A História do Trotskismo Norte-Americano
J. P. Cannon

Conferência III
O Começo da Oposição de Esquerda


A última conferência nos trouxe a discussão o ano de 1927 no Partido Comunista dos Estados Unidos. A luta fundamental entre marxismo e stalinismo havia se posto em marcha dentro do Partido Comunista Russo fazia já quatro anos. Esta havia continuado também em outras seções da Comintern, incluída a nossa, porém não sabíamos.

Os embates da grande luta no Partido Russo eram confinados desde o princípio a questões  russas extremamente complexas. Muitas delas eram novas e pouco familiares para nós, norte-americanos, que sabíamos muito pouco acerca dos problemas internos da Rússia. Era muito difícil  para nós entender a causa de sua natureza teórica profunda — depois de tudo, até essa época não havíamos tido uma educação teórica e a dificuldade foi incrementada pelo fato de que não nos apresentavam a informação completa. Não nos apresentavam os documentos da Oposição de Esquerda russa, nos ocultavam os argumentos. Não nos diziam a verdade, pelo contrário, sistematicamente nos mantinham com tergiversações, distorções e documentação unilateral.

Eu fiz esta explicação em benefício daqueles que se inclinavam a perguntar: “por que não se levantou desde o início a bandeira do trotskysmo?”. Se as coisas são muito claras agora para qualquer estudioso sério do movimento, “por que não se pôde entender nos primeiro dias?”. A explicação que dei nunca foi considerada pela gente que vê estas grandes disputas  separadas e apartadas do mecanismo da vida do partido. Aquele que não arca com com responsabilidades, que é um estudioso ou comentarista ou observador de fora, não necessita nenhuma  precaução ou restrição. Se tem dúvidas e incertezas se sente perfeitamente livre para expressá-las. Este não é o caso de um revolucionário de um partido. Ele toma sobre si a responsabilidade de chamar aos trabalhadores, sobre as bases de um programa, a reunir-se em um partido a que dedicarão seu tempo, sua energia, seus recursos e até suas vidas, deve tomar uma atitude séria para com o partido. Não pode, em boa consciência, chamar a pôr abaixo um programa até que não tenha elaborado um novo. Descontentamentos e dúvidas não são um programa. Não se pode organizar as pessoas sobre essas bases. Uma das mais forte condenações que Trotsky dirigiu a Schatman, nos primeiros dias de nossa disputa sobre a questão russa em 1939 foi esta, que Schatman, quem começou a fomentar dúvidas sobre a correção de nosso velho programa  sem ter em sua mente nenhuma idéia clara de um novo, atravessou o partido irresponsavelmente expressando suas dúvidas. Trotsky disse, o partido não pode deter-se. Não pode fazer um programa fora de dúvidas. Um revolucionário sério e responsável  não pode molestar a seu partido  meramente porque se há tornado descontente  com  esta, aquela ou outra coisa. Deve esperar até estar preparado para propor concretamente um programa diferente, ou um outro partido.

Essa foi minha atitude no Partido Comunista naqueles primeiros anos. De minha parte, sentia grande insatisfação. Não estive nunca entusiasmado pela luta no partido russo. Não podia entende-la. E como a batalha se fazia mais intensa e se incrementavam as perseguições contra a Oposição de Esquerda Russa, representada por grandes líderes da revolução como Trotsky, Zinoviev, Radek e Rakovsky — a dúvida  e o descontentamento se acumulavam em minha mente. Isto militava contra minha posição e contra a posição de nossa fração nos eternos  conflitos dentro do PC. Tentávamos todavia resolver as coisas em escala norte-americana: um erro comum. Penso que uma das lições mais importante que nos deu a IV Internacional é que na época moderna não se pode construir um partido político revolucionário somente sobre as bases nacionais. Se deve começar com um programa internacional, e sobre estas bases construir seções nacionais de um movimento internacional.

Esta, pela via da desagregação, foi uma das grandes disputas entre os trotskystas e os brandleristas, a gente do Bureau de Londres, Pivert, etc, que afirmavam a idéia de que não se pode falar de uma nova internacional sem antes construir fortes partidos nacionais. Segundo eles, só depois de haver criado formidáveis partidos de massas em vários países, se pode federá-los em uma organização internacional. Trotsky procedeu justo de forma oposta. Quando foi deportado da Rússia em 1929 e foi capaz de tomar seu trabalho internacional com as mãos livres, propos a idéia de começar com um programa internacional. Se deve organizar as pessoas, não importa o pouco que possam ser em cada país, sobre as bases de um programa internacional e gradualmente construir suas seções nacionais. A história deu seu veredito sobre esta disputa. Todos aqueles partidos que começaram com uma aproximação nacional e quiseram expulsar este problema da organização internacional, sofreram o naufrágio. Os partidos nacionais não podem deixar raízes porque nesta época internacional não há mais espaço para estreitos programas nacionais. Só a IV Internacional, começando em cada país a partir do programa internacional,  há sobrevivido.

