Paris: Maio de 68

Maurice Brinton


O 13 DE MAIO — DA RENAULT PARA AS RUAS DE PARIS — SEGUNDA-FEIRA. 13 DE MAIO


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SÃO 6:15 HORAS DA MANHÃ NA AVENIDA Yves Kermen. Um dia claro e com céu limpo. Uma multidão começa a se reunir fora dos portões da gigantesca fábrica da Renault em Boulogne Billancourt. As principais “centrais” sindicais (CGT — Confederação Geral do Trabalho, CFDT — Confederação Francesa Democrática do Trabalho, e FO — Força Operária) convocaram um dia de greve geral. Elas estão protestando contra a violência policial no Quartier Latin e pelas reivindicações salariais, de jornada de trabalho, de idade de aposentadoria e pelos direitos dos sindicatos nas fábricas, todas há muito tempo negligenciadas.

Os portões da fábrica estão escancarados. Nenhum guarda ou supervisor à vista. Os trabalhadores fluem para o interior da fábrica. Um megafone orienta para que sigam para seus respectivos locais de trabalho, para que não comecem a trabalhar e para seguirem, às 8 horas, ao tradicional local de reunião, uma enorme espécie de barracão no meio da Ile Seguin (uma ilha no Sena totalmente coberta pelas instalações da Renault).

Cada trabalhador que passa pelos portões recebe um panfleto dos grevistas, conjuntamente produzido pelos três sindicatos. Panfletos em espanhol são também distribuídos (mas de 2 mil trabalhadores espanhóis são empregados da Renault). Oradores franceses e espanhóis se revezaram no microfone fazendo pequenos pronunciamentos. Embora todos os sindicatos estejam apoiando a greve de um dia, todos os oradores parecem pertencer à CGT. O alto-falante é deles...

São 6:45 horas da manhã. Centenas de trabalhadores estão entrando agora. Muitos parecem ter vindo para trabalhar, e não para participar de reuniões de greve na fábrica. A decisão de convocar a greve foi tomada somente no sábado a tarde, após os trabalhadores já terem se dispersado no fim de semana. Muitos parecem não saber do que se trata. Estou impressionado com o número de argelinos e trabalhadores negros.

Há apenas poucos cartazes no portão, mais uma vez a maioria da CGT. Alguns grevistas carregam cartazes da CFDT. Não há sequer um único cartaz da FO à vista. A rua e os muros fora da fábrica foram quase totalmente cobertos com slogans: “Greve de um dia na Segunda”, “Unidade em defesa de nossas reivindicações”, “Não aos monopólios”.

O pequeno bar próximo ao portão está lotado. As pessoas parecem extraordinariamente conscientes e comunicativas para uma hora tão cedo como aquela. Uma banca de revistas está vendendo cerca de três exemplares de l'Humanité de cada quatro exemplares de qualquer título que vendem. A seção local do Partido Comunista está distribuindo um panfleto pedindo “determinação, calma, atenção e unidade” e alertando sobre “provocadores”.

Os grevistas não tentam convencer aqueles que passam. Ninguém parece saber se eles obedeceram à convocatória de greve ou não. Menos de 25% dos trabalhadores da Renault pertencem a algum sindicato. Esta é a maior fábrica de carros da Europa.

O megafone torna pública sua mensagem:

A CRS recentemente atacou agricultores em Quimper, e trabalhadores em Caen, Rhodiaceta (Lyon) e Dassault. Agora eles estão se voltando contra os estudantes. O regime não tolerará oposição. Não modernizará o país. Não nos garantirá nossas reivindicações salariais básicas. Nossa greve de um da mostrará ao governo e aos patrões nossa determinação. Devemos forçá-los a recuar.

