Para analisar a posição de princípio do novo Iskra é preciso sem dúvida tomar como base os dois folhetins do camarada Axelrod(1). Expusemos anteriormente em pormenor o significado concreto de uma série das suas palavrinhas preferidas, e agora devemos tentar abstrair-nos desse significado concreto e seguir o desenrolar do pensamento que levou a «minoria» (por este ou aquele motivo fútil e mesquinho) a adoptar precisamente essas palavras de ordem e não outras, e examinar o significado destas palavras de ordem no terreno dos princípios, independentemente da sua origem, independentemente da «cooptação». Vivemos agora sob o signo das cedências: façamos pois uma cedência ao camarada Axelrod e «tomemos a sério» a sua «teoria».
A tese fundamental do camarada Axelrod (n° 57 do Iskra) é a seguinte: «Desde o início o nosso movimento conteve duas tendências opostas, cujo antagonismo mútuo não podia deixar de desenvolver-se e repercutir-se nele paralelamente ao seu próprio desenvolvimento.» A saber: «O objectivo proletário do movimento (na Rússia) é, em princípio, o mesmo que o da social-democracia do Ocidente.» Mas no nosso país a influência sobre as massas operárias provém «de um elemento social que lhes é estranho» - a intelectualidade radical. Assim, o camarada Axelrod assina-la que existe no nosso partido um antagonismo entre as tendências proletária e intelectual-radical.
Nisso o camarada Axelrod tem seguramente razão. Que este antagonismo existe (e não só no partido social-democrata russo), é questão fora de dúvida. E mais. Toda a gente sabe que é este antagonismo que explica em grande parte a divisão da social-democracia contemporânea em social-democracia revolucionária (também chamada ortodoxa) e oportunista (revisionista, ministerialista, reformista), divisão que também se manifestou claramente na Rússia no decurso dos dez últimos anos do nosso movimento. Toda a gente sabe também que é precisamente a social-democracia ortodoxa que exprime as tendências proletárias do movimento, enquanto a social-democracia oportunista exprime as tendências intelectuais-democráticas.
Mas, ao abordar de perto este facto notório, o camarada Axelrod, temeroso, começa a recuar. Não faz a mínima tentativa para analisar como se manifestou esta divisão na história da social-democracia russa em geral, e no nosso congresso do partido em particular - embora o camarada Axelrod escreva precisamente acerca do congresso! Como toda a redacção do nosso Iskra, o camarada Axelrod manifesta um medo mortal das actas deste congresso. Não devemos admirar-nos disso depois de tudo o que foi exposto anteriormente, mas da parte de um «teórico» que pretende estudar as diversas tendências do nosso movimento, é um caso original de fobia da verdade. Depois de ter afastado, em virtude dessa particularidade que o caracteriza, os materiais mais recentes e mais exactos sobre as tendências do nosso movimento, o camarada Axelrod procura salvação no campo dos doces sonhos. «O marxismo legal ou semimarxismo deu pois um chefe literário aos nossos liberais - diz ele. - Então, porque é que essa menina travessa que é a história não havia de dar à democracia burguesa revolucionária um chefe formado na escola do marxismo revolucionário, ortodoxo?» Sobre este sonho, doce para o camarada Axelrod, só podemos dizer que, se acontece a história fazer travessuras, isso não justifica as travessuras do pensamento de uma pessoa que se propõe analisar essa história. Quando por detrás do chefe do semimarxismo surgia o liberal, as pessoas que queriam (e sabiam) estudar o fundo das suas «tendências», não invocavam possíveis travessuras da história, mas dezenas e centenas de exemplos da psicologia e da lógica desse chefe, particularidades de toda a sua fisionomia literária, que traíam o reflexo do marxismo na literatura burguesa(2). Mas se o camarada Axelrod, que pretendeu analisar as «tendências revolucionárias em geral e as tendências proletárias no nosso movimento», não soube revelar nada, absolutamente nada, que demonstrasse a existência de determinadas tendências nestes ou naqueles representantes dessa ala ortodoxa que ele detesta, apenas se passou a si mesmo um solene atestado de indigência. Os assuntos do camarada Axelrod devem andar bem mal, se já só lhe resta invocar as possíveis travessuras da história!
A outra referência do camarada Axelrod - aos «jacobinos» - é ainda mais instrutiva. O camarada Axelrod não desconhece, provavelmente, que a divisão da social-democracia contemporânea em revolucionária e oportunista, há já muito tempo, e não só na Rússia, deu azo a «analogias históricas com a época da grande revolução francesa». O camarada Axelrod não ignora, provavelmente, que os girondinos da social-democracia contemporânea recorrem, sempre e em toda a parte, aos termos «jacobinismo», «blanquismo»(3), etc., para caracterizar os seus adversários. Não imitemos pois o camarada Axelrod na sua fobia da verdade, e consultemos as actas do nosso congresso: talvez encontremos nelas material para analisar e verificar as tendências que estamos a estudar e as analogias que estamos a examinar.
Primeiro exemplo. A discussão do programa no congresso do partido. O camarada Akímov («inteiramente de acordo» com o camarada Martínov) declara: «O parágrafo sobre a conquista do poder político (sobre a ditadura do proletariado), em comparação com todos os outros programas sociais-democratas, foi redigido de tal maneira que pode ser interpretado, como foi de facto interpretado pelo camarada Plekhánov, no sentido de que o papel da organização dirigente deverá relegar para segundo plano a classe por ela dirigida e isolar a primeira da segunda. Por isso a definição das nossas tarefas políticas é exactamente igual à feita por “A Vontade do Povo”» (p. 124 das actas). O camarada Plekhánov e outros iskristas respondem ao camarada Akímov acusando-o de oportunismo. Não acha o camarada Axelrod que esta discussão nos mostra (nos factos e não nas imaginárias travessuras da história) o antagonismo entre os jacobinos actuais e os girondinos actuais na social-democracia? E se o camarada Axelrod falou dos jacobinos, não será porque se encontrou (devido aos erros que cometeu) na companhia dos girondinos da social-democracia?
Segundo exemplo. O camarada Possadóvski põe a questão de um «sério desacordo» sobre a «questão fundamental» do «valor absoluto dos princípios democráticos» (p. 169). Juntamente com Plekhánov, nega o seu valor absoluto. Os líderes do «centro» ou do pântano (Egórov) e dos anti-iskristas (Goldblat) erguem-se decididamente contra isso, considerando que Plekhánov «imita a táctica burguesa» (p. 170) - esta é precisamente a ideia do camarada Axelrod sobre a relação entre ortodoxia e tendência burguesa, com a única diferença de que Axelrod deixa esta ideia no ar, enquanto Goldblat a relaciona com debates concretos. Nós perguntamos uma vez mais: não crê o camarada Axelrod que também esta discussão nos mostra palpavelmente o antagonismo no nosso congresso entre jacobinos e girondinos da social-democracia contemporânea? Não gritará o camarada Axelrod contra os jacobinos porque se encontrou na companhia dos girondinos?
Terceiro exemplo. A discussão do § l dos estatutos. Quem defende «as tendências proletárias no nosso movimento», quem sublinha que o operário não receia a organização, que o proletário não simpatiza com a anarquia, que aprecia o estímulo da palavra de ordem «organizai-vos!», quem põe em guarda contra a intelectualidade burguesa, imbuída até à medula de oportunismo? Os jacobinos da social-democracia. E quem introduz de contrabando no partido os intelectuais radicais, quem se preocupa com os professores, com os estudantes de liceu, com os isolados, com a juventude radical? O girondino Axelrod juntamente com o girondino Líber.
Com que falta de habilidade o camarada Axelrod se defende da «falsa acusação de oportunismo» abertamente espalhada no congresso do nosso partido contra a maioria do grupo «Emancipação do Trabalho»! Defende-se de tal maneira que confirma a acusação, retomando a batida cantilena bernsteiniana sobre o jacobinismo, o blanquismo, etc.! Grita acerca do perigo que representam os intelectuais radicais para fazer esquecer os seus próprios discursos no congresso do partido e que respiravam solicitude com esses mesmos intelectuais.
As «terríveis palavras»: jacobinismo, etc., não exprimem absolutamente nada a não ser oportunismo. O jacobino, ligado indissolutamente à organização do proletariado, consciente dos seus interesses de classe, é justamente o social-democrata revolucionário. O girondino, que suspira pelos professores e os estudantes de liceu, que receia a ditadura do proletariado, que sonha com o valor absoluto das reivindicações democráticas, é justamente o oportunista. Só os oportunistas podem ainda, na nossa época, ver um perigo nas organizações de conspiradores, quando a ideia de reduzir a luta política às proporções de uma conspiração foi mil vezes refutada na literatura, foi há muito tempo refutada e posta de lado pela vida, quando a primordial importância da agitação política de massas foi explicada e repisada até à exaustão. O verdadeiro motivo deste medo da conspiração, do blanquismo, não é esta ou aquela característica que se manifestou no movimento prático (como Bernstein e Cª há muito tentam em vão demonstrar), mas a timidez girondina do intelectual burguês, cuja mentalidade se manifesta tantas vezes entre os sociais-democratas contemporâneos. Nada mais cómico que estes esforços desesperados do novo Iskra para dizer uma palavra nova (cem vezes repetida no seu tempo), pondo em guarda contra a táctica dos revolucionários-conspiradores franceses dos anos quarenta e sessenta (n° 62, editorial)(4). Num próximo número do Iskra os girondinos da social-democracia contemporânea indicar-nos-ão, sem dúvida, um grupo de conspiradores franceses dos anos quarenta para quem a importância da agitação política entre as massas operárias, a importância dos jornais operários como meio principal da influência do partido sobre a classe, teria sido um á-bê-cê aprendido e assimilado há muito.
