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A RUA GAY-LUSSAC AINDA TRAZ AS MARCAS DA “noite das barricadas”. Carros destruídos pelo fogo cobrem o chão, com suas carcaças sem tinta, sujas e cinzentas. As pedras do calçamento, removidas do meio da rua, encontram-se em grandes montanhas nos dois lados. Um vago cheiro de gás lacrimogêneo anda permanece no ar.
Na junção com a rua Ursulines há um canteiro de obras cuja cerca de arame foi esburacada em vários lugares. Daqui foi levado material para pelo menos uma dúzia de barricadas: tapumes, carrinhos de mão, cilindros de metal, vigas de aço, betoneiras, blocos de pedra. O local também forneceu uma broca pneumática. Os estudantes não puderam usá-la, é claro — não, até que um operário da construção que passava mostrou como usá-la; talvez o primeiro trabalhador a apoiar ativamente a revolta estudantil. Uma vez quebrada, a superfície da rua forneceu paralelepípedos, que logo foram utilizados de várias formas.
Tudo isso já é história.
Pessoas andam para cima e para baixo na rua, como se tentassem se convencer de que aquilo realmente havia acontecido. Elas não são estudantes. Os estudantes sabem o que aconteceu e o porquê de ter acontecido. Elas também não são moradores locais. Os moradores locas viram o que aconteceu, a violência dos ataques da CRS(1), as investidas contra os feridos, os ataques contra pessoas que só observavam, a fúria solta da máquina do Estado contra aqueles que o desafiaram. Aqueles que estão nas ruas são as pessoas comuns de Paris, pessoas de distritos vizinhos, horrorizadas com o que ouviram no rádio ou leram nos jornais, e que vieram caminhar em uma bela manhã de domingo para ver tudo com seus próprios olhos. Elas estão conversando em pequenos grupos com os moradores da rua Gay-Lussac. A Revolução, tendo por uma semana tomado conta da universidade e das ruas do Quartier Latin, está começando a tomar conta da cabeça das pessoas.
No dia 3 de maio, sexta-feira, a CRS fez sua visita à Sorbonne. Eles foram convidados por Paul Roche, reitor da Universidade de Paris. É quase certo que o reitor tenha agido com a conivência de Alain Peyrefitte, ministro da Educação, se não com a do próprio Elysée(2).
Muitos estudantes foram presos, espancados, e muitos foram sumariamente condenados.
A inacreditável — embora inteiramente previsível — incompetência desta “solução” burocrática para o “problema” do descontentamento estudantil precipitou uma reação em cadeia. Ela armazenou a raiva, o ressentimento e a frustração de dezenas de milhares de jovens que possuíam agora um motivo para uma ação futura, além de um objetivo alcançável. Os estudantes, despejados da universidade, tomaram as ruas, reivindicando a libertação de seus companheiros, a reabertura de suas faculdades, a remoção dos policiais.
Levas e levas de novas pessoas logo entraram na luta. O sindicato estudantil (UNEF) e o sindicato dos professores da universidade (SNESup) convocaram uma greve por tempo indeterminado. Durante uma semana os estudantes defenderam suas ideias em manifestações de rua cada vez maiores e mais militantes. No dia 7 de maio, terça-feira, 50 mil estudantes e professores marcharam pelas ruas, atrás de uma única bandeira: “Vive La Commune”, e cantaram a Internationale no Túmulo do Soldado Desconhecido, no Arco do Triunfo. Na sexta-feira, da 10, estudantes e professores decidiram ocupar em massa o Quartier Latin. Eles achavam que tinham mais
direito de estarem lá do que a polícia, visto que quartéis já haviam sido construídos para ela em outros lugares. A coesão e a clareza do objetivo dos manifestantes apavorou os poderes estabelecidos. Não se poderia permitir que o poder dormisse com essa plebe, que tinha tido até mesmo a audácia de levantar barricadas.
Outro gesto inapropriado foi necessário. Outro reflexo administrativo convenientemente materializado. Fouchet (ministro do Interior) e Joxe (primeiro-ministro Interino) ordenaram que Grimaud (superintendente da Polícia de Paris) limpasse as ruas. A ordem foi confirmada por escrito, sem dúvida para ser guardada para a posteridade como um exemplo do que não se deve fazer em certas situações. A CRS avançou... limpando a rua Gay-Lussac e abrindo as portas da segunda fase da Revolução.