A mensagem é repetida diversas vezes, como se fosse um disco quebrado. Eu gostaria de saber se ao menos o orador acredita no que está falando, ou se ele sequer percebe o que está por vir. Às 7 horas da manhã, cerca de uma dúzia de trotskistas da FER (Federação de Estudantes Revolucionários) aparecem para vender seu jornal, Révoltes. Eles usam grandes broches vermelho e branco que declaram suas identidades políticas. Um pouco mas tarde, um outro grupo chega para vender o Voix Ouvrière. O alto-falante imediatamente pára de atacar o governo gaullista e sua CRS, para atacar os “provocadores” e os “elementos destrutivos, estranhos à classe trabalhadora”. O orador stalinista dá a entender que aqueles que vendem os jornais estão a serviço do governo. Se eles estão aqui, “a polícia deve estar na vizinhança, de olho...”. Uma discussão exaltada começa entre os que vendem e os dirigentes da CGT. Aos grevistas da CFDT é negado o uso dos alto-falantes. Eles gritam “démocratie ouvrière”(1) e defendem o direito dos “elementos destrutivos” venderem seus materiais. Um direito um tanto abstrato, uma vez que sequer um folheto é vendido. A primeira página do Révoltes traz um artigo exótico sobre a Europa Oriental.

Muitas injúrias foram trocadas, mas sem agressões físicas. Durante uma argumentação eu ouço Bro. Trigon (delegado do segundo “colégio” eleitoral da Renault) descrever Danny Cohn-Bendit(2) como “un agent du pouvoir”(3). Um estudante adere a ele nessa altura. Os trotskistas não. Pouco depois das 8 horas os trotskistas vão embora: o “ato de aparição” deles já estava concluído e devidamente gravado para a posteridade.

Aproximadamente na mesma hora, centenas de trabalhadores que entraram na fábrica deixam seus locais de trabalho e se reúnem sob o sol em um espaço aberto a algumas centenas de metros do portão principal, dentro da fábrica. Dali eles caminham em direção à Ile Seguin, atravessando um braço do rio Sena no caminho. Outros grupos de trabalhadores saem de outros pontos da fábrica e convergem para o mesmo local. O teto metálico está a quase cem metros sobre nossas cabeças. Enormes estoques de componentes estão empilhados até o alto em ambos os lados. Ao longe, do lado direito, uma linha de montagem ainda está funcionando, erguendo do chão ao nível do primeiro andar o que parece ser o assento de bancos de carros com as molas fixadas.

Cerca de 10 mil trabalhadores logo já se encontram no galpão. Os oradores falam a eles através de um alto-falante, de cima de um pequeno palanque de aproximadamente 10 metros de altura. O palanque fica em frente do que parece ser um posto de inspeção elevado, porém me disseram que trata-se de um escritório do sindicato dentro da fábrica.

O orador da CGT fala de várias reivindicações salariais setoriais. Ele denuncia que a oposição que o governo faz a elas está “nas mãos dos monopólios”. Ele apresenta fatos e personagens relacionados com a estrutura salarial. Muitos trabalhadores altamente qualificados não estão ganhando o que devem. Um orador da CFDT é o próximo. Ele trata do constante aumento da velocidade da produção, do deterioramento das condições de trabalho, dos acidentes e do destino do homem na produção. “Que tipo de vida é esta? Teremos que ser marionetes até o fim, executando todos os caprichos da direção?” Ele defende aumentos salariais uniformes para todos (“augmentations non-hiérarchisées”). Na sequência vem um orador da FO. Ele é o mais competente tecnicamente, mas diz muito pouco. Numa retórica floreada, ele fala de 1936, mas omite qualquer referência a Léon Blum(4). A reputação da FO é ruim na fábrica, e o orador é incomodado com perguntas várias vezes.

Os oradores da CGT pedem então que os trabalhadores participem en masse de uma grande manifestação planejada para a tarde. Assim que o último orador termina, a multidão espontaneamente irrompe em uma estimulante Internationale. Os mas velhos parecem saber a maior parte da letra. Os mas jovens apenas sabem o refrão. Um amigo ao lado me assegura que em vinte anos esta é a primeira vez que ele ouviu o hino da Internationale cantado dentro da Renault (ele esteve em dezenas de reuniões de massa na Ile Seguin). Há uma atmosfera de excitação, particularmente entre os trabalhadores mas jovens.

