jamais pretenda o jovem Hegel esclarecer filosoficamente o ser deste sujeito, determinar precisamente seu conceito. Para todo aquele que conheça o posterior desenvolvimento filosófico de Hegel, saberá que este sujeito volta mais tarde na figura do “Espírito”, e que a coroação de seu sistema, baseado na lógica e na filosofia da natureza, é o percurso que vai do sujeito subjetivo, passando pelo objetivo, até o espírito absoluto. Tal sistemática conceitual não se encontra em Berna nem em Frankfurt. A primeira formulação do processo do espírito aparece na Fenomenologia. Nos estudos de Berna, o interesse direto de Hegel é histórico: quer seguir o destino real desse sujeito coletivo (que é o portador, idealisticamente mistificado, da continuidade do processo histórico) através da história concreta. Uma questão à parte é que o curso histórico assim estudado por Hegel seja uma construção idealista abstrata; mas o fato que o curso dos estudos históricos de Hegel tropece com o conceito de positividade, de objetividade, é da maior importância para todo seu desenvolvimento filosófico posterior.
Pois com este conceito Hegel chega a conceber a objetividade propriamente dita, a independência dos objetos em relação à razão humana, como produto do desenvolvimento da atividade do desenvolvimento da própria razão, como produto da atividade desta. Com isso, toca tanto nas ideias que constituirão a culminação de sua dialética enquanto momento de fixação e consolidação definitiva dos limites idealistas, mais além dos quais jamais se arriscará seu pensamento. Este segundo ponto estará claro evidentemente para todo materialista, e no quarto capítulo aduziremos extensivamente a profunda crítica de Marx a esses limites idealistas da filosofia hegeliana. O primeiro ponto – mesmo sem dúvida em seu indissolúvel relação com as limitações que se seguem do segundo – é de decisiva importância para a gênese da dialética hegeliana. Esse momento contém, certamente, a ideia de que todo o desenvolvimento social, com todas as formas ideológicas que produziu no curso da história, é um produto da própria atividade humana, um modo de manifestação da autoprodução e autorreprodução da sociedade. Com esta concepção dialética da história, o idealismo rebaixa a determinados limites – não menos idealistas – da concepção histórica do materialismo mecanicista. Este se limitou no essencial em considerar, por um lado, as condições naturais constantes de toda sociedade (clima, etc.) e em estudar, como única manifestação da prática humana, aqueles motivos visíveis e tangíveis que determinam a ação dos indivíduos. Engels destacou energicamente esta superioridade da filosofia da história de Hegel – do Hegel maduro, certamente – em relação àquela de seus predecessores: “Por outro lado, a filosofia da história, especialmente como a representa Hegel, que os motivos ostensivos e efetivamente eficazes dos homens em sua ação histórica, não são de modo algum as causas últimas dos acontecimentos históricos, e que por trás daqueles motivos há outras forças motrizes que são necessárias estudar; mas a filosofia da história não busca essas forças na própria história, mas as importa de fora, da ideologia filosófica”(1). Este reconhecimento crítico da filosofia hegeliana da história tem de modificar-se quando se trata do jovem Hegel, no sentido de que neste, as deficiências idealistas, estão ainda mais atrasadas, enquanto que, ao mesmo tempo, não existem nada mais que esboços do posicionamento fecundo da ciência histórica.
Porém esboços existem sem dúvida. Existem, por um lado, no modo como concebe o jovem Hegel sublinha o caráter social das forças motrizes do desenvolvimento histórico (por mais idealisticamente mistificadas que estejam essas forças), e existem também no fato que este filósofo vê na história da liberdade humana o núcleo do processo. Precisamente porque a positividade da religião, mesmo que contenha uma concepção geral da objetividade, é por sua essência um resultado nascido historicamente e que é necessário superar historicamente no futuro, um resultado, pois, do desenvolvimento social, Hegel obtém uma dialética histórica da liberdade, por mais que muito abstrata, muito idealista, e muito construída. O processo histórico é no jovem Hegel do período de Berna uma grande construção triádica: liberdade originária e atividade autônoma da sociedade humana – perda dessa liberdade sob o domínio da positividade – reconquista da liberdade perdida. Salta aos olhos o parentesco desta filosofia da história com as concepções dialético-idealistas de Rousseau.
O processo de perda e reconquista da liberdade se concentra no pensamento do jovem filósofo no problema da religião. O caráter morto, alienado e hostil ao homem, que é próprio da objetividade da positividade, tem para o jovem Hegel sua expressão mais alta na religião cristã; por outro lado, essa religião – apesar de todos os esforços dele para aduzir os fundamentos econômicos e sociais da transformação – é na concepção do filósofo a causa última da indigna e desumana situação da sociedade, da indigna e desumana relação do homem com seu mundo externo. Por isso, para o jovem Hegel sacudir o jugo do despotismo significa, sobretudo, libertar-se daquela positividade, libertar o homem da religião cujos objetos são para os homens ultramundanos, transcendentes. E por isso também pede o jovem filósofo à filosofia que desmascare e aniquile a objetividade transcendente da positividade e que converta toda objetividade em livre subjetividade ativa: “Prescindindo de algumas tentativas anteriores, está reservada, sobretudo em nossos dias a tarefa de reivindicar como propriedade do homem, ao menos em teoria, os tesouros dissipados no céu...”(2).
