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Depois da execução de Babeuf e de Darthé e da prisão de Buonarroti, o movimento revolucionário francês desapareceu por algum tempo da cena política. O Diretório esmagou toda a oposição e preparou o caminho para a dominação de Napoleão. Em 1799, Napoleão derrubou o Diretório e, em 1804, fez-se proclamar imperador. Os franceses gozaram de liberdade sob o despotismo, e este soube nutrir-lhes a imaginação com a glória militar e encher-lhes os bolsos com abundantes lucros. Para os comerciantes e os bolsistas, os anos da Revolução e das guerras napoleônicas, foram, com efeito, anos fecundos e movimentados. Compras de bens da Igreja e dos emigrados, alta dos preços dos cereais, monopólio das matérias primas, em consequência do bloqueio dos portos franceses pela frota inglesa, todos esses fatores tornaram o reinado de Napoleão I um período de prosperidade para a burguesia francesa.
A política externa fez todas as questões de política interna passarem para plano secundário. Começou-se a estudar seriamente as condições geográficas do êxito das empresas exteriores, do desenvolvimento econômico, das vitórias militares e do domínio dos mares. Já no Estado Comercial fechado de Fichte se encontram observações muito interessantes sobre as causas geográficas do antagonismo entre a Inglaterra e a França, que eram explicados principalmente pela posição insular da Inglaterra. Ainda mais interessantes são as observações de Carlos Fourier que, estudando a situação do Japão, conclui que esse país viria fatalmente, num futuro não muito remoto, desempenhar um papel marítimo e econômico de primeiro plano. Fourier afirma ainda que o Japão se tornará o principal adversário da Rússia nos negócios chineses. Descreve as orgias selvagens da especulação, as manobras dos financistas e dos homens de negócios na Bolsa, durante esse período, quando as falsas notícias, quanto à marcha das operações militares, era o meio correntemente usado para provocar a baixa ou a alta dos valores do Estado.
A burguesia francesa enriqueceu e, pelo menos, enquanto a estrela de Napoleão brilhou nos horizontes políticos, isto é, até 1811, aproximadamente, esqueceu-se das lulas revolucionárias do período precedente.
Carlos Fourier (1772-1837) é um produto desse período extremamente agitado. Era um homem que possuía, a par de uma imaginação exuberante, um otimismo sem limites. Nele encontrava-se, ao lado da mais louca presunção, um espírito agudo, notáveis dons de observação e grande sinceridade.
Era empregado do comércio em Lião por ocasião da crise econômica que provocou nesta cidade a ruína de grande número de pequenas empresas. Foi nesse momento que Fourier começou a interessar-se pelos problemas sociais. Os planos de associação nessa época publicados por L’Ange (Lange), indicaram lhe o caminho por onde seria possível sair do caos.
Fourier expôs as suas ideias na obra Teoria dos quatro movimentos, que publicou em 1808. É a sua principal obra. Tudo o que depois escreveu não foi mais que comentário ou desenvolvimento das ideias contidas na primeira obra. Eis, em linhas gerais, no que consistia a sua doutrina: “1.º, os instintos e as paixões humanas são sempre bons; se pudessem expandir-se livremente conduziriam os indivíduos à felicidade. Tudo se resume, pois, em encontrar boas instituições sociais, isto é, capazes de permitir essa liberdade de expansão necessária; 2.º, o comércio é prejudicial, moral e materialmente, porque corrompe as disposições naturais do homem. Ele é a alma-danada do regime atual, que levará a ruína se não for a tempo substituído pela cooperação e pela associação; 3.º, o casamento é uma hipocrisia, porque sempre determina a escravização da mulher, e por isso deve ser substituído pela união livre; 4.º, a civilização, etapa atual da História da Humanidade, encerra males de todas as naturezas. Ela, entretanto, gera as forças necessárias para elevar a Humanidade à fase de associação e de harmonia, na qual os instintos humanos terão a liberdade de movimentos necessária, e criarão a riqueza, a alegria e a paz”.