A tendência do novo Iskra para. repetir, como se fossem palavras novas, coisas já ditas e verdades elementares mais do que conhecidas não é contudo nada casual, mas consequência inevitável da situação em que se encontram Axelrod e Mártov, que caíram na ala oportunista do nosso partido. A situação obriga. São obrigados a repetir as frases oportunistas, têm de recuar para tentar descobrir num passado longínquo uma justificação qualquer da sua posição, indefensável do ponto de vista da luta no congresso e dos matizes e divisões do partido que nele se revelaram. Às elucubrações akimovistas sobre o jacobinismo e o blanquismo, o camarada Axelrod acrescenta lamentações também akimovistas, de que não só os «economistas» mas também os «políticos» foram «unilaterais», se «apaixonaram» excessivamente, etc., etc. Quando se lêem os ribombantes discursos sobre este tema do novo Iskra, que presunçosamente pretende estar acima de todas essas parcialidades e paixões, perguntamo-nos com espanto: Quem retratam eles? Onde ouvem estes discursos(5)? Quem ignora que a divisão dos sociais-democratas russos em economistas e políticos já passou à história há muito tempo? Percorrei o Iskra do último ou dos dois últimos anos antes do congresso do partido, e vereis que a luta contra o «economismo» perde intensidade e cessa completamente já em 1902, vereis que, por exemplo, em Julho de 1903 (n° 43), se fala dos «tempos do economismo» como de uma coisa «definitivamente passada», considera-se o economismo «definitivamente enterrado», e as paixões dos políticos como um evidente atavismo. Por que motivo volta então a nova redacção do Iskra a essa divisão definitivamente enterrada? Ter-nos-íamos batido no congresso contra os Akímov por causa dos erros que cometeram há dois anos na Rabótcheie Dielo? Se o tivéssemos feito seríamos perfeitamente imbecis. Mas todos sabem que não o fizemos, que lutámos contra os Akímov no congresso não por causa dos seus velhos erros, definitivamente enterrados, da Rabótcheie Dielo, mas por causa dos novos erros que cometeram com as suas apreciações e com as suas votações no congresso. Não foi pela sua posição na Rabótcheie Dielo, mas pela sua posição no congresso, que julgámos quais são os erros definitivamente liquidados e quais os que persistem ainda e precisam ser discutidos. Na época do congresso, a velha divisão em economistas e políticos já não existia, mas continuavam a existir diversas tendências oportunistas, que se exprimiram durante os debates e votações sobre uma série de questões, e que levaram finalmente a uma nova divisão do partido em «maioria» e «minoria». A essência da questão é que a nova redacção do Iskra procura, por razões facilmente compreensíveis, dissimular a relação existente entre esta nova divisão e o oportunismo actual no nosso partido, e é por isso que ela é obrigada a recuar da nova divisão para a antiga. A incapacidade de explicar a origem política da nova divisão (ou o desejo, por espírito de cedência, de lançar um véu(6) sobre esta origem), obriga a repisar tudo o que se disse da antiga divisão, que já há muito tempo passou à história. Toda a gente sabe que a nova divisão se baseia numa divergência nas questões de organização, que começou por uma controvérsia sobre princípios de organização (§1 dos estatutos) e que terminou por uma «prática» digna de anarquistas. A antiga divisão em economistas e políticos tinha por base uma divergência principalmente sobre as questões de táctica.
Este afastamento das questões mais complexas, e verdadeiramente actuais e candentes da vida do partido, para tratar de questões há muito resolvidas e artificialmente desenterradas, tenta justificá-lo o novo Iskra com divertidas elucubrações a que não se pode dar outro nome senão seguidismo. Por obra e graça do camarada Axelrod, atravessa todos os escritos do novo Iskra como um traço vermelho a profunda «ideia» de que o conteúdo é mais importante que a forma, o programa e a táctica são mais importantes que a organização, que «a vitalidade de uma organização é directamente proporcional ao volume e valor do conteúdo que traz ao movimento», que o centralismo não é «algo que se baste a si mesmo», não é um «talismã universal», etc., etc. Grandes e profundas verdades! Com efeito, o programa é mais importante que a táctica, e a táctica é mais importante que a organização. O alfabeto é mais importante que a etimologia, e a etimologia é mais importante que a sintaxe - mas que dizer de pessoas que, tendo reprovado no seu exame de sintaxe, hoje se dêem ares importantes e se gabem de ter que estar mais um ano na classe inferior? Sobre questões de princípio em matéria de organização o camarada Axelrod raciocinou como um oportunista (§1), na organização agiu como um anarquista (congresso da Liga). E agora aprofunda a social-democracia: as uvas estão verdes! Propriamente, o que é a organização? É apenas uma forma. O que é o centralismo? Não é um talismã. O que é a sintaxe? É menos importante que a morfologia, é apenas a forma de unir os elementos da morfologia... «Não estará de acordo connosco o camarada Alexándrov - pergunta triunfalmente a nova redacção do Iskra - se dissermos que o congresso contribuiu muito mais para a centralização da acção do partido elaborando o programa do partido, do que adoptando os estatutos, por mais perfeitos que pareçam estes últimos?» (n° 56, suplemento). É de esperar que esta sentença clássica adquira uma celebridade histórica não menos vasta e não menos durável que a famosa frase do camarada Kritchévski de que a social-democracia como a humanidade se atribui sempre tarefas realizáveis. É exactamente do mesmo calibre a profundidade de pensamento do novo Iskra. Porque é que a frase do camarada Kritchévski foi ridicularizada? Porque este, com uma banalidade que tentava fazer passar por filosofia, procurava justificar o erro de uma parte dos sociais-democratas em questões de táctica e a sua incapacidade de colocar correctamente as tarefas políticas. É exactamente o que acontece com o novo Iskra que, com a banalidade de que o programa é mais importante do que os estatutos, e as questões de programa são mais importantes que as questões de organização, justifica o erro de uma parte dos sociais-democratas em matéria de organização, a instabilidade própria de intelectuais que conduziu alguns camaradas à fraseologia anarquista! Não será isto seguidismo? Não será isto gabar-se de ter que estar mais um ano na classe inferior?
A adopção do programa contribui mais para a centralização do trabalho do que a adopção dos estatutos. Como esta banalidade, que se quer fazer passar por filosofia, cheira a intelectual radical muito mais próximo do decadentismo burguês do que da social-democracia! Porque a palavra centralização, nesta famosa frase, é tomada em sentido já puramente simbólico. Se os autores desta frase não sabem ou não querem pensar, pelo menos deviam recordar o simples facto de que a adopção do programa, juntamente com os bundistas, longe de conduzir à centralização do nosso trabalho comum, nem sequer nos preservou da cisão. A unidade em questões de programa e questões de táctica é uma condição necessária, mas de modo nenhum suficiente, para a unificação do partido, para a centralização do trabalho do partido (santo Deus! que coisas elementares se é obrigado a repisar, nestes tempos em que todas as noções se confundiram!). Para obter este último resultado é necessária além disso a unidade de organização, inconcebível, num partido que tenha superado por pouco que seja os limites de um círculo de família, sem estatutos aprovados, sem subordinação da minoria à maioria, sem subordinação da parte ao todo. Enquanto não tínhamos unidade nas questões fundamentais de programa e de táctica, dizíamos claramente que vivíamos numa fase de dispersão e de círculos, declarávamos francamente que antes de nos unificarmos era preciso demarcar os campos, não falávamos sequer de formas de organização comum, mas tratávamos exclusivamente das novas questões (então verdadeiramente novas) da luta contra o oportunismo em matéria de programa e de táctica. Agora essa luta, todos reconhecemos, assegurou já uma unidade suficiente, formulada no programa do partido e nas resoluções do partido sobre a táctica; agora temos de dar o passo seguinte, e, como todos estamos de acordo, demo-lo: elaborámos as formas de uma organização única, em que se fundem todos os círculos. Arrastaram-nos agora para trás semidestruindo estas formas, arrastaram-nos para trás para uma conduta anarquista, para a frase anarquista, para o restabelecimento do círculo em vez da redacção do partido, e justificam este passo atrás dizendo que o alfabeto é mais útil ao discurso correcto do que o conhecimento da sintaxe!
A filosofia do seguidismo, que há três anos florescia em questões de táctica, renasce agora, aplicada à questões de organização. Tomai este raciocínio da nova redacção. «A orientação social-democrata combativa - diz o camarada Alexándrov - deve ser assegurada no partido não só pela luta ideológica mas também por determinadas formas de organização.» A redacção ensina-nos: «Não está mal este confronto da luta ideológica e das formas de organização. A luta ideológica é um processo, enquanto as formas de organização são apenas... formas» (juro que isto está impresso tal e qual no n° 56, suplemento, p. 4, coluna l, em baixo!) «que devem revestir-se de um conteúdo que se modifica e se desenvolve - o trabalho prático em vias de desenvolvimento do partido». Isto é como a anedota de que uma granada é uma granada e uma bomba é uma bomba! A luta ideológica é um processo e as formas de organização são apenas formas que revestem um conteúdo! Trata-se de saber se a nossa luta ideológica se revestirá de formas mais elevadas, as formas de uma organização de partido obrigatória para todos, ou as formas da antiga dispersão e dos antigos círculos. Arrastaram-nos para trás, de formas superiores para formas mais primitivas, e afirmam para justificar isso que a luta ideológica é um processo e que as formas são apenas formas. Exactamente do mesmo modo que o camarada Kritchévski no seu tempo nos arrastava para trás, da táctica-plano para a táctica-processo.