Nesta e em outras manifestações análogas do jovem Hegel se expressa uma tendência filosófica que tem certo parentesco com a de Feuerbach. Este parentesco já havia sido notado por Rudolf Haym, o investigador hegeliano, na sexta década do século XIX; ele chamou a atenção ao mesmo tempo para uma diferença entre os filósofos, mesmo passando por alto a superioridade do materialismo de Feuerbach sobre Hegel. Afirma Haym: “a verdadeira essência de Deus, disse Hegel, é a essência da perfeita comunidade política”(3). Haym, cujo desenvolvimento filosófico já estava definitivamente completo antes de 1848, que havia vivido a dissolução do hegelianismo e a profunda influência de Feuerbach, tem pelo menos uma ideia da real noção dessas relações filosóficas, e não deseja falseá-las ou deformá-las como fazem os neohegelianos do período imperialista. Mas em sua exposição sublinha somente a ponte forte da filosofia de Hegel, em face de Feuerbach, e passa por cima, como dissemos o reverso materialista deste último, o que haveria alterado completamente o equilíbrio da comparação. Certamente que a critica de Feuerbach à religião tem seus pontos débeis idealistas, agudamente apontados por Engels. Feuerbach, disse Engels, “não quer em absoluto suprimir a religião, senão aperfeiçoá-la e consuma-la. A própria filosofia deve dissolver-se na religião.”(4). Porém esta debilidade idealista de Feuerbach, não deve impedir-nos de ver a superioridade de seu materialismo mecanicista na teoria do conhecimento que mais decisiva influência teve na crítica da religião, mesmo que Feuerbach não fora sempre coerente na aplicação de seus princípios.
Esta superioridade do materialismo se manifesta exatamente a propósito da categoria de positividade, tão importante para o jovem Hegel. Não é casual que haja sido Feuerbach que lançou os ataques aniquiladores críticos contra a posterior concepção de positividade hegeliana, a ideia, más desenvolvida e mais pensada filosoficamente, da “alienação”. O jovem Marx reconheceu sempre os méritos de Feuerbach em relação à crítica do idealismo hegeliano, e recolheu e desenvolveu dialeticamente os elementos valiosos dessa crítica. No capítulo IV falaremos detalhadamente desta questão. Aqui termos de limitar-nos a indicar que em Feuerbach os objetos da natureza se concebem como independentes da consciência humana. Quando, pois, Feuerbach dissolve antropologicamente a ideia de Deus, quando concebe a divindade da religião como algo criado pelo homem a sua imagem, isso não o leva a uma dissolução da objetividade, como no caso de Hegel, mas, ao contrário, a uma confirmação da objetividade real, da independência do mundo externo com relação à consciência humana. Somente sobre a base de tal concepção podem superar-se realmente as representações religiosas, pois somente assim se manifesta claramente sua pretendida objetividade do mundo externo, com a objetividade do correto reflexo mental desse mundo externo, para que apareça a vacuidade dos objetos da religião, sua falsidade, sua real nulidade objetiva. E mesmo que Feuerbach – como nota e critica Engels – não tenha sido capaz de levar coerentemente até o fim sua superação materialista da religião, seu posicionamento contem de qualquer modo um correto ponto de partida sobre como devem dissolver-se filosoficamente as representações religiosas.
O chamado método antropológico de crítica da religião, a prova de que as representações religiosas nada mais são do que projeções mentais, objetivações do que o homem pensa, deseja, sente, etc., sobre si mesmo, não é, portanto, um método correto, mas que se insere como parte de uma crítica materialista da religião. Lenine exprimiu muito claramente esta debilidade, e a exprimiu de um modo pleno de significado: “Por esta razão é muito estreito em filosofia o “princípio antropológico” de Feuerbach e Tchernicheviski”. Tanto o princípio antropológico quanto o naturalismo são preconceitos imprecisos e débeis do que diz o nome materialismo(5)”. Com isto indica e critica Lenine com sua costumeira profundidade as debilidades da filosofia de Furbach, e abre, além disso, uma grande perspectiva crítica do princípio antropológico quando este se apresenta no marco de uma filosofia idealista.
Tal é o caso do jovem Hegel. O erro mais grave de Haym se baseia em que abstrai completamente o princípio antropológico em sua inserção no idealismo ou no materialismo, que esse princípio cobra um significado completamente novo no contexto idealista. Pois para o idealismo não existe objetividade dos objetos do mundo externo e a falsa e fictícia pseudo-objetividde das representações religiosas. Ambas são produtos de um sujeito idealisticamente mistificado, e deste ponto de vista tem pouca relevância que o filósofo idealista parta da consciência real do individuo humano ou de uma consciência mistificada coletiva, ou “geral” ou “sobre-humana”. E se o filósofo idealista deseja conceder uma determinada objetividade aos objetos do mundo externo pelo rodeio de algum expediente sistemático, se vê obrigado a reconhecê-la também às representações religiosas. Inversamente, como, quando no caso do jovem Hegel pelo que faz a religião positiva, quer resolver e dissolver os objetos da religião dissolve ao mesmo tempo a inteira objetividade do mundo e a reduz a alguma “subjetividade criadora”. Este destino caracteriza não somente a filosofia do jovem Hegel, mas o inteiro final da filosofia clássica alemã; Os esforços de Schelling e Hegel para rebaixar o solipsismo místico, o idealismo subjetivo de Fichte, terminam – mesmo em cada um à sua maneira – com a admissão de um sujeito-objeto idêntico e não menos místico, o qual segrega o mundo da objetividade e volta em seguida a absorvê-lo.