Este princípio não era compreendido por nós na primeira época do Partido Comunista. Engordávamos na luta nacional na América do Norte. Víamos a Internacional Comunista como uma ajuda para nossos problemas nacionais. Não queríamos molestarnos com os problemas de outras seções ou da Comintern de conjunto. Este erro fatal, esta estreita visão nacional, nos empurrou ao beco sem saída  das lutas fracionais.

As coisas se faziam mais críticas para nós. Nenhuma das frações queria romper ou deixar o partido. Todos eram leais, fanáticos leais a Comintern e não pensavam em romper com ela. Porém, a desalentadora situação interna se fazia pior e aparecia sem perspectivas. Parecia óbvio que devíamos encontrar ou bem um modo de unir as frações ou permitir  que uma se fizesse predominante. Alguns dos mais sábios, ou melhor, alguns dos mais ladinos, e aqueles que tinham as melhores fontes de informação de Moscou, começaram a fazer o necessário para ganhar o favor da Comintern e assim usar o grande peso de sua autoridade do lado de sua fração, que era a enérgica e agressiva luta contra o trotskysmo. Desde Moscou foram ordenadas campanhas contra o trotskysmo em todos os partidos do mundo. As expulsões de Trotsky e Zinoviev  em 1927 foram seguidas por demandas de que todos os partidos tomassem imediatamente uma posição, com a ameaça implícita de represálias de Moscou contra qualquer indivíduo ou grupo que não tomasse a posição “correta”, quer dizer, em favor das expulsões. Se levaram a cabo campanhas de “esclarecimento”. Os lovestonistas eram a vanguarda  na luta contra o trotskysmo. Assim conseguiram o apoio da Comintern e gozaram deste apoio em todo aquele período. Organizaram campanhas de “esclarecimento”. Reuniões de membros, de ramos, de seções, aconteciam em todos os partidos, em que os representantes do Comitê Central eram enviados para ilustrar aos demais membros sobre a necessidade das expulsões do organizador do Exército Vermelho e do Presidente da Comintern.

Os fosteristas, que não eram tão rápidos e astutos como os lovestonistas, porém tinham com eles bons tratos, seguiram-nos imediatamente. Realmente jogavam corrida com os lovestonistas para mostrar quem era o maior anti-trotskysta. Se gastavam em fazer largos discursos sobre o tema.

Agora, olhando para trás, é uma circunstância interessante, que quase pré-figurava o que ia acontecer, que eu nunca tomei parte em nenhuma dessas campanhas. Votei resoluções esteriotipadas, devo dizer, lamentavelmente, porém nunca fiz um simples discurso ou escrevi  um simples artigo contra o trotskysmo. Isto não foi assim porque eu era trotskysta. Não queria por-me fora da linha da maioria do partido russo e da Comintern. Me neguei a tomar parte nas campanhas só porque não entendia o que se passava. Bertram D. Wolfe, principal lugar-tenente de Lovestone, era um dos maiores anti-trotskystas. Diante da mais leve provocação fazia um discurso de duas horas explicando como Trotsky estava equivocado sobre a questão agrária na Rússia. Eu não podia fazer isso porque não entendia da questão. Ele tampouco entendia, porém em seu caso, este não era um grande obstáculo. O objetivo real dos lovestonistas e os fosteristas em fazer esses discursos e levar a cabo estas campanhas era congraçar-se com o poder de Moscou.

Alguém  podia perguntar “por que não fiz discursos em favor de Trotsky?”. Eu não podia tampouco fazer isso porque não entendia o programa, meu estado mental era então a dúvida e a insatisfação. Se não tivesse nenhuma responsabilidade no partido, se fosse um mero comentador e observador, podia meramente falar de dúvidas. Não se pode fazer isso em um partido político sério. Se alguém não sabe o que dizer, não deve dizer nada. O melhor é permanecer em silêncio.