A multidão então se dispersa em vários grupos. Alguns caminham de volta sobre a ponte indo para fora da fábrica. Outros prosseguem sistematicamente através dos locais de trabalho, onde algumas centenas de homens anda estão trabalhando. Alguns desses homens discutem, mas a maioria, na verdade, parece que está simplesmente satisfeita demais para que tenham uma desculpa para parar e juntar-se à passeata. Grupos de grevistas cortam o caminho deles, fazendo pada e cantando em meio a prensas gigantes e tanques. Aqueles que permanecem no trabalho são ironicamente ovacionados, aplaudidos ou exortados a porem “o pé na tábua”, ou a “trabalharem mais duro”. Os eventuais chefes de seção são meros espectadores impotentes, na medida que uma linha de produção após a outra é parada.

Figuras coloridas estão coladas sobre vários tornos mecânicos: mulheres e campos verdes, sexo e sol. Todos que ainda trabalham são encorajados a sair à luz do dia, de modo que não fiquem apenas sonhando com ela. Na instalação principal, a cerca de um quilômetro de distância, doze homens, se muito, permanecem com seus macacões. Nenhuma voz zangada é ouvida. O que há são brincadeiras muito bem humoradas. Às 11 horas, milhares de trabalhadores haviam saído para uma quente manhã de maio. A venda de cerveja e sanduíche ao ar livre, do lado de fora do portão, está sendo um tremendo negócio.

É 1:15 horas da tarde, as ruas estão cheias. A resposta à convocação da greve geral de 24 horas superou as expectativas mas otimistas dos sindicatos. Apesar da pequena divulgação, Paris está paralisada. A greve foi decidida apenas 48 horas atrás, após a “noite das barricadas”. Ela é, além do mais, “ilegal”. A lei local exige um aviso prévio de cinco dias na convocação de uma greve “oficial”. Foi pouquíssimo tempo para a lei.

Uma compacta falange de jovens está andando pelo Boulevard de Sebastopol na direção de Gare de l’Est. Eles estão seguindo para o ponto de concentração dos estudantes da gigantesca manifestação convocada conjuntamente pelos sindicatos, pela organização dos estudantes (UNEF) e pelas associações de professores (FER e SNESup).

Não há nenhum ônibus ou carro à vista. As ruas de Paris pertencem hoje aos manifestantes. Milhares deles já estão na praça em frente à estação. E outros milhares se deslocam para lá vindos de todas as direções. Pelo que foi decidido pelas organizações, as diferentes categorias devem se reunir separadamente, e então convergirem na Place de la Republique, de onde a passeata prosseguirá cortando Paris, via Quartier Latin, a Place Denfert Rochereau. Estão todos como sardinhas em lata desde tão longe quanto os olhos podem enxergar, no entanto ainda falta mas de uma hora para o horário estabelecido para a partida. O sol brilhou durante todo o da. As garotas estão usando vestidos de verão. Os rapazes estão de manga curta. Uma bandeira vermelha tremula sobre a estação de trem. No meio da multidão existem muitas bandeiras vermelhas, e várias pretas também.

Um homem de repente aparece carregando uma mala cheia de cópias de panfletos. Pertence a algum “grupúsculo”. Ele abre sua mala e distribui cerca de uma dúzia de panfletos. Mas não precisa mais continuar sozinho nessa empreitada. Há uma insaciável sede de informação, ideias, literatura, discussão, polêmica. O homem apenas fica parado e as pessoas o cercam e pedem os panfletos. Dezenas de manifestantes, sem sequer lerem o panfleto, ajudam o rapaz a distribuí-los. Cerca de 6 mil cópias são distribuídas em apenas poucos minutos. Todas parecem ser atentamente lidas. As pessoas discutem, riem, fazem pada. Eu presenciei tais cenas várias vezes.

Vendedores de literatura revolucionária estão vendendo bem. Um edital, assinado pelos organizadores da manifestação, no qual está escrito que “a única literatura permitida seria a das organizações responsáveis pela manifestação” (veja l'Humanité, 13 de maio de 1968), está sendo entusiasticamente desprezado. Essa restrição burocrática (muito criticada na noite anterior quando foi anunciada no Censier pelos estudantes delegados do Comitê de Coordenação) obviamente é impraticável em uma multidão desse tamanho. A revolução é maior que qualquer organização, mas tolerante do que qualquer instituição “representando” as massas, mais realista do que qualquer edital de qualquer Comitê Central.