Como é natural, este método não está ainda coerentemente desenvolvido no jovem Hegel; mas já está presente como tendência pelo menos. E esta atitude determina os limites e incorreções idealistas de aplicação do princípio antropológico na crítica da religião praticada pelo jovem Hegel. Os pontos de partida de tal concepção crítico-antropológica das representações religiosas são arcaicos. Já se encontram na filosofia grega, e se apresentam muito frequentemente nos escritores iluministas franceses. Quando, pois, o jovem Hegel tenta ver nas representações religiosas de determinados períodos como projeções da historia dos homens, e tentar por essas formas religiosas em intima conexão com os modos de existência, ainda não está dando uma contribuição filosófica original. Ainda mais: o principio antropológico, a crítica antropológica da religião, cobra da visão idealista básica de Hegel, uma versão debilitada claramente inferior à criticada por Lenine, justamente nos materialistas destacados da velha escola. A diferença pode expressar-se brevemente do modo seguinte: apesar de todas as debilidades que pode apresentar o princípio antropológico nos pensadores que são em geral materialistas; há nestes sempre uma relação causal clara e unívoca: são os homens que criam seus deuses (suas representações religiosas). No pensamento de Hegel, por outro lado, apresenta-se uma curiosa e confusa interação. Há, por um lado, pontos rudimentares para o ponto de partida da concepção dos antigos materialistas: a liberdade e independência ativa do povo grego cria o mundo luminoso dos deuses olímpicos; a religião positiva do cristianismo nasceu da humilhação do homem sobre o despotismo de Roma tardia, etc. Mas ao mesmo tempo, se apresenta a relação inversa: os deuses apresentam como atores reais na arena da história do mundo; a liberdade não é só origem dos deuses olímpicos, mas também o presente destes à humanidade; o cristianismo nasce da decadência moral de um povo governado tiranicamente, mas também, ao contrário, a própria tirania é uma consequência da religião cristã.
Hegel nunca superará este claro-escuro de sua filosofia da religião. Não somente na Fenomenologia do espírito, mas também em seus últimos escritos, relativos aos problemas religiosos, continua-se encontrando essa confusa duplicidade de pontos de vista, a qual chega inclusive, no curso do desenvolvimento posterior, a um reconhecimento cada vez mais vigoroso da pseudo-objetividade da religião. Em sua juventude, Hegel quer apaixonadamente destruir a religião cristã. Mas sua luta antirreligiosa tem a debilidade central e insanável de pretender colocar no lugar da cristandade positiva a religião não-positiva dos gregos.
Assim Hegel faz da religião um elemento inseparável da vida humana, em todo o curso da história. A humanidade não se liberta das representações religiosas que acarretam desde as origens e se transformaram ao longo de milênios segundo as mudanças das formações sociais. A história é antes uma história das transformações das religiões, ou então, dito em linguagem coerentemente idealista-objetiva: a história é história das metamorfoses de Deus. Uma vez o idealismo chegou a este ponto de vista - o qual não ocorre mesmo no jovem Hegel senão, tendencial, confusa e incoerentemente -, esta história de Deus se converte necessariamente no momento primário e mais importante da história, e todas as corretas contra-tendências, nascidas da crítica antropológica das representações religiosas, ficam obscurecidas, afastadas no início, pelo peso dominante deste princípio teológico-idealista.
Vemos, pois, que no jovem Hegel começam a ser ativas uma série de tendências idealistas que foram determinantes na postura posterior do sistema hegeliano. Porém este fato não deve ofuscar ou esconder os princípios pelos quais começam também no jovem Hegel as robustas e verazes tendências histórico-dialéticas. Por mais errônea que seja hegeliana daquela confusa interação entre o homem e a divindade não há dúvida que contem um problema real, que deve ser resolvido real e cientificamente pela dialética materialista; é um problema diante do qual foram impotentes Feuerbach e os demais materialistas mecanicistas: o problema da origem histórica e da eficácia das representações religiosas. E não há dúvida – todo leitor atento dos textos do jovem Hegel aduzidos até agora poderá comprová-lo facilmente – de que o jovem Hegel posicionou esse problema e lutou seriamente contra ela, mesmo que como era natural, não lhe foi possível chegar a uma solução satisfatória, nem a um posicionamento de clareza definitiva.
O jovem Marx também posicionou este problema em sua fase idealista, ou seja, na época da sua tese de doutorado, e já então o fez de uma forma insuperavelmente mais clara do que Hegel; contudo, tampouco então soube resolve-lo. Lê-se nas teses de Marx: “As provas da existência de Deus são, por um lado, tautologias vazias - por exemplo, a prova ontológica, que em realidade nada diz mais que o seguinte: ´’o que me represento realmente (realiter) é uma real representação para mim” uma representação que opera sobre mim – e neste sentido possuíram uma existência real todos os deuses, tanto os pagãos como os cristãos. Não dominou realmente o antigo Moloch? Não foi uma real na vida dos gregos o Apolo Délfico? Nesse ponto não decide nada a crítica kantista”.(6) Marx não pode satisfazer satisfatoriamente este problema até que chegou a clara concepção do materialismo dialético. Somente então pode desmascarar com aniquiladora penetração a nulidade de todas as representações religiosas, muito mais resolutamente do que haviam conseguido antes dele os principais materialistas mecanicistas, explicando como o desenvolvimento das forças produtivas e pelas modificações das relações de produção que determina aquele, surgiram em determinados períodos históricos estas ou aquelas representações religiosas, e como estas dominaram a vida mental e afetiva dos homens.