O Comitê Central do Partido Comunista convocou um plenum em fevereiro, o famoso plenum de fevereiro de 1928, que foi a uns poucos meses depois da expulsão de Trotsky, Zinoviev e todos os líderes da Oposição Russa. Já começava uma grande campanha para mobilizar os partidos do mundo em apoio à burocracia de Stálin. Nesse plenum brigamos e discutimos sobre as frações e o partido, a estimativa da situação política, a questão sindical, a questão da organização — brigamos furiosamente sobre todas estas questões. Era esse nosso real interesse. Depois chegamos ao último ponto da pauta, a questão russa. B. D. Wolfe, como porta-voz da maioria lovestonista a “explicou” por um longo tempo, cerca de 2 horas. Depois ficou aberta a discussão. Um por um, cada membro das frações lovestonista e fosterista tomaram a palavra para expessar seu acordo com o informe e agregar alguns toques para mostrar que entendiam a necessidade das expulsões e que estavam a favor delas.

Não falei. Naturalmente, por causa de meu silêncio, os outros membros da fração Cannon se sentiram algo constrangidos para falar. Não lhes agradava a situação e organizaram  uma série de campanhas de pressão. Recordo esse dia, como me senti no fundo do hall, descontente, amargurado e confuso, seguro de que havia algo sobre a questão porém não sabia o que era isso. Bill Dunne, a ovelha negra da família Dunne, que era nesse momento um membro do Comitê Político e meu mais estreito associado, veio com um par de companheiros. “Jim, tu deves falar sobre esta questão. É a questão russa. Eles cortarão nossa fração em pedacinhos se não dizes nada sobre esse informe. Levanta-te e dizes umas poucas palavras para o registro”.

Neguei-me a fazê-lo. Eles insistiram porém eu estava muito firme. “Não vou fazer isso. Não vou falar sobre essa questão”. Isto não era “sabedoria política” de minha parte, ainda que retrospectivamente pode parecer assim. Isto não foi de modo algum uma antecipação do futuro. Foi simplesmente uma questão temperamental, um caprichoso sentimento pessoal que tinha sobre a questão. Não tínhamos nenhuma informação real. Não sabíamos qual era a verdade. E nesta feita, 1927, as disputas no partido russo haviam começado a implicar questões internacionais — a questão da revolução chinesa e do Comitê anglo-russo. Quase todos os membros do nosso partido pode contar agora quais foram os problemas da revolução chinesa porque desde essa época, foram publicados extensos materiais. Havíamos educado nossos jovens camaradas sobre as lições da revolução chinesa. Porém, em 1927, nós provincianos norteamericanos, não sabíamos nada sobre isto. A China estava muito distante. Nunca vimos nenhuma das teses da Oposição Russa. Tampouco entendíamos bem a questão colonial. Nem os profundos princípios teóricos envolvidos na questão chinesa e a disputa que se seguiu, pelo que honestamente não podíamos tomar posição. A questão do comitê anglo-russo parecia um pouco mais clara para mim. Era um ponto da grande luta entre a Oposição Russa e os estalinistas sobre a formação do Comitê anglo-russo, um comitê de sindicalistas russos e ingleses que se transformaram num substituto do trabalho independente comunista na Inglaterra. Esta política afogou a atividade independente do Partido Comunista inglês no momento crucial da greve geral de 1926 nesse país. Quase por acidente, na primavera do mesmo ano, cruzei com um dos documentos da Oposição Russa sobre essa disputa que teve grande influência sobre mim. Sentia que, no mínimo, sobre a questão do Comitê anglo-russo, a Oposição tinha a linha correta. Por distintas razões, fui convencendo-me de que não eram contra-revolucionários, como haviam sido pintados.

Em 1928, depois do plenum de fevereiro, fiz uma de minhas mais ou menos regulares viagens nacionais. Tinha o hábito de fazer ao menos um tour pelo país de costa a costa, todos os anos ou a cada dois anos, para ter assim um retrato da América do Norte real, para sentir o que estava se passando na América do Norte. Olhando para trás, agora, pode-se perceber que muitas das idéias irreais, errôneas e muitas das inclinações estreitas de alguns líderes do partido em Nova York, se devem ao fato de que têm vivido todas as suas vidas na ilha de Manhattan e não tinham o sentimento real deste grande e diversificado país. Fiz meu tour em 1928 sob o auspício da ILD (International Labor Defense) que se prolongou por quatro meses. Queria uma oportunidade para pensar umas poucas coisas sobre a questão russa, que me preocupava muito mais que qualquer outra coisa. Vicent Dunne me tem recordado mais de uma vez, que em meu regresso desde a costa do Pacífico, quando me detive em Mineápolis, ele e o camarada Skoglund me perguntaram entre outras coisas o que pensava sobre a expulsão de Trotsky e Zinoviev, e eu lhes respondi “Quem sou eu para condenar aos líderes da revolução russa”, indicando-lhes assim que não era muito simpatizante da expulsão de Trotsky e Zinoviev. Recordaram isto quando a disputa se instalou em campo aberto, uns poucos meses mais tarde.