Vede estas frases pretensiosas do novo Iskra sobre «a auto-educação do proletariado» dirigidas contra aqueles de quem se diz que a forma os impede de ver o conteúdo (n° 58, editorial). Não será isso akimovismo número dois? O akimovismo número um tinha justificado o atraso de uma certa parte da intelectualidade social-democrata no que se refere a colocar questões de táctica, alegando um conteúdo mais «profundo» da «luta proletária», a auto-educação do proletariado. O akimovismo número dois justifica o atraso de uma certa parte da intelectualidade social-democrata quanto às questões da teoria e da prática da organização pelo argumento não menos profundo de que a organização é apenas uma forma e o essencial é a auto-educação do proletariado. O proletariado não receia a organização nem a disciplina, saibam-no os senhores que se preocupam tanto com o irmão mais novo! O proletariado não se importará que os senhores professores e estudantes de liceu, que não queiram entrar numa organização, sejam considerados como membros do partido porque trabalham sob o controlo de uma organização. Toda a vida do proletariado o educa para a organização de modo muito mais radical que a muitos intelectuaizinhos. O proletariado, por muito pouco que compreenda o nosso programa e a nossa táctica, não se porá a justificar o atraso da organização argumentando que a forma é menos importante que o conteúdo. Não é ao proletariado, mas a certos intelectuais do nosso partido, que falta a auto-educação no espírito de organização e disciplina, no espírito de hostilidade e desprezo pelas frases anarquistas. Os Akímov número dois caluniam o proletariado, dizendo que este não está preparado para a organização, tal como os Akímov número um o caluniaram dizendo que não estava preparado para a luta política. O proletário que se tenha tornado social-democrata consciente e que se sinta membro do partido rejeitará o seguidismo em matéria de organização com o mesmo desprezo com que rejeitou o seguidismo nas questões de táctica.
Tomai enfim este profundo pensamento de «Praktik» no novo Iskra. «Compreendida no seu verdadeiro sentido, a ideia de uma organização centralista “de combate” - diz - que unifique e centralize a actividade» (em itálico(7), para sublinhar a profundidade) «dos revolucionários naturalmente só tomaria corpo no caso de essa actividade existir» (Novo e inteligente!); «a própria organização, como forma» (escutai, escutai!) «só pode desenvolver-se simultaneamente» (o sublinhado é do autor, como de resto em toda esta citação) «com o desenvolvimento do trabalho revolucionário que constitui o seu conteúdo» (n° 57). Não vos faz isto recordar mais uma vez o herói da epopeia popular que, à vista de um cortejo fúnebre, exclamava: oxalá tenhais sempre algo que levar! Não haverá seguramente um único militante prático (sem aspas) no nosso partido que não compreenda que é precisamente a forma da nossa actividade (ou seja, a organização) que há muito está atrasada - terrivelmente atrasada - em relação ao conteúdo, e que os gritos aos atrasados: acertai passo! não vos adianteis! - só podem vir dos simplórios do partido. Tentai comparar, por exemplo, o nosso partido ao Bund. Não há a mínima dúvida de que o conteúdo(8) do trabalho do nosso partido é infinitamente mais rico, mais diversificado, mais amplo e mais profundo que o do Bund. Maior a envergadura teórica, mais desenvolvido o programa, mais extensa e mais profunda a acção sobre as massas operárias (e não apenas sobre os artesãos organizados), mais variadas a propaganda e a agitação, mais vivo o ritmo do trabalho político dos responsáveis e dos militantes de base, mais grandiosos os movimentos populares durante as manifestações e greves gerais, mais enérgica a actividade entre as camadas não proletárias. E a «forma»? A «forma» do nosso trabalho está atrasada em comparação com a do Bund a um ponto inadmissível; a ponto de saltar aos olhos, e de corar de vergonha quem quer que não trate dos assuntos do seu partido «metendo o dedo no nariz». O atraso da organização do trabalho em comparação com o seu conteúdo é o nosso ponto fraco, já o era muito antes do congresso, muito antes da constituição do CO. A falta de desenvolvimento e a instabilidade da forma não permitem fazer sérios progressos no desenvolvimento do conteúdo, provoca uma estagnação vergonhosa, conduz a um desperdício de forças e faz com que os actos não correspondam às palavras. Todos estão fartos de sofrer com esta discordância - e eis que vêm os Axelrod e os «Praktik» do novo Iskra pregar-nos o profundo pensamento: a forma deve desenvolver-se de modo natural apenas simultaneamente com o conteúdo!
Eis onde conduz um ligeiro erro em matéria de organização (§1), se alguém se põe a aprofundar uma tolice e a fundamentar filosoficamente uma frase oportunista. A passos prudentes, com tímidos ziguezagues!(9) - já ouvimos este refrão aplicado às questões de táctica; ouvimo-lo hoje aplicado às questões de organização. O seguidismo em questões de organização é um produto natural e inevitável da mentalidade do individualista anarquista, quando este último se põe a erigir em sistema de concepções, em divergências de princípio particulares, os seus desvios anarquistas (talvez acidentais de início). No congresso da Liga vimos os começos deste anarquismo, no novo Iskra vemos as tentativas de o erigir em sistema de concepções. Estas tentativas confirmam admiravelmente o que já se disse no congresso do partido sobre a diferença de pontos de vista entre o intelectual burguês que se liga à social-democracia e o proletário que tomou consciência dos seus interesses de classe. Por exemplo, esse mesmo «Praktik» do novo Iskra, cuja profundidade de pensamento já conhecemos, acusa-me de conceber o partido como uma «imensa fábrica», com um director - o Comité Central – àfrente (nº 57, suplemento). «Praktik» não suspeita sequer de que a palavra terrível que lançou trai imediatamente a mentalidade do intelectual burguês, que não conhece nem a prática nem a teoria da organização proletária. Precisamente a fábrica, que a alguns parece apenas um espantalho, representa a forma superior de cooperação capitalista, que unificou e disciplinou o proletariado, o ensinou a organizar-se, o pôs à cabeça de todas as outras camadas da população trabalhadora e explorada. Precisamente o marxismo, ideologia do proletariado educado pelo capitalismo, ensinou e ensina aos intelectuais inconstantes a diferença entre o lado explorador da fábrica (disciplina baseada no medo de morrer de fome) e o seu lado organizador (disciplina baseada no trabalho em comum, unificado pelas condições em que se realiza a produção altamente desenvolvida do ponto de vista técnico). A disciplina e a organização, que ao intelectual burguês tanto custam a adquirir, são facilmente assimiladas pelo proletariado, justamente graças a essa «escola» da fábrica. O medo mortal a essa escola, a incompreensão absoluta da sua importância como elemento de organização, caracterizam precisamente a maneira de pensar que reflecte as condições de existência pequeno-burguesas, e gera esse aspecto do anarquismo que os sociais-democratas alemães chamam Edelanarchismus, ou seja, o anarquismo do senhor «distinto», o anarquismo senhorial, diria eu. Este anarquismo senhorial é particularmente característico do niilista russo. A organização do partido parece-lhe uma monstruosa «fábrica», a submissão da parte ao todo e da minoria à maioria surge-lhe como uma «servidão» (ver os folhetins de Axelrod), a divisão do trabalho sob a direcção de um centro fá-lo lançar gritos tragicómicos contra a transformação dos homens em «engrenagens e parafusos» (e vê uma forma particularmente intolerável dessa transformação na transformação dos redactores em colaboradores), a simples alusão aos estatutos de organização do partido provoca nele um gesto de desprezo e a observação desdenhosa (dirigida aos «formalistas») de que se poderia perfeitamente dispensar os estatutos.
É inacreditável, mas é um facto: é precisamente esta a observação edificante que o camarada Mártov me dirige no n° 58 do Iskra, citando, para lhe dar mais peso, as minhas próprias palavras da Carta a um camarada. Não será isso «anarquismo senhorial», não será seguidismo justificar com exemplos extraídos da época de dispersão, da época dos círculos, a manutenção e a glorificação do espírito de círculo e da anarquia numa época em que já está constituído o partido?