A ideia importante e interessante que há nessas tendências filosoficamente tão confusas do jovem Hegel é o posicionamento da questão da concreta eficácia histórica das religiões. O Iluminismo combateu a religião cristã, e o fez mais radical e inteligentemente do que o jovem Hegel. Porém não pode quase posicionar aquele problema, e menos, naturalmente dar-lhe uma resposta. Nem Feuerbach posicionou o problema seriamente de saber de o porquê o cristianismo ter sido a religião dominante no Ocidente. Ele aceita esse fato enquanto tal, e tenta somente deduzir, o cristianismo partindo da abstrata “essência” de um homem não menos abstrato, “do” homem. Com uma dedução assim não se pode obter de um modo metodologicamente constrito apenas a origem das representações religiosas em geral, de modo algum uma representação determinada, e menos ainda naturalmente, a modificação histórica das mesmas.
Neste ponto se insere a reflexão do jovem Hegel. A observação de Haym que citamos antes tocou aqui no mérito essencial do jovem Hegel: este posicionou o problema da origem das religiões de modo não somente histórico, e inseparável deste, também social. A história é para o jovem filósofo, história da atividade social dos homens. Apesar de primitiva que seja a sua análise social, por ingênuas, ilusórias e construídas as análises socioeconômicas que aplica, apesar de cheias de preconceitos iluministas e kantistas que estejam suas construções (concepção da situação social como consequência do bom ou mau governo, como era para a filosofia iluminista; valorização excessiva da importância social de problemas puramente morais, como era para Kant, etc.) essa concepção representa, apesar de tudo, um passo adiante importante no desenvolvimento da metodologia do estudo da origem e decadência das religiões. Exatamente aqui se aprecia a verdadeira, e exatamente como descreveu Marx em suas Teses sobre Feuerbach, a relação entre o velho materialismo e o idealismo clássico alemão. Pois as explicitações dos momentos sociais na origem e a agonia das religiões alude em Hegel, com exemplar radicalidade, ao “aspecto positivo” sublinhado por Marx. E nossa análise anterior acrescentou também documentação do outro aspecto da caracterização do idealismo dada por Marx, a saber, o fato de que esse “aspecto ativo” não pode ser no idealismo senão uma atividade abstrata e ideológica.
Sublinhamos já uma consequência negativa essencial dessa necessária abstração do idealismo: a incapacidade do jovem Hegel para lutar consequentemente contra a religião. Na dialética, inconsciente da concepção histórica do jovem Hegel há uma tendência segundo a qual somente as religiões positivas são religiões estrito, pelo qual nem a religião grega nem a renovação da mesma que esperava o jovem Hegel são religiões no sentido próprio. A polêmica contra o caráter desumano da religião positiva do cristianismo exige por isso em Hegel um acento antirreligioso, mas enérgico do que o costumeiro. Certo que em Hegel não pode levar até o fim esta tendência, em consequência de seu idealismo. Por isso mesmo não pode deixar de ser a positividade um conceito impreciso e ambíguo. Por um lado é a expressão filosófica da destruição idealista radical de toda objetividade; por outro lado alentam nesse conceito indícios daquele tipo de coisidade social que Marx mais tarde designou com a expressão “feiticismo”. A tendência é sempre no jovem Hegel, como foi dito, um indício obscuro e confuso; inclusive a posterior versão, mais madura, do problema, a concepção da coisidade social como “alienação”, é incapaz de abrir caminho a um posicionamento claro do problema. O motivo disto, como mostramos se encontra no idealismo. Pois o caráter de feitiço da mercadoria em sua “fantasmagórica objetividade”; não pode ser objeto de dedução e exposição por Marx porque o materialismo dialético mostrou já com a maior clareza a objetividade real das coisas, com o que se impede a confusão e difusão das fronteiras que existem entre essa real objetividade e a peseudorealidade feiticista. (Estas reflexões se justificam aqui porque estamos interessados em indicar a oposição filosófica entre materialismo e idealismo; porém é evidente que Hegel, especialmente em sua juventude, não dispunha dos conhecimentos econômicos que permitissem deduzir essas formas enfeitiçadas partindo da concreta estrutura econômica da sociedade).