Manifestantes subiram em muros, nos tetos das paradas de ônibus, nas grades em frente à estação. Alguns possuem megafones e pronunciam curtos discursos. Todos os “politizados” parecem estar em um lugar ou outro no meio da multidão. Eu posso ver a bandeira da Jeunesse Communiste Révolutionnaire, fotos de Castro e Che Guevara, a bandeira da FER, várias bandeiras do Servir le Peuple (um grupo maoísta) e a bandeira da UJCML (Union de la Jeunesse Communiste Marxiste-Leniniste), outra tendência maoísta. Há também bandeiras de muitos estabelecimentos educacionais que estão ocupados pelos trabalhadores que trabalham neles. Grandes grupos de estudantes de liceus (jovens secundaristas) misturam-se com os estudantes universitários, assim como milhares de professores.

Cerca de 2 horas da tarde a seção estudantil parte cantando a Internationale. Andamos de vinte a trinta pessoas lado a lado e com os braços entrelaçados. Há uma fileira de bandeiras vermelhas na nossa frente e uma faixa de 15 metros de largura trazendo quatro simples palavras: “Étudiants, Enseignants, Travailleurs, Solidaires”(5). É uma visão comovente.

O Boulevard de Magenta inteiro é uma compacta massa humana agitada. Não podemos entrar na Place de la Republique, já lotada de manifestantes. Não é possível sequer se mover pelas calçadas ou através das ruas adjacentes. Não há mas nada além de pessoas, tão longe quanto os olhos podem alcançar.

Na medida que lentamente prosseguimos pelo Boulevard de Magenta, notamos em uma sacada no terceiro andar, do nosso lado direito, um escritório do SFIO (Partido Socialista). A sacada está enfeitada com algumas velhas bandeiras vermelhas e uma faixa pedindo “Solidariedade com os estudantes”. Alguns indivíduos com idade avançada acenam pra gente, um pouco constrangidos. Alguém na multidão começa a cantar “O-pur-tu-nistes”(6). O slogan é seguido, ritmicamente gritado por milhares de pessoas, para transtorno daqueles na sacada, que acabam batendo em rápida retirada. As pessoas não esqueceram o uso da CRS contra a greve dos mineiros em 1958 pelo ministro do Interior “socialista” Jules Moch. Eles lembram do primeiro-ministro “socialista” Guy Mollet e seu papel durante a guerra na Argélia. Impiedosamente, a multidão mostra seu desprezo pelos desacreditados políticos, que agora tentam apenas ser oportunistas. “Guy Mollet, au musée”(7), eles gritam, entre risadas. É verdadeiramente o fim de uma era.

Lá pelas 3 horas da tarde finalmente alcançamos a Place de la Republique, nosso ponto de partida. A multidão aqui é tão densa que várias pessoas desmaiam e têm que ser carregadas aos bares próximos. Nos bares as pessoas estão quase tão apertadas quanto na rua, mas podem pelo menos evitar serem machucadas. A janela de um bar cede sob a pressão da multidão lá fora. Há um verdadeiro medo, em várias partes na multidão, de se morrer esmagado. O primeiro contingente sindical felizmente começa a deixar a praça. Não há um policial sequer à vista.

Embora a manifestação tenha sido declarada uma manifestação conjunta, os líderes da CGT ainda estão se empenhando desesperadamente para evitar uma mistura, nas ruas, de estudantes e trabalhadores. Eles têm um relativo sucesso nessa tentativa. Cerca de 4:30 horas da tarde, os professores e estudantes, talvez somando 80 mil, finalmente deixam a Place de la Republique. Centenas de milhares de manifestantes os precederam, centenas de milhares de manifestantes os seguiram, porém o contingente de “esquerda”, de fato e eficazmente, “encurralou” a manifestação. Vários grupos, entendendo enfim a manobra da CGT, se desprendem quando saímos da praça. Eles pegam atalhos por várias ruas laterais, nas esquinas, e conseguem infiltrar grupos de cerca de cem pessoas em partes da passeata que passam pela frente ou por trás deles. Os organizadores stalinistas, andando de mãos dadas e cercando a passeata dos dois lados, são impotentes para impedir estes súbitos influxos. Os estudantes se dispersam como peixes na água tão logo tenham entrado no meio de um determinado grupo. Os próprios manifestantes da CGT são muito amigáveis e prontamente incorporam os recém-chegados, mesmo sem terem certeza do que se trata. A aparência, as roupas e o modo de falar dos estudantes não permite que sejam identificados tão facilmente como seriam na Grã-Bretanha.