Antes, porque não precisávamos nós de estatutos? Porque o partido era formado por círculos isolados que não tinham entre si qualquer ligação orgânica. Passar de um círculo para outro dependia exclusivamente da «livre vontade» de um indivíduo, que não tinha perante si qualquer expressão bem definida da vontade do todo. As questões controversas dentro dos círculos não eram resolvidas com base em estatutos, «mas pela luta e pela ameaça de retirada», como eu escrevia na Carta a um camarada(10), apoiando-me na experiência de uma série de círculos em geral, e em particular na do nosso próprio grupo de seis redactores. Na época dos círculos, isto era natural e inevitável; mas não passou pela cabeça de ninguém elogiá-lo, fazer disto um ideal, todos lamentavam esta dispersão, todos sofriam com isso e ansiavam pela fusão dos círculos dispersos numa organização do partido formalmente constituída. E agora que se efectuou a fusão, arrastam-nos para trás, servem-nos, como se fossem princípios superiores de organização, frases anarquistas! Às pessoas habituadas ao amplo roupão e às pantufas do oblomovismo(11) doméstico dos círculos, estatutos formais parecem-lhes algo de estreito, apertado, pesado, vil, burocrático, opressivo, um estorvo para o livre «processo» da luta ideológica. O anarquismo senhorial não compreende que são necessários estatutos formais precisamente para substituir a ligação limitada dos círculos por uma ampla ligação de partido. A ligação no interior dos círculos ou entre os círculos não devia nem podia tomar forma definida, porque se baseava na amizade pessoal ou numa «confiança» incontrolada e não fundamentada. A ligação de partido não pode nem deve assentar nem numa nem noutra, mas em estatutos formais, redigidos «burocraticamente» (do ponto de vista do intelectual relaxado), cuja observância estrita é o único meio que nos garante contra a arbitrariedade e os caprichos dos círculos, contra o regime de questiúnculas instituído nos círculos e classificado de livre «processo» da luta ideológica.
A redacção do novo Iskra lança contra Alexándrov a edificante observação de que «a confiança é uma coisa delicada que não pode ser metida a martelo nos corações e nas cabeças» (n° 56, suplemento). A redacção não compreende que precisamente a colocação em primeiro plano da confiança, da mera confiança, trai uma vez mais o seu anarquismo senhorial e o seu seguidismo em matéria de organização. Quando eu era unicamente membro de um círculo, do grupo dos seis redactores ou da organização do Iskra, tinha o direito, para justificar por exemplo a minha recusa a trabalhar com Iks, de invocar exclusivamente a falta de confiança, sem ter de apresentar explicações nem motivos. Uma vez membro do partido, não tenho o direito de invocar apenas uma vaga falta de confiança, porque isso abriria as portas de par em par a todas as extravagâncias e todas as arbitrariedades dos antigos círculos; sou obrigado a fundamentar a minha «confiança» ou a minha «desconfiança» com uma argumentação formal, quer dizer, referir-me a esta ou aquela disposição formalmente estabelecida no nosso programa, na nossa táctica, nos nossos estatutos. Sou obrigado a não me limitar a um «tenho confiança» ou «não tenho confiança» não fundamentado, mas reconhecer que tenho que responder pelas minhas decisões, como em geral qualquer parte integrante do partido tem que responder pelas suas, perante todo o partido; sou obrigado a seguir a via formalmente prescrita para exprimir a minha «desconfiança», para fazer triunfar as ideias e os desejos que decorrem dessa desconfiança. Do ponto de vista próprio dos círculos de que a «confiança» não tem que ser fundamentada, elevamo-nos já ao ponto de vista de partido que exige a observação de métodos formalmente estabelecidos e sujeitos a serem explicados, de exprimir e comprovar a confiança, mas a redacção arrasta-nos para trás e chama ao seu seguidismo pontos de vista novos em matéria de organização!
Vejam como raciocina a nossa chamada redacção de partido a propósito dos grupos de literatos que poderiam exigir representação na redacção. «Não nos indignaremos, não invocaremos aos gritos a disciplina» - pregam-nos estes anarquistas senhoriais, que, sempre e em toda a parte, olharam com arrogância para isso a que se chama disciplina. Nós nos «entenderemos» (sic!) com o grupo se for sério, ou então rir-nos-emos das suas exigências.
Vejam que alto espírito de nobreza se afirma aqui contra o vulgar formalismo «de fábrica»! Mas, de facto, estamos perante a mesma fraseologia dos círculos, restaurada, oferecida ao partido por uma redacção que sente que não é um organismo do partido, mas um resto de um antigo círculo. A falsidade intrínseca desta posição conduz indefectivelmente à elucubração anarquista que erige em princípio de organização social-democrata a dispersão, que em palavras, farisaicamente, se diz ser coisa passada. Não é necessária qualquer hierarquia de instituições e organismos superiores e inferiores do partido: para o anarquismo senhorial tal hierarquia é uma invenção burocrática de ministérios, departamentos, etc. (ver os artigos de Axelrod); não é necessária qualquer subordinação da parte ao todo, qualquer definição «burocrática e formal» dos processos de partido para «se entender» ou se delimitar; que as velhas questiúnculas de círculo sejam santificadas com uma fraseologia sobre os métodos de organização «autenticamente sociais-democratas»!
Eis aqui onde o proletário que passou pela escola «da fábrica» pode e deve dar uma lição ao individualismo anarquista. O operário consciente já há muito que largou as fraldas, já lá vai o tempo em que fugia do intelectual como tal. O operário consciente sabe apreciar uma bagagem de conhecimentos mais rica, o horizonte político mais vasto que encontra nos intelectuais sociais-democratas. Mas, à medida que vamos constituindo um verdadeiro partido, o operário consciente deve aprender a distinguir entre a psicologia do soldado do exército proletário e a psicologia do intelectual burguês que se pavoneia com frases anarquistas; deve aprender a exigir que cumpram os seus deveres de membros do partido não só os militantes de base, mas também «os de cima»; deve aprender a encarar com o mesmo desprezo o seguidismo em matéria de organização com que outrora o encarava no domínio da táctica!
O girondismo e o anarquismo senhorial estão inseparavelmente ligados a uma última particularidade característica da posição do novo Iskra em questões de organização - à defesa do autonomismo contra o centralismo. Este é o sentido de princípios que encerram os gritos (se acaso encerram algum(12)) contra o burocratismo e a autocracia, as queixas a propósito do imerecido desdém para com os não-iskristas» (que no congresso defenderam o autonomismo), os cómicos gritos de que se exige uma «submissão absoluta», as queixas amargas sobre o pompadurismo etc., etc. A ala oportunista de qualquer partido defende e justifica sempre o que há de atrasado em matéria de programa, de táctica e de organização. A defesa do atraso em matéria de organização (seguidismo) pelo novo Iskra está intimamente ligada à defesa do autonomismo. A verdade é que o autonomismo, em geral, está já tão desacreditado pelos três anos de propaganda do antigo Iskra que o novo Iskra tem ainda vergonha de se pronunciar abertamente a seu favor; garante-nos ainda que sente simpatia pelo centralismo, mas prova-o apenas escrevendo a palavra centralismo em itálico. Na realidade, a crítica mais ligeira aos «princípios» do quase-centralismo «autenticamente social-democrata» (e não anarquista?) do novo Iskra revela a cada passo o ponto de vista do autonomismo. Não está agora claro para toda a gente que em matéria de organização Axelrod e Mártov viraram para Akímov? Acaso não o reconheceram solenemente eles próprios nas suas significativas palavras sobre o «imerecido desdém para com os não-iskristas»? E não foi o autonomismo que Akímov e os seus amigos defenderam no congresso do nosso partido?
Foi precisamente o autonomismo (se não o anarquismo) que Mártov e Axelrod defenderam no congresso da Liga quando, com divertido zelo, tentavam demonstrar que a parte não deve subordinar-se ao todo, que a parte é autónoma na determinação das suas relações com o todo, que os estatutos da Liga do estrangeiro, que definem essas relações, são válidos contra a vontade da maioria do partido, contra a vontade do centro do partido. É precisamente o autonomismo que hoje Mártov defende abertamente nas páginas do novo Iskra (n° 60), a propósito da introdução nos comités locais de membros nomeados pelo Comité Central(13). Já não falo dos sofismas infantis com os quais o camarada Mártov defendeu o autonomismo no congresso da Liga e o defende hoje no novo Iskra(14). Interessa-me assinalar aqui esta inegável tendência para defender o autonomismo contra o centralismo como um aspecto característico do oportunismo nas questões de organização.
Tentativa talvez quase única de análise da noção de burocratismo é a que opõe no novo Iskra (n° 53) o «princípio democrático formal» (o sublinhado é do autor) ao «princípio burocrático formal». Esta oposição (infelizmente tão pouco desenvolvida e explicada como a alusão aos não-iskristas) encerra um grão de verdade. Burocratismo versus(15) democracia é de facto centralismo versus autonomismo; é o princípio de organização da social-democracia revolucionária em oposição ao princípio de organização dos oportunistas da social-democracia. Este último tenta avançar da base para o topo, e é por isso que defende, sempre que possível e tanto quanto possível, o autonomismo, a «democracia» que vai (nos casos em que há excesso de zelo) até ao anarquismo. O primeiro tende a começar pelo topo, preconizando o alargamento dos direitos e poderes do centro relativamente às partes. Na época da dispersão e dos círculos, este topo, donde queria partir a social-democracia revolucionária na sua organização, era necessariamente um dos círculos, o mais influente pela sua actividade e consequência revolucionária (no nosso caso, a organização do Iskra). Na época do restabelecimento da verdadeira unidade do partido e da dissolução nesta unidade dos círculos obsoletos, este topo era necessariamente o congresso do partido, como órgão supremo do partido. O congresso agrupa, na medida do possível, todos os representantes das organizações activas e, ao designar os organismos centrais (frequentemente com uma composição que satisfaz mais os elementos avançados do que os atrasados do partido, mais ao gosto da ala revolucionária que da sua ala oportunista), faz deles o topo até ao congresso seguinte. Assim procedem, pelo menos, os europeus da social-democracia, embora pouco a pouco, não sem esforço, não sem luta e sem querelas, este costume, odioso por princípio para os anarquistas, começa a estender-se também aos asiáticos da social-democracia.