A importância deste fato não é pequena, de que podemos encontrar no jovem Hegel nada mais do que indícios sumariamente confusos, como que envolvidos em névoa mística, de importantes relações sociais e filosóficas. Trata-se de duas tendências mentais intimamente relacionadas e que desempenharam importante papel no desenvolvimento posterior da estrutura da dialética hegeliana. Estas tendências são: primeira, que a história humana inteira com todas as formas de sociedade que nascem e morrem em seu curso, é um produto da atividade social dos homens. Segunda, que dessa atividade social dos homens nascem algo diverso do que eles imaginavam e propunham com suas ações, que o produto da atividade social dos homens crescem acima deles e alcançam em face de eles como um poder independente, uma objetividade própria. Que se pense como, segundo a concepção de Hegel, o cristianismo chega a ser algo essencialmente diverso do que propunha seu fundador. Porém esta dialética tem como consequência também em todo o desenvolvimento do cristianismo. Resultou de nossas considerações que o conceito hegeliano de positividade não é, segundo a concepção do jovem Hegel, algo que haja penetrado de fora na história humana. Ao contrário, precisamente na dedução desse conceito alcançou o historicismo de Hegel o ponto culminante de suas possibilidades na época, Hegel expôs apaixonadamente como produto de um processo social interno – um processo, sem dúvida, de dissolução e decadência – os aspectos da religião cristã que mais energicamente apresentam a pretensão de ultra humanidade (Deus onipotente, Revelação, milagres, etc.). A positividade, a culminação histórica da inatividade social humana, da aniquilação do homem, surge, segundo a concepção hegeliana, da auto aniquilação do homem, surge, segundo a concepção hegeliana, do desenvolvimento necessário da atividade social dos homens.
Não podemos dar nenhum passo adiante, na análise dessas concepções do jovem Hegel, sem referir, repetidamente às limitações idealistas de sua imagem do mundo. Pois vimos que as tendências corretas contidas nos esboços de Hegel, que apontam a um conhecimento real das conexões sociais fracassam sempre pelo fato de que a concepção da positividade desemboca e transmuta ao final na teoria da objetividade em geral. Como sabemos – e mesmo exporemos detalhadamente no capítulo IV – esta tendência resultou negativamente determinante para toda a dialética hegeliana. Porém não se pode passar por cima, que as grandes tendências da dialética hegeliana, aquelas que apontam para o futuro, nasceram historicamente num entrelaçamento intimo com seus aspectos débeis, ao ponto de que o estudo da gênese histórica dessa dialética tem por tarefa mostrar essa ligação para em seguida esclarecer na crítica. Em nosso caso, o problema consiste em que o jovem Hegel transforma a morta objetividade das religiões positivas em um movimento social, em um produto da atividade social dos homens. Com isto dá o primeiro passo no caminho no final do qual contemplamos a ideia básica do seu método dialético: a transformação de todo ser estático em movimento. Por certo Hegel tem muito caminho por diante até chegar a este final. Pois, em primeiro lugar, suas tendências neste sentido, se limitam no período de Berna, aos problemas sociais. Assim mesmo não há indícios de uma generalização, com a passagem à ideia do movimento em geral, tal como se apresentará em seguida na sua Lógica. E o estudo deste caminho do desenvolvimento hegeliano será neste nosso trabalho muito limitado. Pois tivemos de nos limitar às concepções sociais de Hegel. E exatamente na generalização que citamos desempenha um papel extraordinário grande o estudos das ciências da natureza por Hegel e o aproveitamento de seus resultados filosóficos na época. Somente, pois, um trabalho complementar sobre o desenvolvimento de suas concepções filosófico-naturais pode oferecer-nos uma verdadeira solução do problema histórico.
Porém também dentro do âmbito das categorias sociais está ainda o jovem Hegel muito longe de conseguir um método realmente filosófico partindo de seu esboço de uma conexão dialética da reprodução mental dos objetivos sociais como produtos da atividade humana, de sua dissolução mental em movimento social. O contraste entre os dois períodos estudados por ele é muito rígido e metafísico para permitir essa passagem ao método: no mundo grego, tudo é atividade autônoma e vida pública; no cristianismo, tudo é passividade e vida privada. O mundo do citoyen antigo opõe-se rigidamente ao do burguês moderno. E não pode mesmo se falar de consciente penetração na dialeticidade pela qual a passividade dos homens na era cristã é também uma forma de atividade social. Ainda menos aparece a compreensão de como se entrelaçam contraditoriamente em qualquer sociedade os interesses individuais dos homens e das classes (Hegel fala sempre de “estamentos”) com os interesses públicos. Nos capítulos restantes nos ocuparemos detalhadamente dos progressos da concepção dialética do movimento social que permitiu a Hegel seu conhecimento dos problemas da economia política; também então teremos que registrar as necessárias limitações postas a seu conhecimento. Aqui teremos que limitar-nos a indicar por meio de resumo que seu obscuro esboço da dialética histórico-social não passou de esboço por causa das limitações idealistas gerais de seu pensamento e de sua herança metafísica, ainda não superada.