O principal contingente de estudantes prossegue como um corpo compacto. Agora que passamos o gargalo da Place de la Republique o passo está bem rápido. O grupo dos estudantes, entretanto, leva pelo menos meia hora para passar por um determinado ponto. Os slogans dos estudantes contrastam de forma chamativa com os da CGT. Os estudantes gritam “Le Pouvoir aux Ouvrièrs”, “Le Pouvoir est dans le rue”, “liberez nos camarades”(8). Os membros da CGT gritam “Pompidou, démission”(9). Os estudantes cantam “De Gaulle, assassin”(10), ou “CRS-SS”. A CGT: “Des sous, pas de matraques”, ou “Defence du pouvoir d’achat”(11). Os estudantes dizem “Non a l’Université de classe”(12). A CGT e os estudantes stalinistas, reunidos em volta da faixa de seu jornal Clarté, respondem “Université Démocratique”(13). Profundas dierenças políticas estão por trás da diferença de ênfase. Alguns slogans são seguidos por todos, slogans como “Dix ans, c’est assez”, “A bas lÉtat policier”, ou “Bon anniversaire, mon Général”(14). Grupos inteiros cantam, em tom de tristeza, o conhecido refrão: “Adieu, De Gaulle”(15). Eles abanam seus lenços, para a alegria dos que apenas observam.

Assim que o contingente principal de estudantes atravessa a Pont St. Mchel para entrar no Quartier Latin, ele pára rapidamente para uma homenagem silenciosa aos feridos. Todos os pensamentos são por um instante voltados para aqueles que estão no hospital, com seus olhos sob perigo devido ao gás lacrimogêneo ou com seus crânios ou costelas fraturados pelos cassetetes da CRS. O repentino e nervoso silêncio da parte mas barulhenta da manifestação transmite uma profunda impressão de força e determinação. Sente-se que muitas contas estão para serem ajustadas.

No alto do Boulevard St. Mchel eu saio da passeata e subo num parapeito que cerca o Jardim de Luxembourg. Permaneço lá por duas horas enquanto filas e filas de manifestantes passam, com trinta ou mas lado a lado, um mar de pessoas de um tamanho fantástico, inconcebível. Quantos eles são? Seiscentos mil? Oitocentos mil? Um milhão? Um milhão e quinhentos mil? Ninguém pode dizer ao certo. O primeiro manifestante chegou ao ponto final de dispersão horas antes dos últimos grupos terem deixado a Place de la Republique, às 7 horas da noite.

Haviam faixas e bandeiras de todo tipo: de sindicatos, de estudantes, políticas, não-políticas, reformistas, revolucionárias, do “Mouvement contre l’Armement Atomique”(16), de vários Conseils de Parents d’Élèves(17), de todos os tamanhos e formas imagináveis, maniiestando uma aversão comum ao ocorrido e um desejo comum de lutar contra aquilo. Algumas faixas foram muito aplaudidas, como a que dizia “Liberons l’information”(18), carregada por um grupo de empregados da ORTF(19). Algumas faixas utilizavam um vivido simbolismo, como o caso de uma repulsiva faixa que era carregada por um grupo de artistas. Nela foram pintadas mãos, cabeças e olhos humanos, cada um com a sua etiqueta de preço e exibidos nos ganchos e tabuleiros de um açougue.