Ao fim da primavera  e começo do verão de 1928, foi chamado em Moscou o VI Congresso Mundial da Comintern. Partimos para Moscou como o dissemos em outras ocasiões, em uma grande delegação representando todas as frações. Indo ali, lamento dizê-lo, não preocupados com os problemas do movimento internacional, aos quais nós como representantes de uma seção poderíamos ajudar a resolver, mas sim que todos nós estávamos preocupados mais ou menos primeiramente com nossas próprias pequenas brigas no partido norteamericano, vindo ao Congresso Mundial para ver que ajuda poderíamos obter para fritar nosso próprio peixe, aqui em casa. Desafortunadamente essa era a atitude praticamente de todos. Saindo para o congresso eu não tinha nenhuma expectativa de ter uma real clarificação sobre a questão russa, a disputa com a Oposição. No momento, parecia que a Oposição havia sido completamente destruída. Os líderes foram expulsos de seus partidos. Trotsky estava exilado em Alma-Ata. Ao redor do mundo, os simpatizantes que podia ter haviam sido expulsos de seus partidos. Parecia não haver perspectivas de reviver a questão. Sem dúvida isto continuava molestando-me e me incomodava tanto que não pude tomar parte efetiva em nossa luta fracional em Moscou.

Naturalmente, continuamos a disputa fracional quando aí chegamos. Imediatamente alinhamos nossas delegações nas comissões e começamos a ver o que podíamos fazer para derrubar a cada uma das outras frações, lançando acusações mútuas e debatendo eternamente as coisas antes da comissão. Eu fui mais ou menos um participante meio fosco no assunto. Nesse momento começaram a dividir as comissões, quer dizer os membros líderes de cada delegação foram nomeados para várias comissões do Congresso, uns na comissão sindical, outros na comissão política e alguns na de organização. Além destas tinha a Comissão de Programa. O VI Congresso se comprometeu a adotar pela primeira vez um programa, um programa final da Comintern. A Comintern foi organizada em 1919 e até 1928, nove anos mais tarde, ainda não tinha um programa definitivo. É simplesmente uma indicação de quanto seriamente os grandes marxistas tomavam a questão do programa e cuidadosamente o elaboravam. Começaram com uma série de resoluções básicas em 1919. Adotaram outras em 1920, 21, 22. No IV Congresso tinham o começo de uma discussão sobre o programa. O V Congresso não prosseguiu a questão. Assim, chegamos ao VI Congresso em 1928, tendo ante nós um rascunho de um programa que sustentava a autoridade de Bukharin e Stálin.

Eu fui posto na comissão de programa, em certa medida porque os outros líderes não estavam muito interessados no programa. “Deixem isso para Bukharin. Não queremos preocupar-nos com isso. Queremos estar na comissão política que vai decidir sobre a nossa luta fracional, na comissão sindical, ou em alguma outra comissão prática que vai decidir algo sobre alguma pequena questão sindical que nos preocupa”. Este era o sentimento geral da delegação norte-americana. Eu fui empurrado para dentro da comissão de programa como uma espécie de honra sem susbstância. E era a verdade, não estava tampouco interessado nele.

Porém, isto se tornou um grande erro, por-me na comissão de programa. Custou a Stálin mais que uma dor de cabeça, para não falar de Foster, Lovestone e os outros. Porque Trotsky, exilado em Alma-Ata, expulso do partido russo e da Internacional Comunista, apelou ao Congresso. Vocês percebem, Trotsky simplesmente não se afastou do partido. Corretamente regressou depois de sua expulsão na primeira oportunidade, à convocatória ao VI Congresso da Comintern, não só com um documento apelando sobre seu caso, mas com uma contribuição teórica tremenda sob a forma de crítica ao esboço do programa de Bukharin e Stálin. O documento de Trotsky se intitulava: “O projeto de programa da Internacional Comunista: uma crítica de fundamentos”. Através de alguns deslizes no aparato de Moscou, que supunha ser burocraticamente hermético, este documento de Trotsky chegou dentro da sala de tradução da Comintern. Caiu na secretaria, onde havia uma dezena ou mais de tradutores e estenógrafos sem nada mais para fazer. Eles receberam o documento e distribuiram aos chefes das delegações e aos membros da comissão de programa. Então, foi posto em minha pasta e traduzido ao inglês. Maurício Spector, um delegado do partido canadense, e que em algumas coisas tinha o mesmo modo de pensar que eu, estava também na comissão de programa e conseguiu uma cópia. Deixamos os encontros de  comissões e as sessões do Congresso se foram ao diabo enquanto líamos  e estudávamos  esse documento. Depois soube o que tinha que fazer e ele também. Nossas dúvidas foram resolvidas. Estava tão claro como a luz do dia que a verdade marxista estava do lado de Trotsky. Fizemos um bloco ali e depois — Spector e eu — que voltássemos para casa começaríamos uma luta sob a bandeira do trotskysmo.