Mas naquela confusa antecipação havia diversas tendências importantes tanto por seu valor geral científico quanto pelo seu papel no posterior desenvolvimento hegeliano. Trata-se, sobretudo, da ideia de que o fundamento real da vigência de uma religião é sua adequação à situação social da qual se originou ou passou a ser dominante. Hegel supera assim aquelas concepções que não veem na religião senão um consciente engano do povo; tal era a posição ideológica de muitos iluministas. Vimos que rebaixar este ponto de vista não significa no jovem Hegel qualquer tolerância ao cristianismo. O jovem Hegel fala com patética e satírica indignação das diversas formas de superstição e engano, que segundo sua concepção à época, nascem necessariamente da essência do cristianismo. O progresso consiste exatamente no reconhecimento desta necessidade, e em sua concretização sociológica. Assim, por exemplo, Hegel mostra com diversos exemplos como os costumes originais das comunidades cristãs primitivas, nas quais dominava ainda certa fraternidade, certa igualdade social, tinham obrigatoriamente que transformar-se em hipocrisia com a penetração das diferenças sociais e econômicas nelas e com a sanção dada pela Igreja Universal, em seguida a sua constituição, dadas a essas diferenças. E, por outro lado, a argumentação do jovem Hegel se baseia sempre em que mesmo as concepções cristãs são crassamente contraditórias à verdade, a razão e dignidade humana, foram, contudo, exatamente por essa contraditoriedade, adequadas à situação social e moral da época. Por isto, o simples desmascaramento das doutrinas cristãs como engano e hipocrisia, que é no máximo ao que chegam os iluministas, em um solo mais concreto filosófica e socialmente. Também segundo a exposição do jovem Hegel são os homens vítimas do engano do sacerdócio cristão, porém o filosofo pensa, além disso, com mais concreta profundidade, que somente podem ser enganados porque a dissolução da sociedade, em que vivem e o anquilosamento moral devido a essa decomposição exigem precisamente um engano do tipo operado pelo sacerdócio cristão.
Outra tentativa de progredir neste sentido da concretização histórico-social é o conceito desse especial caráter não-objetivo, não-positivo da religião grega, que tão importante papel desempenha nas concepções do jovem Hegel. Certamente que aqui se manifesta de modo mais enérgico o caráter contraditório do subjetivismo da época, e que suas absurdas consequências ficam ainda dissimuladas somente pelo fato de que o jovem filósofo não explicita radical e abertamente todas as consequências filosóficas de sua atitude básica. Apesar de tudo, repito, o contraditório caráter do subjetivismo da época se manifesta neste ponto do modo mais plástico. Estamos pensando, naturalmente, no caráter não-objetivo de todo o mundo grego, na concepção de uma atividade autônoma livre e subjetiva, que não cria os objetos, por assim dizer, mas reservando-se a possibilidade de voltar a anulá-los, objetos, isto é, que podem ser transformados em subjetividade antes que o sujeito possa fixa-los em sua independência e substantividade, objetos que podem ser retro-atraídos sempre à ativa subjetividade do povo.
Esta concepção da subjetividade desempenhará mais tarde um importante papel no sistema hegeliano. Uma das questões capitais dialéticas da Fenomenologia do espírito é, com efeito, a transmutação da substância em sujeito. A concepção juvenil hegeliana do mundo grego contém a primeira semente desta ideia. E isso principalmente em suas aplicações revolucionárias no presente, no sonho da renovação do mundo grego, da atividade autônoma e a liberdade do povo, da não-objetividade do mundo que começa com o período da Revolução Francesa. Traduzida na linguagem da Fenomenologia do espírito, topamos, pois, com o seguinte esquema: período do sujeito ainda não transformado em substância; subjetividade absorvida pela substância (positividade); retrodução da substância ao sujeito de novo desperto. Como é natural, isto não está escrito tão claramente na obra do jovem Hegel quanto na Fenomenologia do espírito, mas isto sublinha as construções históricas daqueles escritos.
Certamente, como veremos nos capítulos seguintes, o desenvolvimento posterior da filosofia hegeliana da história não procede só da direção que ruma ao desenvolvimento metodológico, ao esclarecimento dialético do curso da história, mas também na direção que aponta para a reconstrução deste esquema histórico. Pois, no Hegel posterior a história não começa com esse período grego, e isso no sentido em que (como já ocorre em Frankfurt), ele inclui em sua filosofia, os problemas históricos do Oriente, mas também em um sentido filosófico geral. No Hegel posterior, o curso da historia perde progressivamente o curso que possuía na triada rousseauniana: liberdade, perda dela e sua recuperação. Em seu lugar aparece uma concepção de mundo mais evolucionista da difusão geral da liberdade no curso da história: liberdade só para um (despotismo oriental); liberdade para alguns (Mundo Antigo clássico); liberdade para todos (cristianismo e Idade Moderna). Contudo, seria falso crer que a concepção juvenil de Hegel desapareceu em seguida de sua filosofia sem deixar rastro. Antes, pelo contrário, essa concepção – mesmo sem dúvida de forma muito modificada e desprovida de sentido histórico – subjaz fundamentalmente no sistema, tal como este se apresenta na Enciclopédia. O esquema estrutural básico é aqui o seguinte: lógica (autoatividade do espírito). Filosofia da natureza (alienação do espirito); filosofia do espírito (caminho do espírito para a plena liberdade, para o sujeito-objeto idêntico, como resultado final da filosofia do espírito).
Contudo, inclusive prescindindo destas prolongadas consequências, dessa subconsciência sobrevivente do primeiro esquema, imaturo e não pensado até o fim, do desenvolvimento de Hegel, sua concepção contraditória do mundo grego tem também outras implicações mais concretas e mais importantes historicamente. Na crítica de suas concepções pelo que faz à filosofia da religião aludimos àquelas debilidades da posição hegeliana pelas quais o filósofo, em vez de recusar e combater a religião em geral, opõe à religião positiva uma religião não-positiva.