Continuamente elas desfilavam próximas. Haviam blocos inteiros de funcionários de hospitais, com guarda-pós brancos, alguns carregando cartazes dizendo “Ou sont les disparus des hopitaux?”(20) Todas as fábricas e maiores locais de trabalho pareciam estar representados. Haviam numerosos grupos de ferroviários, carteiros, gráficos, metroviários, metalúrgicos, aeroportuários, feirantes, eletricitários, advogados, trabalhadores da rede sanitária, bancários, trabalhadores da construção civil, trabalhadores da indústria química e de vidro, garçons, funcionários municipais, pintores, trabalhadores das empresas de combustíveis, balconistas, vendedores de seguro, garis, operadores de estúdio, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores da nova indústria de plástico, filas e filas e filas deles, a carne e o sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa sem fim, um poder que poderia varrer tudo que estivesse na sua frente, se ele, porém, decidisse fazê-lo.

Pensei naqueles que dizem que os trabalhadores somente estão interessados em futebol, no tierce (corrida de cavalos), em assistir televisão, e em seus congés (feriados) anuais, e que dizem que a classe trabalhadora não pode enxergar além dos problemas da sua vida cotidiana. Isso era uma inverdade muito clara. Também pensei naqueles que dizem que apenas uma restrita e podre direção separam as massas de uma total transformação da sociedade. Igualmente não é verdade. Hoje a classe trabalhadora está se tornando consciente da sua força. Será que ela decidirá usá-la amanhã?

Eu me junto novamente à passeata e então prosseguimos na direção da Denfert Rochereau. Passamos por várias estátuas de serenos cavalheiros, agora enfeitados com bandeiras vermelhas ou carregando slogans como “liberez nos camarades”(21). Assim que passamos por um hospital, o silêncio ganha a multidão infinita.

Alguém começa a assobiar a Internationale. Outros aderem. Como uma brisa roçando um enorme campo de trigo, a melodia assobiada ondula em todas as direções. Das janelas do hospital algumas enfermeiras acenam pra gente.

Em vários cruzamentos passamos por semáforos, que por alguma estranha inércia ainda estão funcionando. Vermelho e verde se alternam, em intervalos fixos tão sem significado quanto a educação burguesa, quanto o trabalho na sociedade moderna, quanto as vidas daquelas pessoas que passam ao nosso lado. A realidade de hoje, por algumas horas, suprimiu todos os padrões e modelos de ontem.

A parte da passeata na qual eu me encontro está agora rapidamente se aproximando do local onde os organizadores decidiram que deveria ser o ponto de dispersão. A CGT está ávida que suas centenas de milhares de partidários dispersem pacificamente. Ela os teme quando eles estão juntos. Ela quer que eles voltem a ser átomos sem nome dispersos nos quatro cantos de Paris, impotentes no quadro de suas preocupações individuais. A CGT vê a si mesma como a única ligação possível entre eles, como o veículo divinamente determinado para expressar o desejo coletivo deles. O “Movimento 22 de Março”(22), por outro lado, emitiu uma chamada aos estudantes e trabalhadores, pedindo que se mantivessem juntos e prosseguissem para os gramados do Champs de Mars (no pé da Torre Eiffel) para uma grande discussão coletiva sobre as experiências daquele dia e sobre os problemas que os esperam adiante.

Nessa altura eu atesto pela primeira vez o que um service d’ordre organizado por stalinistas realmente significa. Durante todo o dia, os organizadores obviamente previam este momento particular. Eles estão muito tensos, visivelmente esperando “problemas”. Acima de tudo, eles temem o que chamam débordement,(23) isto é, serem flanqueados pela esquerda. Durante o último quilômetro da passeata, cinco ou seis fias compactas formadas pelos organizadores alinharam-se nos dois lados da passeata. Com os braços entrelaçados, eles formam uma maciça cerca em volta dos manifestantes. Os dirigentes da CGT falam aos manifestantes contidos por esta cerca através de dois potentes alto-falantes montados sobre dois carros, e os instruem a dispersarem calmamente através do Boulevard Arago, isto é, seguir na direção exatamente oposta à que leva ao Champs de Mars. As outras saídas da Place Denfert Rochereau estão bloqueadas por linhas de organizadores com os braços entrelaçados.