Não começamos a luta em Moscou, no Congresso, se bem que já estávamos convencidos. Desde o dia em li aquele documento me considerei, sem uma simples vacilante dúvida,  discípulo de Trotsky. Pelo motivo de que não levantamos a briga em Moscou, alguns puristas que se mantiveram à margem poderiam novamente questionar: por que não tomaram a palavra no VI Congresso e falaram por Trotsky?”. A reposta é que não podíamos servir  melhor a nossos fins políticos fazendo isso. A Comintern já estava bem stalinizada. O Congresso foi manobrado. Para nós, haver descolado nossas posições completas no Congresso, provavelmente resultasse em nossa prisão em Moscou até haver sido cortados em pedacinhos e isolados em casa. Lovestone, quando chegou sua vez, foi pego em sua trama de Moscou. Minha obrigação e minha tarefa política, como eu via, era organizar uma base de apoio em meu próprio partido para a Oposição Russa. Para fazer isto devia primeiro chegar em casa. Portanto, me mantive quieto no Congresso stalinizado. A franqueza entre amigos é uma virtude, com os inimigos inescrupulosos é um atributo de um néscio.

Apesar disso, não fomos muito cautelosos em guardar nossos sentimentos. Eu, especialmente fui considerado mais e mais como “casado” com o trotskysmo. Gitlow realçou em seu livro — fantasma de arrependimento — que a GPU havia checado minhas atividades em Moscou e havia informado à Comintern que “Cannon em conversas com russos havia demonstrado ter fortes ensinamentos trotskystas”. Me tinham sob suspeita, porém vacilavam em proceder contra mim muito bruscamente. Pensavam que provavelmente podiam despachar-me e isto seria muito melhor  que ter um escândalo aberto. Tinham boas razões para presumir que eu faria um escândalo se chagasse-se a uma luta aberta.

Então regressamos, creio que em setembro, sem nada resolvido, tanto que a disputa fracional no partido norte-americano estava comprometida. Os lovestonistas haviam avançado umas poucas polegadas na disputa em Moscou, porém ao mesmo tempo, Stálin havia incluído alguns requisitos nas resoluções que assentavam as bases para safar-se mais tarde dos lovestonistas. Eu trouxe comigo de contrabando da Rússia a crítica de Trotsky ao projeto do programa. Regressamos e imediatamente agí com minha tarefa determinada de recrutar uma fração para Trotsky.

Vocês poderiam pensar que era uma coisa fácil de fazer. Porém eis aqui o estado de coisas. Trotsky havia sido condenado em todos os partidos da Internacional Comunista, e mais uma vez, condenado  pelo VI Congresso, como contra-revolucionário. Nem um só membro no partido era conhecido como franco seguidor do trotskysmo. O partido inteiro estava arregimentado contra isso. Naquela época o partido já não era uma dessas organizações democráticas onde alguém pode levantar uma questão e ter uma discussão limpa. Declarar-se a favor de Trotsky e da Oposição Russa significava estar sujeito a acusação de traidor contra-revolucionário e ser expulso no ato, sem nenhuma discussão. Sob estas circunstâncias a tarefa era recrutar uma fração nova em segredo, antes que chegasse a explosão inevitável, com a perspectiva certa de que esta fração, não importa quão grande ou pequena poderia ser, sofreria a expulsão e teria que lutar contra os stalinistas, contra o mundo inteiro, para criar um novo movimento.

E desde o começo eu não tinha a mínima dúvida sobre a magnitude da tarefa. Se nos permitissemos alguma ilusão, seríamos tão desapontados pelos resultados que podíamos ter quebrado. Comecei tranquilamente a buscar indivíduos e a falar com eles conspirativamente. Rose Karsner foi minha primeira aderente firme. Ela nunca titubiou desde este dia até hoje. Shachtman e Abern, que trabalhavam comigo na Internacional Labor Defense e eram ambos membros do Comitê Nacional, embora não do Comitê Político, se uniram a mim no novo grande empenho. Logo o fizeram outros poucos. Estávamos fazendo bastante bem, progredindo um pouco aqui e ali, trabalhando cautelosamente todo o tempo. Corría o rumor que Cannon era trotskysta porém eu nunca disse abertamente e ninguém sabia o que fazer com esse rumor. Ademais, havia uma pequena complicação na situação do partido que também trabalhava a nosso favor. Como já havia contado, o partido estava dividido em três frações, porém, a fração de Foster e a fração de Cannon estavam trabalhando em um bloco e tiveram  neste momento um encontro de direções. Isso pôs aos fosteristas entre o diabo e o precipício. Se eles não expunham ao trotskysmo escondido e o combatiam energicamente, perderiam a simpatia e o apoio de Stálin. Porém, por outro lado, se se punham rudes conosco  perdiam nosso apoio, não podiam esperar ganhar a maioria na próxima convenção. Estavam rasgados pela indecisão e nós exploramos suas contradições cruelmente.