Esta debilidade da concepção juvenil de Hegel contribuiu poderosamente para a popularidade de seus escritos juvenis no período imperialista. A propósito do qual é preciso observar, naturalmente, que esta popularidade consistiu somente no costume de citar frequentemente algumas passagens confusas, e não em estudar seria e complexamente todo o seu desenvolvimento juvenil. Entretanto, não há dúvida de que, ademais do suposto irracionalismo do jovem Hegel, também essa religião sem objeto determinado, essa religião etérea e estética, sem substância nem dogmas, desempenhou um papel importante nessa popularidade. Os ideólogos reacionários do período imperialista não se atreveram muitas vezes – especialmente antes da I guerra mundial – a apresentar uma defesa aberta das religiões realmente existentes, porém ao mesmo tempo queriam conservar – inclusive no sentido de por em conserva – a religião como tal no terreno do pensamento. Lenin avaliou muito claramente o grande perigo ideológico dessas tendências. Em uma carta a Gorki escreve sobre elas: “Um padre católico que estuprou uma moça (..) é menos perigoso para a democracia que um padre sem paramentos litúrgicos, que um padre sem religião grosseira, um padre ideal e democrático que predique a criação de um novo Deus. Pois é fácil desmascarar ao primeiro, e não é difícil expulsar-lhe e condenar-lhe; enquanto que o segundo não é tão fácil de isolar, é mil vezes mais difícil de desmascarar, e nenhum pequeno-burguês débil e vacilante se declarará disposto a o condenar”(7).
Esta debilidade central da concepção juvenil de Hegel tem, porém uma grande importância para o desenvolvimento posterior de seu pensamento. Esta mesma ideia, com efeito, de que a religião grega não é uma religião no sentido do posterior cristianismo positivo leva Hegel à tentativa de elaborar uma ideia concreta e do ser do mundo helênico. E esses traços históricos se acusam tanto mais quanto menos se enlaça a concepção hegeliana da Grécia com sua concepção do presente e com suas perspectivas do futuro, ou seja, quanto mais resolutamente contempla o Mundo Antigo como algo transcorrido definitivamente passado, como algo superado da implantação do espírito. Nos capítulos seguintes mostraremos em detalhes de que modo essa modificação das concepções de Hegel estão entrelaçadas com sua nova atitude face o presente, diante da atualidade histórica da Revolução, de república democrática na Alemanha e veremos ao mesmo tempo as importantes consequências que tiveram essa mudança de atitude para todo o sistema hegeliano.
Aqui basta observar nesta especial concepção da Antiguidade está à semente da concepção histórica, da estética hegeliana, do destino histórico da beleza no curso do desenvolvimento da humanidade. Como é sabido, no sistema posterior de Hegel a arte grega é propriamente a objetivação do princípio estético, e essa arte e essa objetivação própria de modo algum se baseiam em princípios da natureza artístico-formal, mas explicitam, como resultado da análise orgânica da vida grega em sua totalidade. Em todos os períodos posteriores, e já no romântico (que para Hegel inclui a Idade Média e o Renascimento); o estético se apresenta em uma forma que já não é realmente pura. E a passagem dialética do espírito sobre esse segundo período não acrescenta, ao superá-lo, uma volta ao grego, mas, ao contrário, à época ou ao período do espírito em sua forma conceitual, ou seja, dito esteticamente, na prosa. Com isso o mundo grego recebe no posterior sistema hegeliano um papel e uma importância específicas e este novo papel devemos muito a concretude e riqueza dos princípios estéticos hegelianos. Como é evidente, as fundamentações de princípios dessa periodização são de um caráter ideológico, muito idealistas. E o grande valor destas análises da estética hegeliana encontra-se precisamente nos pontos em que Hegel, vai além de seus próprios princípios e estuda a vida grega em sua fenomenalidade real, nas reais objetivações que recebeu na arte.
Mas não se deve esquecer que para Hegel mesmo esta concepção segundo a qual esta religião grega não tem um caráter propriamente religioso foi a chave e acesso a investigação da especificidade da vida grega, embora os resultados efetivamente conseguidos pelo filósofo superem amplamente o seu traço idealista.
A trágica contradição própria do desenvolvimento de Hegel faz-se visível também neste ponto teórico. Como pensador alemão de finais do século XVIII e inicio do século XIX, Hegel não podia mais do que eleger entre o ilusionismo utópico e uma resignada adaptação à miserável realidade alemã da época. O mundo grego não podia ser para Hegel mais do que a ilusão jacobina da renovação democrática da humanidade – que foi para ele efetivamente no período de Berna – ou uma época de florescimento, definitivamente caduco, da beleza, da cultura orgânica, que devia seguir o período da prosa seca, uma prosa da qual não há saída para o homem, uma prosa com a que tem de contentar-se mentalmente, e a correta conceituação da qual é o negócio supremo da filosofia. Sabemos em que direção moveu-se o pensamento de Hegel de um dos ramos dessa alternativa para e até a outra, e nos capítulos vindouros poderemos estudar algumas etapas importantes deste caminho. Veremos também que a dialética hegeliana não pode nascer senão graças a que o desenvolvimento de Hegel discorreu nesta direção. Por isso os jacobinos heroicos que foram os predecessores ou contemporâneos de Hegel, como Georg Foster ou Hölderin, não passaram de figuras episódicas do desenvolvimento ideológico da Alemanha.