Na rua Gay-Lussac e ruas adjuntas, os muros marcados pela batalha trazem uma mensagem dual. Eles dão testemunho da incrível coragem daqueles que tomaram conta da região por várias horas em meio a um dilúvio de gás lacrimogêneo, bombas de fósforo e intensos ataques de golpes de cassetete da CRS. Mas eles também mostram um pouco daquilo pelo qual os guerreiros lutavam...
A propaganda através de inscrições e desenhos em muros e paredes é uma parte integrante da Paris revolucionária de Maio de 1968. Ela se tornou uma atividade de massa, parte e parcela do método de autoexpressão da Revolução. Os muros do Quartier Latin são os depositários de uma nova racionalidade, não mais confinada nos livros, mas sim democraticamente exposta no nível da rua e tornada disponível a todos. O trivial e o profundo, o tradicional e o exótico, o convívio íntimo nessa nova fraternidade, quebrando rapidamente as rígidas barreiras e divisões na cabeça das pessoas.
“Désobéir d’abord: alors écris sur les murs (Loi du 10 Mai 1968)”(3) se lê em uma obviamente recente inscrição que dá o tom de forma clara. “Si tout le peuple faisait comme nous”(4) ansiosamente sonha outra, em uma jovial intuição, penso eu, mas do que em um espírito de substitucionismo vindo de uma auto-saciação. A maioria dos slogans são diretos, precisos e completamente ortodoxos: “liberez nos camarades”, “Fouchet, Grimaud, demisson”, “A bas l’État policier”, “Greve Générale Lundi”, “Travailleurs, étudiants, solidaires”, “Vive les Conseils Ouvrièrs”(5). Outros slogans refletem novas preocupações: “La publicité te manipule”, “ Examens = hierarchie”, “L’art est mort, ne consommez pas son cadavre”, “A bas la societé de consummation”, “Debout les damnés de Nanterre”(6). O slogan “Baisses-toi et broute”(7) é obviamente direcionado àquelas pessoas mais conservadoras.
“Contre la fermentation groupusculaire”(8) queixa-se uma grande inscrição escarlate. E está realmente fora de compasso. Em todos os lugares há uma profusão de cartazes e periódicos ceados: Voix Ouvrière, Avant-Garde e Révoltes (dos trotskistas), Servir le Peuple e Humanité Nouvelle (dos devotos do líder Mao), Le Libertaire (dos anarquistas), Tribune Socialiste (do PSU — Parti Socialiste Unifié, Partido Socialista Unificado). Até mesmo estranhas edições de l’Humanité(9) estão coladas. É difícil lê-las, de tão cobertas que estão por comentários críticos.
Em um tapume, eu vi um grande anúncio de um novo queijo: uma criança mordendo um enorme sanduíche. O jargão dizia “Cest bon le fromage Soand-So”(10). Alguém cobriu as últimas palavras com tinta vermelha. No cartaz ficou escrito “Cest bon la Revolution”(11). As pessoas passam, olham e sorriem.
Eu converso com meu acompanhante, um homem de cerca de 45 anos, um “velho” revolucionário. Discutimos as tremendas possibilidades que agora se abrem. Ele subitamente se volta na minha direção e aparece com uma frase memorável: “Pensar que tivemos de ter filhos e esperar vinte anos para ver isso...”
Falamos com outros na rua, com jovens e velhos, com “politizados” e “apolíticos”, com pessoas de todos os níveis de entendimento e comprometimento. Todos estão predispostos a falar — na verdade todos querem falar. Todos parecem extraordinariamente articulados. Não achamos ninguém predisposto a defender as ações do governo. As “críticas” se dividem em duas vertentes principais:
Os professores universitários “progressistas”, os comunistas, e uma quantidade de estudantes vêem a principal raiz da “crise” estudantil no atraso da Universidade em relação às necessidades sociais atuas, no ensino bastante inadequado que é fornecido, na atitude semifeudal de alguns professores, e na insuficiência geral da oportunidade de empregos. Para eles, a Universidade está desadaptada ao mundo moderno. O remédio pra eles é a adaptação: uma reforma modernizante que arrancasse as teias de aranha, aumentasse o quadro de professores, construísse melhores auditórios, aumentasse o orçamento para a educação, quem sabe um costume mais liberal no campus e, por fim, um emprego assegurado.