Fourier apresentou-se a seus contemporâneos como um homem que havia, afinal, conseguido desvendar os segredos da criação divina e da natureza. O que Cristóvão Colombo, Copérnico, e Newton tinham realizado para o conhecimento do mundo material, Fourier pretendia ter feito para o conhecimento das leis do mundo orgânico e social. Por isso, considerava o seu descobrimento mais importante que “todos os trabalhos científicos realizados desde o aparecimento da espécie humana”.
“É necessário vestir longos hábitos negros, de luto – pergunta ele — para declarar aos políticos e aos moralistas que a hora fatal já soou, que suas imensas estantes de livros vão ser reduzidas a nada, que os Platão os Sêneca, os Rousseau, os Voltaire e todos corifeus da incerteza antiga e moderna irão ser arrastados em conjunto pelo rio do esquecimento”? Para que serviram os esforços de todos os filósofos? “Eu, que ignoro o mecanismo das ideias, que nunca li, nem Locke nem Condillac, tive, entretanto, ideias suficientes para inventar todo o sistema do movimento universal, do qual só havia sido descoberto por vós a quarta ramificação depois de 2.500 anos de esforços científicos.... É a mim, somente a mim, que as gerações presentes e futuras deverão a iniciativa de sua imensa felicidade... Possuindo o livro dos destinos, eu acabo de dissipar as trevas políticas e morais e, acima das ciências duvidosas, eu acabo de edificar a teoria da harmonia universal”.
Como todos sabem, foi meditando no projeto de associação agrícola elaborado em 1793 por L’Ange (Lange) que Fourier chegou a essas novas verdades. Ele supunha ter descoberto o segredo matemático dos destinos humanos. A redenção da Humanidade depende da passagem à associação. E essa passagem realizar-se-á brevemente. “Vamos assistir a um espetáculo que só poderá ser visto uma única vez em cada mundo: a passagem súbita da incoerência à coordenação social. Será o mais brilhante efeito do movimento que é possível realizar no Universo. Seu advento deve consolar a geração atual de todas as suas desgraças. Cada ano, durante essa metamorfose, equivalerá a séculos de existência”.
A concepção que Fourier tem da natureza é a do século XVII e XVIII. Todos os fenômenos, na sua opinião, são movimentos sujeitos a leis mecânicas. Esses movimentos, diz ele, são em número de quatro: o social, o animal, o orgânico e o material. A lei do movimento material foi descoberta por Newton; é a lei da gravitação universal. É necessário agora descobrir a lei do movimento social. Na vida social, os instintos e as paixões ocultam a lei do movimento... Os instintos tendem para certos fins, que são os “destinos sociais”. Se os nossos instintos gozassem da liberdade de movimento necessária, nós deveríamos obedecer-lhes à ação, porque é na “atração apaixonada” — como diz Fourier — que encontraremos nosso profundo destino e a completa satisfação de nossos mais nobres desejos. Eis porque são altamente nocivos os conselhos dos moralistas e dos filósofos que nos mandam reprimir os instintos e as paixões. Aliás, esses conselhos para nada servem. Não produzem o menor efeito. Só fazem nascer massas de decrépitos, bons para o fogo. Mas, em lugar dos moralistas, vieram os economistas, que encorajaram o comércio e assim favoreceram o roubo, a mistificação, a especulação, provocando a desmoralização completa da sociedade e grande número de catástrofes.
Todas as paixões humanas convergem para três focos ou centros de atração principais: 1.º, sensuais (os cinco sentidos); 2.º, intelectualmente apaixonados, (a amizade, o respeito, o amor, os sentimentos familiares); 3.º, paixões apuradas (emulação, amor a variedade, concentração de forças).