Ouvi dizer que em ocasiões como esta, o Partido Comunista convoca milhares de membros da região de Paris. E também convoca membros de lugares mais distantes, trazendo-os de ônibus de lugares como Rennes, Orleans, Sens, Lille e Limoges. As prefeituras sob posse do Partido Comunista fornecem ainda centenas desses “organizadores”, os quais não são necessariamente membros do Partido, mas sim pessoas dependentes da boa vontade do Partido para manterem seus empregos e seu futuro. Desde seu auge na participação no governo (1945-47), o Partido tem tido este tipo de base de massa nos arredores de Paris. E eles invariavelmente a usaram em circunstâncias como a de hoje. Nesta manifestação deve haver pelo menos 10 mil organizadores desse tipo, e possivelmente o dobro.

Os pedidos dos organizadores não encontram somente um tipo de resposta. O sucesso de conseguirem que um grupo disperse pelo Boulevard Arago depende, é claro, da característica de cada grupo. A maioria dos grupos nos quais os estudantes não conseguiram se infiltrar obedece, embora mesmo nesses alguns dos militantes mas jovens protestem: “Nós somos um milhão nas ruas. Por que deveríamos ir para casa?” Outros grupos hesitam, vacilam, começam a discutir. Alguns estudantes sobem nos muros e gritam: “Todos que querem voltar a ver televisão, se direcionem ao Boulevard Arago. Aqueles que querem se juntar ao debate de trabalhadores e estudantes e querem fazer a luta crescer, se direcionem ao Boulevard Raspail e prossigam ao Champs de Mars”.

Os que protestam contra as ordens de dispersão são imediatamente repreendidos e denunciados como “provocadores” pelos organizadores, que muitas vezes também empregam a força física contra estes. Eu vi vários companheiros do Movimento 22 de Março serem agredidos fisicamente, seus megafones portáteis serem arrancados de suas mãos e seus panfletos serem jogados no chão. Em algumas partes pareciam haver dezenas, em outras centenas, em outras milhares de “provocadores”. Algumas pequenas brigas ocorrem na medida que estes contingentes não dão bola aos organizadores. Surgem discussões acaloradas, os manifestantes denunciando os stalinistas como “policiais” e como sendo “a última trincheira da burguesia”.

O respeito pelos fatos me obriga a admitir que muitos grupos seguiram as ordens da burocracia sindical. As repetidas calúnias ditas pelos líderes da CGT e do Partido Comunista produziram seu efeito. Os estudantes eram chamados de “agitadores”, “aventureiros”, “elementos suspeitos”. A ação proposta por eles “levaria apenas a uma intervenção violenta da CRS” (que se manteve totalmente fora de vista durante toda a tarde). “Isso era apenas uma manifestação, não um prelúdio à Revolução.” Agindo cruelmente na parte mas ao fundo da multidão, e atacando fisicamente a parte mas à frente, os ajudantes de burocratas da CGT conseguem fazer com que a maior parte dos manifestantes dispersem, muitas vezes sob protesto. Milhares foram ao Champs de Mars. Mas centenas de milhares foram pra casa. Os stalinistas ganharam, mas as discussões iniciadas certamente irão repercutir nos meses seguintes.

Cerca de 8 horas da noite ocorreu um episódio que mudou o humor das últimas seções da passeata, que a essa altura se aproximavam do ponto de dispersão. Um carro da polícia subitamente subiu uma das ruas que levam à Place Denfert Rochereau. Ele deve ter se desviado do caminho planejado, ou talvez o motorista tenha achado que os manifestantes já tivessem dispersado. Vendo a multidão à frente, os dois policiais uniformizados sentados nos bancos da frente se apavoraram. Impossibilitado de dar ré de modo a sair, o motorista deve ter julgado que sua vida dependia de forçar a passagem pela parte mas estreita da multidão. O veículo acelerou, arremessando-se contra os manifestantes a aproximadamente 80 quilômetros por hora. As pessoas correram freneticamente em todas as direções. Várias pessoas foram atiradas ao chão, duas foram gravemente feridas e muitas mas escaparam por pouco. O carro foi finalmente cercado. Um dos policiais que estava na frente foi retirado do carro sendo várias vezes socado pela multidão enfurecida e determinada a linchá-lo. O policial foi finalmente salvo, na hora agá, pelos organizadores. Eles meio que o carregaram, semiconsciente, para uma rua lateral onde o atravessaram horizontalmente por uma janela, como se fosse uma linguiça.