Para os rebeldes (o que incluía alguns, mas de forma alguma “todos” os “velhos” revolucionários), esta preocupação em adaptar a Universidade à sociedade moderna é uma piada. Para eles, é a própria sociedade moderna que deve ser rejeitada. Eles consideram a vida burguesa trivial e medíocre, repressiva e reprimida. Não possuem nenhum anseio (somente desprezo) pelas carreiras administrativas e diretivas que ela reserva a eles. Eles não buscam se integrar na sociedade adulta. Pelo contrário, estão procurando uma oportunidade para contestar radicalmente sua adulteração. A força motriz da sua revolta é a sua própria alienação, a falta de significado da vida no capitalismo burocrático moderno. Não é certamente uma simples deterioração econômica dos seus padrões de vida.
Não é acidental que a “revolução” tenha começado nas faculdades de Sociologia e Psicologia de Nanterre. Os estudantes viram que a sociologia que lhes era ensinada era um meio de controle e manipulação da sociedade, e não um meio de compreendê-la de modo a transformá-la. No decorrer, eles descobriram a sociologia revolucionária. Rejeitaram o nicho reservado para eles na grande pirâmide da burocracia, o de “especialistas” a serviço do poder tecnocrático, especialistas do “fator humano” na equação industrial moderna. Descobriram também a importância da classe trabalhadora. O impressionante é que, pelo menos entre os estudantes ativos, estes “sectários” subitamente pareceram ter se tornado a maioria: seguramente esta é a melhor definição de qualquer revolução.
As duas vertentes de “crítica” do sistema educacional francês moderno não se neutralizam uma à outra. Pelo contrário, cada uma cria seu próprio gênero de problemas para as autoridades da Universidade e para os funcionários do Ministério da Educação. A verdadeira questão é que uma das vertentes de crítica — a que alguém poderia chamar de quantitativa — poderia ser enfrentada e incorporada com sucesso pela sociedade burguesa moderna. A outra — a qualitativa — jamais. E era isto o que gerava seu potencial revolucionário. O “problema que a Universidade apresenta”, para os poderes estabelecidos, não reside em não se poder encontrar dinheiro para pagar mais professores. Na verdade o dinheiro pode ser encontrado. O “problema” é que a Universidade está cheia de estudantes — e que as cabeças dos estudantes estão cheias de ideias revolucionárias.
Entre aqueles com os quais falamos, havia uma profunda consciência de que o problema não poderia ser resolvido no Quartier Latin, que o isolamento da revolta em um “gueto” estudantil (mesmo que em um “gueto” autônomo) significaria a derrota. Eles compreendem que a salvação do movimento reside na sua extensão a outros setores populares. Porém, aqui grandes diferenças aparecem. Quando alguns falam da importância da classe trabalhadora, tratam como se ela fosse uma substituta para o engajamento deles na luta, uma desculpa para denegrir a luta estudantil chamando-a de “aventureira”. No entanto, é exatamente por causa da sua incomparável militância que a ação dos estudantes estabeleceu todas aquelas atividades de ação direta, que começaram a influenciar os jovens trabalhadores, e incomodar as organizações estabelecidas. Alguns estudantes compreendem o relacionamento dessas lutas mas claramente. Encontraremos eles mas tarde, no Censier, animando os comitês de ação de “trabalhadores e estudantes”.
É o suficiente, por enquanto, sobre o Quartier Latin. O movimento já se espalhou para além de seus restritos confins.
Notas de rodapé:
(1) Corps Republicam de Securité, uma das corporações policiais da França. (N.T.) (retornar ao texto)
(2) Nome do palácio que é sede do governo francês. (N.T.) (retornar ao texto)
(3) “Desobedeça primeiro antes de escrever nos muros (Lei de 10 de maio de 1968)”. (N.T.) (retornar ao texto)
(4) “Se todo mundo fizesse como nós...” (N.T.) (retornar ao texto)
(5) “Liberte nossos camaradas”, “Fouchet, Grimaud, renúncia”, “Abaixo o Estado policial”, “Greve Geral Segunda-Feira”, “Trabalhadores, estudantes, solidários”, “Viva os Conselhos Operários”. (N.T.) (retornar ao texto)
(6) “A publicidade te manipula”, “Exames = hierarquia”, “A arte está morta, não consuma seu cadáver”, “Abaixo a sociedade de consumo”, “De pé os condenados de Nanterre”. (N.T.) (retornar ao texto)
(7) “Se abaixe e paste”. (N.T.) (retornar ao texto)
(8) “Contra a agitação de pequenos grupos”. (N.T.) (retornar ao texto)
(9) Jornal oficial do Partido Comunista Francês. (retornar ao texto)
(10) “É bom o queijo Soand-So”. (N.T.) (retornar ao texto)
(11) “É boa a Revolução”. (N.T.) (retornar ao texto)