É extremamente interessante observar que todos estes princípios característicos do oportunismo que indiquei em matéria de organização (autonomismo, anarquismo senhorial ou próprio de intelectuais, seguidismo e girondismo) se observam mutatis mutandis (alterando o que deve ser alterado) em todos os partidos sociais-democratas de todo o mundo em que exista a divisão em ala revolucionária e ala oportunista (e onde não existirá ela?). Foi o que nestes últimos tempos surgiu com singular relevo no partido social-democrata alemão, quando a derrota sofrida na 20ª circunscrição eleitoral da Saxónia (conhecida como o incidente Göhre(16)) trouxe para a ordem do dia os princípios de organização de partido. O zelo dos oportunistas alemães contribuiu em grande medida para levantar a questão de princípio a propósito deste incidente. O próprio Göhre (antigo pastor protestante, autor do conhecido livro Drei Monate Fabrikarbeiter(17), um dos «heróis» do congresso de Dresden) é um acérrimo oportunista, e o órgão dos oportunistas alemães consequentes, Sozialistische Monatshefte (Cadernos Mensais Socialistas)(18), imediatamente tomou a sua «defesa».
O oportunismo no programa está naturalmente ligado ao oportunismo na táctica e ao oportunismo em matéria de organização. O camarada Wolfgang Heine encarregou-se de expor o «novo» ponto de vista. Para dar ao leitor uma ideia da fisionomia deste intelectual típico, que, ao aderir à social-democracia, trouxe consigo a sua maneira oportunista de pensar, bastará dizer que o camarada Wolfgang Heine é um pouco menos que um camarada Akímov alemão e um pouco mais que um camarada Égórov alemão.
O camarada Wolfgang Heine entrou na liça nos Cadernos Mensais Socialistas com não menos pompa que o camarada Axelrod no novo Iskra. O título do seu artigo é já muito significativo: Notas democráticas a propósito do incidente Göhre (n° 4, Abril, Sozialistische Monatshefte). E o conteúdo não é menos tonitruante. O camarada W. Heine ergue-se contra «os atentados à autonomia da circunscrição eleitoral», defende «o princípio democrático», protesta contra a ingerência de uma «autoridade nomeada» (ou seja, da direcção central do partido) na livre eleição dos delegados pelo povo. Não se trata aqui de um incidente fortuito, diz-nos sentenciosamente o camarada W. Heine, mas de toda «uma tendência para o burocratismo e para o centralismo no partido», uma tendência, diz, que se observara anteriormente, mas que hoje se torna particularmente perigosa. É preciso «reconhecer em princípio que os organismos locais do partido são os portadores da sua vida» (plágio da brochura do camarada Mártov: Mais Uma Vez em Minoria). Não devemos «habituar-nos à ideia de que todas as decisões políticas importantes venham de um único centro», é preciso prevenir o partido contra «uma política doutrinária que perde o contacto com a vida» (extraído do discurso do camarada Mártov no congresso do partido, passagem em que declara que «a vida se imporá»)... «Se formos até ao fundo das coisas - diz o camarada W. Heine, aprofundando a sua argumentação -, se abstrairmos dos conflitos pessoais, que aqui, como sempre, desempenharam um papel de não pouca importância, veremos neste encarniçamento contra os revisionistas (o sublinhado é do autor, que parece querer aludir à distinção entre a luta contra o revisionismo e a luta contra os revisionistas) principalmente a desconfiança dos representantes oficiais do partido para com o “elemento estranho” (W. Heine aparentemente ainda não leu a brochura sobre a luta contra o estado de sítio, e é por isso que se serve de um anglicismo: Outsidertum), a desconfiança da tradição para com o que sai do habitual, da instituição impessoal contra o que é individual» (ver a resolução de Axelrod, no congresso da Liga, sobre o esmagamento da iniciativa individual), «numa palavra, a mesma tendência que já caracterizámos mais acima como tendência para o burocratismo e para o centralismo no partido».
A noção de «disciplina» inspira ao camarada W. Heine não menos nobre indignação que ao camarada Axelrod. «... Censurou-se - diz ele - aos revisionistas a sua falta de disciplina por terem escrito nos Cadernos Mensais Socialistas, órgão ao qual nem sequer queriam reconhecer carácter social-democrata, porque não está sob o controlo do partido. Já a própria tentativa de restringir a noção de “social-democrata”, já a própria exigência da disciplina no domínio da produção ideológica em que deve reinar a liberdade absoluta» (recordai: a luta ideológica é um processo e as formas de organizacão são apenas formas), «testemunham uma tendência para o burocratismo e para o esmagamento da individualidade». E W. Heine segue por aí fora fulminando em todos os tons essa detestável tendência para fundar «uma vasta organização geral, o mais centralizada possível, uma táctica, uma teoria»; fulmina a exigência de «obediência incondicional», «submissão cega», fulmina o «centralismo simplificado», etc., etc., literalmente «à Axelrod».
A discussão iniciada por W. Heine alargou-se, e como no partido alemão não havia nenhuma querela sobre a cooptação a obscurecer a discussão, como os Akímov alemães afirmam a sua fisionomia não só nos congressos, mas também, e constantemente, num órgão próprio, a discussão depressa se reduziu a uma análise das tendências de princípio da ortodoxia e do revisionismo em matéria de organização. K. Kautsky interveio (Neue Zeit, 1904, n° 28, artigo intitulado «Wahlkreis und Partei» - «Circunscrição eleitoral e partido») como um dos representantes da tendência revolucionária (acusada, bem entendido, como entre nós, de espírito «ditatorial», «inquisitorial» e outras coisas terríveis). O artigo de W. Heine - declara - «mostra o curso do pensamento de toda a corrente revisionista». Não só na Alemanha, mas também na França e na Itália, os oportunistas defendem a todo o transe o autonomismo, o enfraquecimento da disciplina do partido, a sua redução a zero; por toda a parte as suas tendências conduzem à desorganização, à degenerescência do «princípio democrático» em anarquismo. «A democracia não é a ausência de poder - ensina K. Kautsky aos oportunistas na questão da organização -, democracia não é anarquia, é a supremacia das massas sobre os seus mandatários, diferentemente de outras formas de poder, em que os pseudo-servidores do povo são de facto os seus senhores.» K. Kautsky examina minuciosamente o papel desorganizador do autonomismo oportunista nos diferentes países, mostra que precisamente a adesão à social-democracia de «uma massa de elementos burgueses»(19) reforça o oportunismo, o autonomismo e as tendências para a infracção à disciplina, recorda uma e outra vez que precisamente «a organização é a arma com a qual o proletariado se emancipará», que precisamente «a organização é para o proletariado a arma da luta de classe».
Na Alemanha, onde o oportunismo é mais débil do que na França e na Itália, «as tendências autonomistas, até agora, conduziram apenas a declamações mais ou menos patéticas contra os ditadores e os grandes inquisidores, contra as excomunhões(20) e a procura de heresias, conduziram às intrigas e querelas sem fim, cuja análise apenas conduziria a incessantes disputas».
Não é de espantar que na Rússia, onde o oportunismo no partido é ainda mais fraco que na Alemanha, as tendências autonomistas tenham gerado menos ideias e mais «declamações patéticas» e querelas.
Não é de espantar que Kautsky chegue à conclusão seguinte: «Talvez em nenhuma outra questão o revisionismo de todos os países, apesar de todas as suas diversidades e da variedade dos seus matizes, seja tão uniforme como em matéria de organização.» Ao formular as tendências fundamentais da ortodoxia e do revisionismo neste domínio, também K. Kautsky recorre à «palavra terrível»: burocratismo versus (contra) democracia. Dizem-nos, escreve K. Kautsky, que dar à direcção do partido o direito de intervir na escolha de candidatos (para deputados ao parlamento) pelas circunscrições locais, é «um atentado vergonhoso ao princípio democrático, que exige que toda a actividade política se exerça da base ao topo, pela iniciativa das massas, e não do topo à base, por via burocrática... Mas, se há um princípio verdadeiramente democrático, é que a maioria deve ter predomínio sobre a minoria, e não o contrário...» A eleição de deputados ao parlamento por qualquer circunscrição é um assunto importante para todo o partido, no seu conjunto, que por isso mesmo deve influenciar na designação dos candidatos, pelo menos através de pessoas de confiança do partido (Vertrauensmänner). «Quem considerar esta forma de agir demasiado burocrática ou centralista, que proponha que os candidatos sejam designados por votação directa de todos os membros do partido em geral (sämtliche Parteigenossen). E como isso é irrealizável, não há razão para se lamentar da falta de democracia, quando esta função, como muitas outras que dizem respeito ao partido no seu conjunto, é exercida por um ou vários organismos do partido.» Segundo o «direito consuetudinário» do partido alemão, as diferentes circunscrições eleitorais já antes «se entendiam amigavelmente» com a direcção do partido para designar este ou aquele candidato. «Mas o partido tornou-se já demasiado grande para que este direito consuetudinário tácito seja suficiente. O direito consuetudinário deixa de ser direito quando deixa de ser reconhecido como algo que se entende por si mesmo, quando as suas definições e mesmo a sua própria existência são postas em causa. Neste caso torna-se absolutamente necessário formular com exactidão este direito, codificá-lo...», passar a uma «fixação(21) mais exacta nos estatutos (statutarische Festlegung) e reforçar ao mesmo tempo o carácter rigoroso (grössere Straffheit) da organização».