Nossa tarefa era difícil. Tínhamos uma cópia do documento de Trotsky, porém não tínhamos como duplicá-la. Não tínhamos nem estenógrafo, nem máquina de escrever, nem mimeógrafo, nem dinheiro. A única maneira em que podíamos operar era apropriar-se cuidadosamente de indivíduos selecionados, despertar suficiente interesse e depois persuadi-los de que viessem a minha casa e lessem o documento. Ganhamos umas poucas pessoas e eles nos ajudaram a divulgar o envangelho em círculos mais amplos.

Finalmente, depois de um mês ou algo mais, fomos expostos por uma pequena indiscreção de parte de um dos camaradas, e tivemos que enfrentar prematuramente o fato no bloco Foster-Cannon. Os fosteristas o levantaram na forma de interrogatório. Haviam escutado isto e aquilo e queriam uma explicação. Era claro que estavam muito preocupados e também indecisos. Nós tomamos a ofensiva. Eu disse: “Considero como um insulto para qualquer pessoa querer examinar-me. Minha posição no partido há sido muito claramente estabelecida a 10 anos e nego a qualquer pessoa a questão”. Assim, conseguimos, através do descaramento outra semana mais, e nessa semana uns poucos novos convertidos aqui e ali. Depois chamaram outro encontro do bloco para considerar novamente a questão. Para esse momento Hathaway havia regressado de Moscou. Havia estado na tão nomeada Escola Lenin de Moscou, na realidade uma escola de stalinismo. Havia sido avivado na escola de Stálin  e sabia melhor que os sapateiros locais como proceder contra o trotskysmo. Disse que a forma de proceder é fazer uma moção: “Esta comissão condena o trotskysmo como contra-revolucionário” e ver se todos aderem a moção. Objetamos a isto em seu fundamento — dissimuladamente formal porém uma tática necessária no trato com uma mente policialesca, graduada na escola de Stálin — que a questão do “trotskysmo” havia sido decidida fazia muito e que não havia  absolutamente nenhuma razão em levantar esse assunto de novo. Dissemos que nos recusávamos a ser parte de qualquer mistura amarga.

Debatemos isso por quatro ou cinco horas e a esta altura eles não sabiam o que fazer conosco. Enfrentavam este dilema: se se manchavam com o trotskysmo perderiam a simpatia de Moscou, se ao contrário, rompiam conosco, sua causa, obter a maioria, carecia de expectativas, e por isso estava implicada. Eles queriam a maldita maioria e abrigavam a esperança — e como a esperavam! — que um astuto companheiro como Cannon eventualmente teria juízo e não sairia e começaria uma fútil batalha por Trotsky nos últimos dias sem dizer diretamente. Lhes demos um pequeno campo para pensar que podia ser assim, a decisão foi proposta novamente.

Ganhamos cerca de duas semanas com este assunto. Finalmente os fosteristas decidiram entre eles que o assunto se estava pondo muito quente. Escutavam mais e mais rumores de que Cannon, Shachtman e Abern faziam proselitismo para o trotskysmo entre membros do partido. Os fosteristas tinham um pânico mortal de que os lovestonistas lhes ganhassem de mão e os acusassem de ser cúmplices. No desespero nos expulsaram do encontro conjunto do bloco e nos acusaram ante o Comitê Político. Fomos julgados em uma reunião conjunta do Comitê Político e a Comissão Central de Controle. Reportamos o julgamento nas primeiras edicões de The Militant. Naturalmente foi um julgamento arranjado, porém tivemos um campo completo para fazer um montão de discursos e para contradizer os argumentos dos fosteristas. Isto não foi pela democracia partidária, senão que nos deram nossos “direitos” porque os lovestonistas, que estavam em maioria no Comitê Político, estavam ansiosos por comprometer aos fosteristas. Para conseguir seus propósitos nos deram uma pequena via livre e nós a exploramos o mais possível. O julgamento se prolongava fastidiosamente dia após dia — mais e mais líderes partidários e funcionários eram convidados a assistir — até que finalmente tivemos uma audiência de cerca de 100. Até aí não havíamos admitido nada. Havíamos nos resumido a contradizer seus argumentos, compro-meter aos fosteristas, e uma coisa e outra. Finalmente, quando nos cansamos disto, e dado que o informe sobre o que estava se passando  foi difundido por todo o partido, decidimos romper. Li à uma audiência algo atemorizada de funcionários do partido uma declaração onde nos declarávamos 100% em apoio a Trotsky e a Oposição Russa em todas as questões principais e anunciamos nossa determinação de lutar por esta linha  até o fim.