O primeiro grupo abrange, pois, cinco instintos; o segundo, quatro e o terceiro, três, ou sejam, ao todo, doze. Esses doze instintos são como doze agulhas que impelem a alma para os três focos ou centros de atração principais. O mais importante é o terceiro grupo, porque tende à unidade geral e social. Com a condição, entretanto, de que os instintos nele contidos não se manifestem em indivíduos isolados, mas em grupos inteiros, e de que eles possuam a mais completa liberdade de movimento.
A combinação dos doze instintos faz surgir os diferentes caracteres, que são em número de 800, aproximadamente. Desse modo, vê-se que num grupo de 800 pessoas pode-se encontrar os germes de toda a perfeição. E se, desde a infância, os indivíduos receberam uma educação racional, dentre eles surgirão grandes talentos, homens como Homero, César, Newton, etc. Se dividirmos, por exemplo, a população de França, isto é, 36 milhões de homens, por 800, verificaremos que em França existem 45.000 pessoas capazes de se elevar ao nível de um Homero, de um Demóstenes, de um Moliére, etc... Com a condição, entretanto, de que esses instintos e talentos possam livremente expandir-se, no seio de uma organização da vida baseada na associação e no cooperativismo.
Esta nova ordem de coisas já está em marcha. A fase atual da civilização, prestes a terminar, será substituída pela fase da associação. A Humanidade até o presente passou pelas seguintes fases: 1.º o estado de natureza: a era paradisíaca no Jardim do Eden. Reinavam, então, a liberdade e a igualdade e havia superabundância de frutos, peixes, e caça. Os homens viviam em grupos. Tudo era comum. O individualismo e a monogamia ainda não existiam; 2.º, Veio, depois, o estado de selvageria: a multiplicação da espécie humana e ausência de uniões conscientes, racionais, provocavam a falta de produtos alimentares. Em consequência disso, surgiram disputas e conflitos de toda espécie; 3.º, o patriarcado: os mais fortes e os mais brutos elevaram-se à condição de chefes de família, rebaixaram a mulher e introduziram a propriedade privada; 4.º, a barbaria, isto é, a Idade Média: o feudalismo desenvolveu-se. Nela, só se encontra uma qualidade: as honras dispensadas a certas mulheres. É, aliás, no feudalismo, que surgem os germes da civilização, isto é, do comércio e da indústria; 5.º, a civilização. Neste regime, os homens consideram-se inimigos e como tal se tratam. Ausência absoluta de organização. O interesse comercial destrói todos os sentimentos elevados. Os sentimentos de Humanidade, de pátria, de justiça, de solidariedade desaparecem. As especulações sobre os cereais, as manobras da bolsa, os estratagemas, os ardis, a mistificação, a hipocrisia, o enriquecimento dos ricos e a pauperização dos pobres, o desprezo pelos que nada possuem, a concorrência, a anarquia econômica, o desaparecimento dos sentimentos familiares, a luta dos filhos contra os pais, do operário contra o patrão, a exploração do trabalho pelo capital, o domínio do governo pelos ricos — eis os principais característicos da civilização. A mulher é quem mais sofre com esse estado de coisas O casamento nada mais é senão a compra de uma jovem que, para esse fim, foi desde a infância preparada. Mas o instinto sexual não se deixa vencer. Reage. As mulheres “honestas” têm amantes. E os homens procuram fora do casamento o que nele não encontraram. A luxúria e a prostituição são as consequências inevitáveis da hipocrisia do casamento monogâmico.