Vedes assim, em circunstâncias diferentes, a mesma luta da ala oportunista e da ala revolucionária do partido sobre a questão da organização, o mesmo conflito entre autonomismo e centralismo, democracia e «burocratismo», a tendência para o enfraquecimento e a tendência para o reforço do carácter rigoroso da organização e da disciplina, a psicologia do intelectual instável e a do proletário consequente, o individualismo próprio de intelectuais e a coesão proletária. Pergunta-se: perante este conflito qual foi a atitude da democracia burguesa - não a que a menina travessa que é a história prometeu apenas mostrar um dia, em segredo, ao camarada Axelrod - mas a verdadeira, a democracia burguesa real, que na Alemanha tem também representantes não menos inteligentes e não menos observadores que nossos senhores da Osvobojdénie? A democracia burguesa alemã reagiu imediatamente à nova disputa e - como a russa, como sempre, como em toda a parte - pôs-se plenamente ao lado da ala oportunista do partido social-democrata. O destacado órgão do capital bolsista da Alemanha, Jornal de Frankfurt(22), publicou um fulminante editorial (Frankf. Ztg., 1904, 7 Apr., n° 97, Abendblatt(23)) que mostra que os plágios pouco escrupulosos a Axelrod se estão a tornar uma espécie de doença da imprensa alemã. Os terríveis democratas da Bolsa de Frankfurt fustigam a «autocracia» no Partido Social-Democrata, a «ditadura do partido», o «domínio autocrático dos chefes do partido», essas «excomunhões» com as quais se pretende «como que castigar todo o revisionismo» (recorde-se a «falsa acusação de oportunismo»), essa exigência duma «obediência cega», essa «disciplina que mata», essa exigência duma «submissão servil», de transformar os membros do partido em «cadáveres políticos» (esta é bem mais forte que a das engrenagens e parafusos)! «Toda a originalidade pessoal - exclamam os cavaleiros da Bolsa cheios de indignação perante o estado de coisas antidemocrático da social-democracia -, toda a individualidade tem que ser, vede, objecto de perseguições, porque ameaça conduzir ao estado de coisas francês, ao jauressismo e ao millerandismo, como declarou abertamente Sindermann, que apresentou o relatório sobre esta questão» no congresso partidário dos sociais-democratas saxões.
Assim, tanto quanto as novas palavrinhas do novo Iskra sobre a questão da organização tenham algum sentido de princípio, sem dúvida que esse sentido é oportunista. Esta conclusão é confirmada tanto por toda a análise no nosso congresso do partido, que se dividiu em ala revolucionária e ala oportunista, como pelo exemplo de todos os partidos sociais-democratas europeus, nos quais o oportunismo em matéria de organização se manifesta nas mesmas tendências, nas mesmas acusações, e muitas vezes nas mesmas palavrinhas. Claro que as particularidades nacionais dos diferentes partidos e a diversidade das condições políticas nos diferentes países imprimem a sua marca e fazem com que o oportunismo alemão se não assemelhe em nada ao oportunismo francês, nem o francês ao italiano, nem o italiano ao russo. Mas a semelhança da divisão fundamental de todos estes partidos em ala revolucionária e ala oportunista, a semelhança da linha de pensamento e das tendências do oportunismo nas questões de organização, ressaltam claramente apesar de toda esta diversidade de condições(24). O grande número de representantes da intelectualidade radical entre os nossos marxistas e os nossos sociais-democratas torna inevitável a existência do oportunismo, gerado pela sua mentalidade, nos mais variados domínios e sob as mais diversas formas. Lutámos contra o oportunismo nas questões essenciais da nossa concepção do mundo, nas questões de programa, e a divergência completa quanto aos objectivos a atingir conduziu inevitavelmente a uma separação irrevogável entre os sociais-democratas e os liberais que corromperam o nosso marxismo legal. Lutámos contra o oportunismo nas questões de táctica, e a nossa divergência com os camaradas Kritchévski e Akímov sobre essas questões menos importantes era, naturalmente, apenas temporária e não levou à formação de partidos diferentes. Temos agora de vencer o oportunismo de Mártov e Axelrod nas questões de organização, que são, evidentemente, ainda menos essenciais que as questões de programa e de táctica, mas que no momento actual surgem em primeiro plano na vida do nosso partido.
Quando se fala da luta contra o oportunismo é preciso não esquecer nunca um traço característico de todo o oportunismo contemporâneo, em todos os domínios: o seu carácter vago, impreciso, inapreensível. Pela sua própria natureza o oportunista evita sempre pôr as questões de maneira clara e definida, procura a resultante, arrasta-se como uma cobra entre dois pontos de vista que se excluem mutuamente, procurando «estar de acordo» com um e com outro, reduzindo as suas divergências a ligeiras modificações, a dúvidas, a votos piedosos e inocentes, etc., etc. Oportunista nas questões de programa, o camarada Ed. Bernstein «está de acordo» com o programa revolucionário do partido, e embora desejando, sem dúvida, a sua «reforma radical», considera-a inoportuna, inconveniente e menos importante que a clarificação dos «princípios gerais» da «crítica» (os quais consistem sobretudo em aceitar sem crítica os princípios e as palavrinhas da democracia burguesa). Oportunista nas questões de táctica, o camarada von Vollmar está igualmente de acordo com a velha táctica da social-democracia revolucionária, e antes se limita também a declarações enfáticas, a ligeiras emendas e ironias, sem propor qualquer táctica «ministerialista» precisa. Oportunistas em questões de organização, os camaradas Mártov e Axelrod também não apresentaram até agora, apesar de directamente exortados a fazê-lo, teses definidas de princípio que possam ser «fixadas em estatutos»; também eles desejariam, sem dúvida que desejariam, uma «reforma radical» dos nossos estatutos de organização (Iskra, n° 58, p. 2, coluna 3), mas prefeririam ocupar-se antes das «questões de organização de ordem geral» (porque uma reforma verdadeiramente radical dos nossos estatutos, centralistas apesar do primeiro parágrafo, se feita dentro do espírito do novo Iskra conduziria inevitavelmente ao autonomismo, e o camarada Mártov, é claro, não quer confessar, nem a si próprio, a sua tendência em princípio para o autonomismo). A sua posição de «princípio» sobre as questões de organização apresenta, por isso, todas as cores do arco-íris: predominam as cândidas e patéticas declamações sobre a autocracia e o burocratismo, sobre a obediência cega e as engrenagens e parafusos - declamações tão cândidas que nelas é ainda extremamente difícil distinguir o que na realidade diz respeito aos princípios do que na realidade diz respeito à cooptação. Mas quanto mais se penetra no bosque mais lenha se encontra: as tentativas de análise e de definição exacta do odioso «burocratismo» conduzem inevitavelmente ao autonomismo; as tentativas de «aprofundamento» e de fundamentação conduzem necessariamente à justificação do atraso ao seguidismo, à fraseologia girondina. Por fim, como único princípio verdadeiramente definido e que, por consequência, se manifesta na prática com particular relevo (a prática está sempre adiantada em relação à teoria) aparece o princípio do anarquismo. Ridicularização da disciplina - autonomismo - anarquismo, tal é a escada que, em matéria de organização, o nosso oportunismo ora desce ora sobe, saltando de degrau em degrau, e esquivando-se com habilidade a qualquer formulação precisa dos seus princípios(25). É exactamente a mesma gradação que apresenta o oportunismo nas questões de programa e de táctica: ridicularização da «ortodoxia», da estreiteza e do imobilismo - «crítica» revisionista e ministerialismo - democracia burguesa.
Existe uma estreita relação psicológica entre este ódio pela disciplina e a constante e monótona nota de ofensa que transparece em todos os escritos de todos os oportunistas contemporâneos em geral, e da nossa minoria em particular. Vêem-se perseguidos, oprimidos, expulsos, cercados, atropelados. Estas palavrinhas encerram bem mais verdade psicológica e política do que o supunha provavelmente o próprio autor da encantadora e espiritual piada sobre os esbofeteados e os esbofeteadores(26). Com efeito, tomai as actas do nosso congresso do partido; veremos que a minoria se compõe de todos os ofendidos, de todos aqueles que alguma vez ou em qualquer coisa foram ofendidos pela social-democracia revolucionária. Aí estão os bundistas e os da Rabótcheie Dielo, que «ofendemos» a ponto de se terem retirado do congresso, aí estão os do «Iújni Rabótchi», mortalmente ofendidos pelo massacre das organizações em geral e da deles em particular, aí está o camarada Mákhov, que ofendemos de cada vez que ele tomou a palavra (porque de cada vez não deixava de se cobrir de ridículo), aí estão, enfim, o camarada Mártov e o camarada Axelrod ofendidos pela «falsa acusação de oportunismo» a propósito do § l dos estatutos e pela sua derrota nas eleições. E todos estes amargos ressentimentos não foram a consequência fortuita de inadmissíveis ditos de espírito, de ataques acerbos, duma polémica furiosa, do bater com as portas, do brandir de punhos, como tantos filisteus pensam ainda hoje, mas sim a consequência política inevitável de todo o trabalho ideológico do Iskra durante três anos. E se, durante esses três anos, fizemos mais do que dar à língua, mas exprimimos convicções que se devem converter em actos, não podíamos deixar de combater os anti-iskristas e o «pântano» no congresso. E quando nós, juntamente com o camarada Mártov, que, de viseira levantada, se batia nas primeiras filas, tínhamos ofendido tal quantidade de pessoas, só nos faltava ofender um pouco, muito pouco, o camarada Axelrod e o camarada Mártov para que a taça transbordasse. A quantidade transformou-se em qualidade. Produziu-se uma negação da negação. Todos os ofendidos, esquecidos já das contas que tinham a saldar entre eles, lançaram-se soluçando nos braços uns dos outros e levantaram a bandeira da «insurreição contra o leninismo»(27).