Fomos expulsos por uma reunião conjunta da Comissão de Controle e o Comitê Político.

No dia seguinte fizemos circular uma declaração mimeografada em todo o partido. Havíamos antecipado nossa expulsão. Estávamos preparados para isso e gritamos. Uma semana depois, para consternação deles, os golpeamos com a primeira edição de The Militant. A cópia havia sido preparada e havíamos feito um trato com o editor enquanto continuava o julgamento. Fomos expulsos em 27 de outubro de 1928. The Militant saiu na semana seguinte como uma edição de novembro, celebrando o aniversário da Revolução Russa, anunciando nosso programa, etc. Assim começou a luta aberta pelo trotskysmo norte-americano.

Certamente não tínhamos uma perspectiva brilhante para começar. Porém ganhamos constantemente nas primeiras semanas e construimos firmemente desde o princípio porque começamos corretamente. Rompemos a grande trava dos fracionalismos sem princípio no partido com uma carga de dinamite. De um só sopro nos desembaraçamos de todos os velhos erros das frações do partido norte-americano quando nos pusemos no terreno de um programa principista de internacionalismo. Estávamos seguros do porque brigávamos. Todas as pequenas maquinações organizativas que se haviam tido na velha rinha foram abandonadas como um saco velho. Comecávamos o movimento real do bolchevismo neste país, a regeneração do comunismo norte-americano.

A luta não era muito promissora desde o ponto de vista numérico. Os três de nós que havíamos firmado a declaração — Abern, Shachtman e eu — nos sentíamos muito sós caminhando para minha casa, traçando os planos para construir um novo partido que tomaria o poder nos Estados Unidos. Os três trabalhávamos na ILD. Fomos demitidos imediatamente, com os salários anteriores não pagos. Não tínhamos dinheiro e não sabíamos como conseguí-lo. Planejamos a primeira edição do The Militant antes de saber como íamos pagá-lo. Porém, fizemos um trato com o editor para que nos desse um crédito por uma edição. Escrevemos a alguns amigos em Chicago que nos enviaram algum dinheiro e levantamos o pagamento. Anunciamos orgulhosamente que ia ser publicado duas vezes ao mês e assim o foi.

Pouco tempo depois de havermos sido demitidos do partido, descobrimos um grupo de camaradas húngaros que haviam sido expulsos do partido por várias razões nas lutas fracionais um ano ou dois antes. Independentemente de nós, desconhecido para nós, entraram em contato com alguns trabalhos da Oposição Russa em Amtorg — a agência comercial soviética em Nova Iorque — e se declararam trotskystas convencidos. Eles pareciam para nós um exército de um milhão de pessoas. Encontramos um pequeno grupo de oposicionistas italianos em Nova Iorque, seguidores de Bordiga, não realmente trotskystas, e que trabalharam conosco por um tempo. Conduzimos uma batalha bastante enérgica. Respondemos às acusações de forma militante. Começamos a fazer circular materiais novos da Oposição Russa através de The Militant — a crítica de Trotsky ao projeto de programa, etc. De imediato se podia ver o começo da cristalização que tinha um futuro diante de si, porque tinha um claro programa principista.

Apesar de ter sido uma pequena fração por um longo tempo, foi uma fração muito convicta, fanática e definida. Começamos a ganhar aderentes através do país. Nossa mais importante aquisição veio de Minneapolis. Minneapolis jogou um papel importante não só nas lutas das greves caminhoneiras, mas também na construção norte-americana. Ganhamos seguidores em Chicago.

Estávamos terrivelmente obstaculizados em muitos aspectos. Não havíamos tido tempo antes de nossa expulsão para comunicarmo-nos um pouco mais com os companheiros do partido fora de Nova Iorque. A primeira coisa que muitos camaradas no Partido Comunista souberam de nossa posição foi a notícia de que havíamos sido expulsos. As cruéis táticas da direção do partido nos ajudaram muito. Seus métodos foram, ir de cima a baixo do país propondo uma moção em todo comitê e ramo para aprovar a expulsão de Cannon, Shachtman e Abern. Qualquer pessoa que queria perguntar e obter mais informações era acusado de ser trotskysta e expulso imediatamente. Isto nos ajudou muitíssimo; punham estes camaradas numa posição onde podíamos ao menos falar com eles.