Para salvá-lo, os organizadores tiveram que lutar contra várias centenas de furiosos manifestantes. A multidão começou então a balançar o carro de polícia que estava preso. O policial que permanecia no carro sacou seu revólver e atirou. As pessoas se abaixaram. Por milagre ninguém foi atingido. Cem metros adiante a bala fez um buraco, a cerca de um metro acima do nível do solo, em uma janela da “Le Belfort”, um grande café no número 297 do Boulevard Raspail. Os organizadores correram novamente para o salvamento, formando uma barreira entre a multidão e o carro da polícia, o qual foi permitido escapar por uma rua lateral, dirigido pelo policial que atirou na multidão.

Centenas de manifestantes se aglomeraram em volta do buraco na janela do café. Fotógrafos da imprensa foram chamados, chegaram e tiraram suas fotos devidamente — nenhuma delas, é claro, foi publicada. (Dois das depois, o l'Humanité trouxe algumas linhas sobre o episódio, no fim de uma coluna da página cinco.) Como consequência do episódio, vários milhares de manifestantes decidiram não dispersar. Eles viraram e marcharam até o Champs de Mars, gritando “Ils ont tire a Denfert”(24). Se o incidente tivesse ocorrido uma hora antes, a noite de 13 de maio poderia ter tido uma cara muito diferente.


Notas de rodapé:

(1) “Democracia operária”. (N.T.) (retornar ao texto)

(2) Estudante anarquista de origem alemã da Universidade de Nanterre, membro do Movimento 22 de Março. (N.T.) (retornar ao texto)

(3) “Um agente do poder”. (N.T.) (retornar ao texto)

(4) Léon Blum (1872-1950), foi o primeiro premier “socialista” da França, estando a frente do governo da Frente Popular em 1936-37. (N.T.) (retornar ao texto)

(5) “Estudantes, Professores, Trabalhadores, Solidários”. (N.T.) (retornar ao texto)

(6) “O-por-tu-nis-tas”. (N.T.) (retornar ao texto)

(7) “Guy Mollet, para o museu”. (N.T.) (retornar ao texto)

(8) “Todo Poder aos Trabalhadores”, “O Poder está nas ruas”, “Libertem nossos companheiros”. (N.T.) (retornar ao texto)

(9) “Pompidou, renuncie”. (N.T.) (retornar ao texto)

(10) “De Gaulle, assassino”. (N.T.) (retornar ao texto)

(11) “Dinheiro, não cassetetes”, “Defesa do poder aquisitivo”. (N.T.) (retornar ao texto)

(12) “Não à Universidade de classe”. (N.T.) (retornar ao texto)

(13) “Universidade Democrática”. (N.T.) (retornar ao texto)

(14) “Dez anos, é o bastante”, “Abaixo o Estado policial”, “Feliz aniversário, meu General”. (retornar ao texto)

(15) “Adeus, De Gaulle”. (N.T.) (retornar ao texto)

(16) “Movimento Contra as Armas Nucleares”. (N.T.) (retornar ao texto)

(17) “Conselhos de Pais de Alunos”. (N.T.) (retornar ao texto)

(18) “Libertemos a informação”. (N.T.) (retornar ao texto)

(19) Office de la Radiodifíusion-Télévision Française, rede de rádio e TV estatal francesa. (N.T.) (retornar ao texto)

(20) “Onde estão os desaparecidos dos hospitais?” (N.T.) (retornar ao texto)

(21) “libertem nossos camaradas”. (N.T.) (retornar ao texto)

(22) Grupo formado por libertários e anarquistas na Universidade de Nanterre, cujos mais notórios membros foram Daniel Cohn-Bendit e Jean-Pierre Duteuile. (N.T.) (retornar ao texto)

(23) No francês no original. Transbordamento. (N.T.) (retornar ao texto)

(24) “Eles atiraram na gente no Denfert”. (N.T.) (retornar ao texto)

Inclusão: 20/06/2020