A insurreição é uma coisa excelente quando os elementos avançados se insurgem contra os elementos reaccionários. Está muito bem que a ala revolucionária se insurja contra a ala oportunista. Mas é mau que a ala oportunista se insurja contra a ala revolucionária.
O camarada Plekhánov vê-se obrigado a participar neste triste assunto como prisioneiro de guerra, por assim dizer. Esforça-se por «descarregar a sua cólera» pescando frases infelizes no autor desta ou daquela resolução favorável à «maioria», e ao fazê-lo exclama: «Pobre camarada Lénine! Tem uns belos partidários ortodoxos!» (Iskra, n° 63, Suplemento.)
Pois bem, camarada Plekhánov, posso dizer-lhe que se eu sou pobre, a redacção do novo Iskra está perfeitamente na miséria. Por mais pobre que eu seja, ainda não caí numa miséria tão grande que tenha de fechar os olhos ao congresso do partido e, para exercitar a agudeza do meu espírito, tenha de ir buscar material às resoluções de gente dos comités. Por mais pobre que eu seja, sou mil vezes mais rico que aqueles cujos partidários não deixam apenas escapar casualmente uma ou outra frase infeliz, mas em todas as questões de organização, de táctica e de programa se aferram obstinada e firmemente a princípios contrários aos da social-democracia revolucionária. Por mais pobre que eu seja, não cheguei ainda ao ponto de ter que esconder do público os elogios que me fazem estes partidários. E a redacção do novo Iskra vê-se obrigada a isso.
Acaso saberá, leitor, o que é o comité de Vorónej do Partido Operário Social-Democrata da Rússia? Se o ignora, leia as actas do congresso do partido. Verá que a tendência desse comité é perfeitamente expressa pelo camarada Akímov e pelo camarada Brúker que, no congresso, combateram em toda a linha a ala revolucionária do partido, e que dezenas de vezes foram colocados entre os oportunistas por toda a gente, desde o camarada Plekhánov ao camarada Popov.
Pois bem, eis o que declara esse comité de Vorónej na sua folha de Janeiro (n.° 12, Janeiro, 1904):
«Um grande acontecimento, muito importante para o nosso partido, que cresce constantemente, teve lugar no ano passado: O II Congresso do POSDR -, congresso dos representantes das suas organizações. A convocação dum congresso do partido é uma coisa muito complexa e, sob a monarquia, muito perigosa e difícil. E por isso não é de espantar que a convocação do congresso tenha estado longe de ser perfeita, e que, embora desenrolando-se sem contratempos, o próprio congresso não tenha podido responder a todas as exigências do partido. Os camaradas que tinham sido encarregados pela Conferência de 1902 de convocar o congresso tinham sido presos, e o congresso foi organizado por pessoas que representavam apenas uma das tendências da social-democracia russa - a tendência iskrista. Numerosas organizações sociais-democratas, mas não iskristas, não foram convidadas a tomar parte nos trabalhos do congresso: é em parte por isso que a tarefa de elaborar o programa e os estatutos do partido foi cumprida pelo congresso de forma extremamente imperfeita, e os próprios delegados reconhecem que há grandes lacunas nos estatutos, “susceptíveis de acarretar perigosos mal-entendidos”. No congresso, os próprios iskristas cindiram-se, e muitos militantes eminentes do nosso POSDR, que até então se tinham mostrado, ter-se-ia dito, plenamente de acordo com o programa de acção do Iskra, reconheceram que muitos dos seus pontos de vista, defendidos principalmente por Lénine e Plekhánov, eram impraticáveis.
«Apesar de estes últimos terem triunfado no congresso, a força da vida prática, as exigências do trabalho real, no qual participam igualmente todos os não-iskristas, depressa corrigem os erros dos teóricos e, depois do congresso, introduziram já sérias modificações. O “Iskra” mudou muito e promete mostrar-se atento às exigências dos militantes da social-democracia em geral. Desta maneira, embora os trabalhos do congresso tenham de ser revistos no próximo congresso, embora não sejam satisfatórios, como os próprios delegados puderam aperceber-se, e não possam por essa razão ser aceites pelo partido como decisões indiscutíveis, no entanto o congresso esclareceu a situação do partido, forneceu bastante material para a ulterior actividade do partido no plano teórico e de organização, e foi uma experiência instrutiva de enorme interesse para o trabalho do partido no seu conjunto. As decisões do Congresso e os estatutos por ele elaborados serão tomados em consideração por todas as organizações, mas muitas delas evitarão guiar-se unicamente por eles devido às suas manifestas imperfeições.
«O Comité de Vorónej, compreendendo bem toda a importância do trabalho do partido no seu conjunto, faz-se vivamente eco de todas as questões ligadas à organização do congresso. Reconhece toda a importância do que se passou no congresso, felicita-se com a mudança verificada no “Iskra”, que se tornou o Órgão Central (órgão principal). Embora a situação no partido e no CC ainda não nos satisfaça, estamos convencidos de que, com um esforço comum, o difícil trabalho de organização do partido se aperfeiçoará. Em resposta aos falsos boatos que correm, o comité de Vorónej informa os camaradas que nem se põe a questão de o comité de Vorónej sair do partido. O comité de Vorónej compreende perfeitamente que perigoso precedente (exemplo) seria uma organização operária como o comité de Vorónej sair do POSDR, que censura isso seria para o partido, e como isso seria nocivo para as organizações operárias, que poderiam seguir este exemplo. Não devemos provocar novas cisões, mas procurar tenazmente unir todos os operários conscientes e socialistas num único partido. Além disso o II congresso não foi um congresso constitutivo, mas um congresso ordinário. A expulsão do partido só pode ser decidida pelo tribunal do partido, e nenhuma organização, nem sequer o Comité Central, tem o direito de expulsar do partido qualquer organização social-democrata. Mais ainda, o II congresso adoptou o parágrafo oito dos estatutos segundo o qual cada organização é autónoma (independente) nos seus assuntos locais, e, por isso, o comité de Vorónej tem o pleno direito de aplicar os seus pontos de vista em matéria de organização na vida e no partido.»
A redacção do novo Iskra, ao citar esta folha no seu n° 61, reproduziu a segunda parte da tirada acima transcrita, a que damos em caracteres maiores; quanto à primeira parte, a que damos em caracteres pequenos, a redacção preferiu omiti-la.
Teve vergonha.
Notas de rodapé:
(1) Estes folhetins foram incluídos na colectânea Doís Anos do «Iskra», parte II, pp. 122 e seguintes. (São Petersburgo, 1906). (Nota de Lénine para a edição de 1907. - N. Ed.) (retornar ao texto)
(2) Trata-se das opiniões do representante mais destacado do «marxismo legal», P. B. Struve, que em 1894 publicou o livro Notas Críticas sobre a Questão do Desenvolvimento Económico da Rússia. Já neste livro, uma das suas primeiras obras, Struve manifesta nitidamente as suas concepções apologéticas da burguesia. Contra as ideias de Struve e outros «marxistas legais» se pronunciou V. I. Lénine num círculo de marxistas de Petersburgo, no Outono de 1894, com um relatório intitulado Reflexo do Marxismo na Literatura Burguesa. Este relatório serviu mais tarde de base para o artigo de Lénine O Conteúdo Económico do Populismo e a Sua Crítica no Livro do Sr. Struve, escrito nos fins de 1894, princípios de 1895. (retornar ao texto)
(3) Blanquismo: corrente do movimento socialista francês dirigida por Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), destacado revolucionário e representante do comunismo utópico francês.