Em Minnesota, onde tínhamos bons amigos de longa data, o representante da quadrilhalovestonista os convocou a uma atividade e lhes solicitou um voto imediato sobre a moção para aprovar nossa expulsão. Eles se negaram. “Queremos saber o que é isso, queremos escutar o que estes camaradas têm para dizer”. Foram expulsos imediatamente. Eles nos comunicaram. Os aprovisionamos com material documental, The Militant, etc. Praticamente todos os que haviam sido tomados por vacilações em votar para confirmar nossa expulsão se tornaram simpatizantes nossos e a maioria se uniu conosco.

Nós enfatizamos bem desde o começo que isto não era simplesmente uma questão de democracia. A questão é o programa do marxismo. Se tivéssemos nos contentado com organizar gente na base do descontentamento com a burocracia poderíamos haver ganho mais membros. Estas não são bases suficientes. Porém, usamos os princípios da democracia para conseguir uma audiência simpatizante e depois começar imediatamente a martelar sobre o correto do trotskysmo, sobre todas as questões políticas.

Vocês podem facilmente imaginar que tremendo choque foi para todos os membros do partido nossa posição e expulsão. Por anos haviam sido educados de que Trotsky foi um menchevique. Ele foi expulso como um “contra-revolucionário”. Tudo havia dado voltas. A mente dos membros mais frágeis haviam sido enchidas com preconceitos contra Trotsky e a Oposição Russa. Depois, a céu aberto, três dirigentes partidários se declaram trotskystas. Eles são expulsos imediatamente, vão a todas as partes onde podem encontrar membros do partido e dizem: “Trotsky tem razão em todas as questões principais, e podemos provar”. Esta era uma situação com a qual se enfrentavam muitos bons camaradas. Muitos deles, expulsos por duvidar de votar contra nós, não quiseram deixar o partido. Eles não sabiam nada sobre o trotskysmo nesse momento e estavam mais ou menos convencidos de que era contra-revolucionário. Porém, a estupidez da burocracia em expulsá-los nos deu uma oportunidade para falar com eles, provê-los de literatura, etc. Isto criou as bases para a primeira consolidação da fração.

Naqueles dias cada indivíduo se apresentava como enormemente importante. Se você só tem quatro pessoas para começar uma fração, quando podem encontrar a uma quinta isso significa 25% de crescimento. De acordo com a lenda, o Socialist Labor Party (Partido Operário Socialista), ao modo daqueles velhos tempos, fez um jubiloso anúncio de que nas eleições eles haviam dobrado seus votos no estado do Texas. Resultou que em vez de seu um voto usual  haviam obtido dois.

Nunca esquecerei o dia em que ganhamos nosso primeiro adepto na Filadélfia. Pouco depois fomos expulsos, embora os ais e gritos estivessem soando no partido contra nós, houve uma batida na minha porta, e ali estava Morgenstern, de Filadélfia, um homem jovem porém velho “cannonista” nas lutas fracionais. Ele disse: “Ouvimos sobre sua expulsão por ser trotskysta, porém não cremos. Qual é o informe confidencial real?”. Naqueles dias não tomávamos nada por moeda boa de qualquer pessoa, a não ser que viesse de nossa própria fração. Posso recordar o dia, indo a casa dos fundos, pegando o precioso documento de Trotsky de seu esconderijo e dando-lhe a Morgie. Ele se sentou na cama e leu por um longo tempo — este era um livro inteiro — do princípio ao fim, sem parar nem uma vez. Quando o terminou se havia decidido e começou a trabalhar nos planos para construir um núcleo em Filadélfia.

Alistamos outros indivíduos da mesma forma. As idéias de Trotsky eram nossas armas. Publicamos seriamente a “crítica” em The Militant. Tínhamos só uma cópia, e passou um bom tempo antes que pudéssemos publicá-la em forma de folheto. Por seu tamanho não podíamos mimeografar. Não tínhamos mimeógrafo próprio, nem tipografia, nem dinheiro. O dinheiro era um problema muito sério. Todos havíamos sido desprovidos de nossas posições no partido e não tínhamos acesso de nenhum tipo. Estávamos muito ocupados com nossa batalha para buscar outros trabalhos para sobreviver. No topo disso tínhamos o problema de financiar um movimento político. Não podíamos suportar o custo de um escritório. Só quando cumprimos um ano, finalmente pudemos alugar uma sede própriana Terceira Avenida, com o velho “trem aéreo” bramindo nas janelas. Quando tínhamos dois anos obtivemos nosso primeiro mimeógrafo, e depois começamos a ir adiante.


Inclusão 10/10/2006