Porém, é muito instrutivo lançar um olhar para estes problemas da diferença que existe entre a dialética idealista de Hegel e a materialista de Marx e Engels. Também Marx tem o mundo grego no centro das considerações estéticas; também para ele representa a cultura grega o modo de manifestação mais puro e mais alto alcançado até agora pela atividade estética da humanidade. Marx destacou insistentemente este caráter orientador da arte antiga. A seguir de haver feito alusão às condições históricas concretas de sua gênese, sublinha Marx:
“Porém a dificuldade não consiste em entender que a arte e época grega estejam ligadas com determinadas formas de desenvolvimento social. A dificuldade consiste em que essa arte e essa épica continuem produzindo em nós prazer artístico, e que sigam valendo o forma e modelos inatingíveis”(8).
Marx também opôs abruptamente a beleza grega ao prosaísmo capitalista. E como Marx penetrou no ser do capitalismo de modo muito diverso de Hegel inclusive no período de sua maturidade científica, e como Marx se encontrava em uma posição mais irreconciliável e muito mais profunda e cientificamente fundamentada, esta sua condenação da cultura capitalista é mais profunda, mais ampla e aniquiladora do que poderia ser a de Hegel. Exatamente por isso não pode apresentar-se a Marx, como se produziu mais tarde em Hegel, um estado de ânimo de resignação diante da cultura humana: a contemplação da passada imperecedoura beleza da Antiguidade não é para Marx motivo de melancolia. Exatamente sobre a base desse profundo e amplo conhecimento da humanidade, das verdadeiras forças motrizes, desenvolve Marx a perspectiva já não utópica, mas científica, da renovação da humanidade sob o socialismo. A exemplaridade da arte grega é desta perspectiva uma herança tremenda para a humanidade para que no período de sua libertação, uma vez superada sua “pré-história”, crê com essa herança numa cultura que supere amplamente todo o passado. Na resolução do dilema hegeliano entre utopia e resignação se apreciam não somente a superioridade científica da dialética materialista sobre a idealista, mas também o fato de que inclusive quando aprendeu muito com He, nos pontos em que salvou para o futuro pontos essenciais do pensamento de Hegel, a dialética materialista deu aos descobrimentos dele um significado completamente novo.
Porém para Hegel não havia saída deste dilema. Seguir com seu caminho de juventude não haveria significado ao final senão sofrer o destino de um Forster ou de um Hölderin. As semente e interrupções, as vezes geniais, de seus escritos juvenis do período de Berna não podiam ter importância para o pensamento humano mais do que Hegel superou o ilusionismo republicano de seu primeiro período juvenil. Vimos que todas aquelas interrupções, por confusa e imatura que fosse à forma, apontavam para a concepção dialética da história. Porém o jovem Hegel não está ainda capacitado em seu período bernense para chegar a um domínio realmente dialético da história, nem mesmo dentro dos limites de uma dialética idealista. O melhor modo de vê-lo assim consiste em notar que as principais categorias dialéticas de seu método posterior – imediatidade e mediação, universal e particular em sua interação dialética, etc. - não existem nem mesmo vagamente neste período. O que já existe é um esquema do curso da história que não é adialético em seu núcleo, porem cujo desenvolvimento filosófico esta ainda repleto de meios conceituais metafísicos. E se o jovem Hegel se afasta muitas vezes de concepções metafísicas, isso ocorre porque deixa de explicitar algumas consequências de seus pressupostos deixando-os num confuso claro-escuro. Porém uma situação assim é uma solução apenas aparente, e um pensador da categoria de Hegel não poderia sentir-se satisfeito com tais pseudo-soluções. Observamos também que essa confusão, esse claro-escuro, não tem primariamente causas sistemáticas, metodológicas. Mais de uma vez ficou claro, ao contrario, que a obscuridade e confusão da metodologia do jovem Hegel dependem da confusão e utopia diante de seu presente. A verdade do princípio de Marx, segundo o qual o correto conhecimento dos estádios superiores do desenvolvimento histórico dá a chave da compreensão dos anteriores, o princípio de que há de se conhecer o presente para expor corretamente a história do passado e com verdade, se confirma também no caso de Hegel. A crise decisiva de seu pensamento – à exposição detalhada para qual passaremos no capitulo seguinte- é precisamente a mudança face ao presente, a realidade capitalista.
Notas de rodapé:
(1) Engels, Feuerbach, op. cit., p. 48. (retornar ao texto)
(2) Nohl, p. 225. (retornar ao texto)
(3) Haym, Hegel und seine Zeit [Hegel e seu Tempo], 2ª edição, Leizig, 1927, p. 164. (retornar ao texto)
(4) Engels, Feuerbach, op. Cit. p. 80. (retornar ao texto)
(5) Lenine, Aus dem philosophischen Nachlass [Cadernos Filosóficos], Berlim, 1949, p.325. (retornar ao texto)
(6) Marx, Differenz der demokritischen und epikureischen Naturphilosophie (Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro], MEGA I, vol I. parte I. p. 80. (retornar ao texto)
(7) Lenine, Carta a Máximo Gorki de 14 de novembro de 1913. Para algumas questões referentes a esse desenvolvimento ideológico na Alemanha pode-se consultar meu trabalho “Feuerbach und die deustsche Literatur [Feuerbach e a Literatura alemã] em meu livro Literaturtheorien des 19. Jarhunderts und des Marxismius [As teoria literárias do século XIX e as do marxismo). Gospolitizdat, 1937. (retornar ao texto)
(8) Marx, Zur Kritik der politischen ökonomie [Contribuição à critica da economia política], Berlim, 1951, p. 269. (retornar ao texto)