Os blanquistas negavam a luta de classes e acreditavam que a «humanidade se libertaria da escravatura assalariada não por meio da luta de classe do proletariado, mas graças à conspiração de uma pequena minoria de intelectuais» (V. I. Lénine). Substituindo a actividade do partido revolucionário pela de um grupo secreto de conspiradores, os blanquistas não tinham em conta a situação concreta necessária para a vitória da insurreição e desprezavam as ligações com as massas. (retornar ao texto)
(4) Trata-se do artigo de L. Mártov É assim que nos preparamos?, publicado no Iskra, no qual o autor se manifestou contra a preparação da insurreição armada de toda a Rússia, considerando a preparação de tal insurreição como utopia e conspiracionismo. (retornar ao texto)
(5) V. I. Lénine cita aqui as palavras da poesia do poeta russo M. I. Lérmontov, Jornalista, leitor e escritor. (retornar ao texto)
(6) Ver o artigo de Plekhánov sobre o «economismo», no número 53 do Iskra. Pelos vistos houve uma pequena gralha no subtítulo: em lugar de «pensando em voz alta sobre o segundo congresso do partido», deve ler-se, evidentemente, «sobre o congresso da Liga», ou talvez «sobre a cooptação». No mesmo grau em que é oportuno fazer uma cedência, em certas condições, ao tratar-se de pretensões pessoais, é inadmissível (do ponto de vista de partido e não do ponto de vista filistino) confundir os problemas que agitam o partido, substituir a questão do novo erro de Mártov e Axelrod, que começaram a virar da ortodoxia para o oportunismo, pela questão do velho erro (que ninguém, salvo o novo Iskra, recorda hoje) dos Martínov e dos Akímov, os quais talvez estejam agora dispostos a virar do oportunismo para a ortodoxia em muitos problemas do programa e da táctica. (retornar ao texto)
(7) Nesta edição, todos os sublinhados estão a negrito e não em itálico (N. Ed. Electrónica) (retornar ao texto)
(8) Para não falar já de que o conteúdo do trabalho do nosso partido foi estabelecido no congresso (no programa, etc.) no espírito da social-democracia revolucionária apenas à custa de uma luta contra esses mesmos anti-iskristas e contra esse mesmo pântano cujos representantes predominam numericamente na nossa «minoria». No que diz respeito ao «conteúdo», é interessante comparar, por exemplo, seis números do antigo Iskra (46-51) com doze números do novo Iskra (52-63). Mas deixemos isto para outra vez. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(9) Palavras da letra do Hino do moderno socialista russo. (retornar ao texto)
(10) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 7, p. 24. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(11) Oblómov. personagem principal do romance homónimo de I. A. Gontcharov. O nome de Oblómov tornou-se sinónimo de preguiça, rotina, estagnação e imobilismo. (retornar ao texto)
(12) Deixo de lado aqui, como em geral em todo este parágrafo, o significado «cooptacionista» destes gritos. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(13) Trata-se do artigo de L. Mártov Na Ordem do Dia publicado a 25 de Fevereiro de 1904 no Iskra. Nesse artigo Mártov pronunciava-se a favor da «independência» dos comités locais do partido em relação ao Comité Central do POSDR na solução da questão da composição dos comités locais e atacava o Comité de Moscovo, que durante o debate deste problema adoptou a resolução sobre a submissão do Comité de Moscovo a todas as decisões do Comité Central em virtude do § 9 dos estatutos do partido. (retornar ao texto)
(14) Examinando os diversos § § dos estatutos, o camarada Mártov passou por alto precisamente o artigo que trata das relações entre o todo e a parte: o CC «distribui as forças do partido» ( § 6). Será possível distribuir as forças sem transferir os militantes de um comité para outro? Até chega a ser incómodo deter-se em tais verdades elementares. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(15) Versus: em oposição a. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(16) Göhre tinha sido eleito deputado ao Reichstag em 16 de Junho de 1903 na 15ª circunscrição da Saxónia; mas depois do congresso de Dresden renunciou ao mandato; os eleitores da 20ª circunscrição, vaga depois da morte de Rosenow, quiseram propor de novo a candidatura de Göhre. A direcção central do partido e o comité central de agitação da Saxónia opuseram-se e, não tendo o direito de proibir formalmente a candidatura de Göhre, conseguiram no entanto que Göhre renunciasse a ela. Nas eleições, os sociais-democratas sofreram uma derrota. (Nota do Autor)
(O Congresso de Dresden da social-democracia alemã realizou-se em 13-20 de Setembro de 1903. No centro da atenção do congresso estava a questão da táctica do partido e da luta contra o revisionismo. No congresso foram criticadas as concepções revisionistas de E. Bernstein, P. Göhre, E. David, W. Heine e alguns outros sociais-democratas alemães. Porém, o congresso não revelou uma consequência suficiente na luta contra o revisionismo, os revisionistas da social-democracia alemã não foram expulsos do partido e após o congresso continuaram a propaganda das suas concepções oportunistas.) (retornar ao texto)
(17) Três meses como operário numa fábrica. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(18) Sozialistische Monatshefte (Cadernos Mensais Socialistas): revista, órgão principal dos oportunistas alemães e um dos órgãos do oportunismo internacional. Publicou-se em Berlim de 1897 a 1933. Durante a primeira guerra mundial (1914-1918) ocupou uma posição social-chauvinista. (retornar ao texto)
(19) Como exemplo K. Kautsky cita Jaurès. À medida que se desviavam para o oportunismo, tais homens «deviam considerar inelutavelmente a disciplina do partido como coacção inadmissível da sua livre personalidade». (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(20) Bannstrahl - anátema. É o equivalente alemão do «estado de sítio» e das «leis de excepção» russos. É a «palavra terrível» dos oportunistas alemães. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(21) É extremamente instrutivo confrontar estas notas de K. Kautsky sobre a substituição do direito consuetudinário, tacitamente reconhecido, por um direito formalmente inscrito em estatutos, com toda a «renovação» que atravessa o nosso partido em geral e a redacção em particular, depois do congresso do partido. Cf. o discurso de V. I. Zassúlitch (no congresso da Liga), pp. 66 e segs., que provavelmente não compreende plenamente todo o alcance desta renovação. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(22) Jornal de Frankfurt (Frankfurter Zeitung): jornal diário, órgão dos grandes bolsistas alemães, foi editado em Frankfurt-am-Main de 1856 a 1943. (retornar ao texto)
(23) Jornal de Frankfurt, 1904, 7 de Abril, n.° 97, edição da tarde. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(24) Ninguém duvidará agora de que a antiga divisão dos sociais-democratas russos, quanto às questões de táctica, em economistas e políticos, correspondia à divisão de toda a social-democracia internacional em oportunistas e revolucionários, embora existisse grande diferença entre os camaradas Martínov e Akímov, por um lado, e os camaradas von Vollmar e von Elm, ou Jaurès e Millerand, por outro. Do mesmo modo, é inevitável a semelhança das divisões fundamentais sobre as questões de organização, apesar da enorme diferença de condições existente entre os países privados de direitos políticos e os países politicamente livres. É extremamente característico que a redacção do novo Iskra, tão aferrada aos princípios, depois de ter tratado de relance da discussão entre Kautsky e Heine (n° 64), tenha ignorado, temerosa, o problema das tendências de princípio de todo o oportunismo e de toda a ortodoxia nas questões de organização. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(25) Quem recordar a discussão sobre o § l, verá agora claramente que o erro do camarada Mártov e do camarada Axelrod acerca do §1 conduz inevitavelmente, desenvolvido e aprofundado, ao oportunismo em matéria de organização. A ideia básica do camarada Mártov - a auto-inscrição de cada um no partido - é precisamente a falsa «democracia», a ideia de estruturar o partido da base para o topo. A minha ideia, pelo contrário, é «burocrática» no sentido de que o partido deve ser estruturado do topo para a base, começando pelo congresso e continuando pelas diversas organizações do partido. Tanto a psicologia de intelectual burguês como as frases anarquistas e as elucubrações oportunistas e seguidistas manifestaram-se já na discussão sobre o §1. No Estado de Sítio (p. 20), o camarada Mártov fala do «trabalho do pensamento que começou» no novo Iskra. Isso é verdade no sentido de que ele e Axelrod dirigem efectivamente o pensamento por esse rumo novo, começando pelo § l. O pior é que esse rumo é oportunista. Quanto mais «trabalharem» nesse rumo, quanto mais limpo estiver o seu trabalho de querelas mesquinhas sobre a cooptação, tanto mais se afundarão no pântano. O camarada Plekhánov compreendeu-o claramente já no congresso, e, no seu artigo O Que Não Se Deve Fazer, advertiu-os pela segunda vez: estou disposto mesmo a cooptar-vos, mas não sigais esse caminho, que só conduz ao oportunismo e ao anarquismo. Mártov e Axelrod não aceitaram esse bom conselho: como? não continuar? Dar razão a Lénine em que a cooptação não passa de uma querela mesquinha? Nunca! Demonstrar-lhe-emos que somos gente de princípios! E demonstraram-no. Demonstraram a todos com plena evidência que, se têm princípios novos, são os princípios do oportunismo. (Nota do Autor) (retornar ao texto)
(26) Trata-se da Breve Constituição do POSDR, obra burlesca de Mártov, publicada em suplemento ao seu artigo Na Ordem do Dia (Iskra, n° 58, de 25 de Janeiro de 1904). Ao ironizar a propósito dos princípios do bolchevismo no campo da organização e ao queixar-se duma atitude pretensamente injusta para com os mencheviques, Mártov, na sua Constituição, escreveu sobre «esbofeteados» e «esbofeteadores», referindo-se aos mencheviques e aos bolcheviques. (retornar ao texto)
(27) Esta admirável expressão é do camarada Mártov (Estado de Sítio, p. 68). O camarada Mártov aguardou o momento de multiplicar o seu voto por cinco para organizar a «insurreição» contra mim só. O camarada Mártov polemiza com bem pouca habilidade: quer aniquilar o seu adversário dizendo-lhe as maiores amabilidades. (Nota do Autor) (retornar ao texto)