Mas é preciso não esquecer que nem todos os resultados da civilização foram negativos. Ela também desenvolveu a ciência e a técnica, criou meios para aumentar a produtividade do trabalho e proporcionou aos patrões mais ricos a oportunidade de adotar formas de exploração mais racionais, na agricultura e na indústria. Prepara-se, assim, um novo feudalismo comercial e industrial. Um limitado número de ricos dirigirão as forças econômicas do país. O Estado fundará vastas empresas agrícolas, nas quais haverá uma certa organização capaz de garantir a existência dos operários. Depois da civilização virá, portanto, uma sexta fase, à qual Fourier denomina o garantismo — que seria um período de transição entre o individualismo e o socialismo, sétima e última fase da Humanidade; Fourier, aliás, em vez de socialismo, emprega o termo socientismo para designar esta sétima fase, que levará os homens à mais completa harmonia e à felicidade. Os homens viverão em “falanstérios”, isto é, em grandes edifícios administrados dentro de normas cooperativistas. Trabalharão, também, de acordo com normas cooperativistas, em grupos de 1600 a 1800 pessoas (isto é, em grupos compostos de um número de indivíduos igual ao dobro de 800 ou um pouco mais, para que, neles, se realize, da melhor maneira possível, a combinação dos caracteres). No seio dessa organização, o amor à variedade e a concentração de forças terão completa liberdade de movimento.
A respeito da socialização dos meios de produção/ Fourier não diz palavra, nem admite que nisso se fale. Os falanstérios serão livres associações de capitalistas, de operários e de administradores. O produto do trabalho será repartido da seguinte maneira: 5/12 para operários, 4/12 para os capitalistas e 3/12 para os administradores.
União livre, educação das crianças às expensas do grupo, sete refeições por dia, opera e teatro à vontade – numa palavra, alegria e prazer de viver – tudo isso será possível graças aos falanstérios, de tal modo que os homens se tornarão melhores e mais sábios, poderão viver, em média 144 anos e atingirão normalmente uma altura de sete pés.
Fourier não adotava atitude política definida. Era contra a Revolução e contra os judeus, admirava Napoleão e vivia constantemente procurando descobrir um filantropo rico disposto a fornecer-lhe os recursos necessários para a execução de seu plano. Nos dias presentes, seus livros — com exceção de um ou outro trecho — não merecem mais ser lidos. A melhor exposição do fourierismo foi feita por Vitor Considerant, no livro intitulado O Destino Social, que apareceu em 1837, justamente no ano da morte de Fourier, e que foi dedicado ao rei Luis Felipe, “o senhor e o maior proprietário de França”.
É necessário fazer entre Saint-Simon e os saint-simonistas a mesma distinção que se faz entre Kant e os neokantistas. Nem Saint-Simon, nem Kant foram socialistas. Ambos pertenceram ao mundo das ideias liberais. Kant foi um filósofo liberal, Saint-Simon um economista liberal. Um e outro consideravam a religião como a doutrina da ética prática.
Foram os discípulos de Saint-Simon que, aproveitando-se das teorias de Fourier, da experiência das lutas do proletariado inglês, da crítica social inglesa e das ideias socialistas de Buonarroti, começaram, a partir de 1829, isto é, quatro anos depois da morte de seu mestre, a imprimir as suas ideias um cunho social-reformista. Deu-se com eles o mesmo que se passa atualmente com os neokantistas, os quais, depois de travarem conhecimento com o socialismo científico, procuram fundir os ensinamentos do seu mestre com o marxismo.
O conde Henrique de Saint-Simon descendia de uma família da alta nobreza de França. Era aparentado com o duque de Saint-Simon, autor das célebres Memórias, que viveu no reinado de Luís XIV. Segundo ele, sua árvore genealógica remontava a Carlos Magno. Quando jovem, foi oficial e combateu ao lado de Lafayette, na guerra da Independência americana. Teve, então, oportunidade de estudar de perto as instituições burguesas dos Estados Unidos. Desde esse momento, alimentou a ideia da abertura do canal de Panamá. De modo geral, conhecia de perto as questões industriais e comerciais da época. Voltando à França, não teve a menor participação na Revolução. Aproveitou-se, porém, da situação por ela criada. Especulou com os bens nacionais e ganhou uma fortuna suficiente para poder preencher as lacunas de sua instrução e viver luxuosamente. Depois de esbanjar todo o seu dinheiro aristocraticamente, viveu durante certo tempo bem modestamente. Chegou mesmo a conhecer a miséria. Afinal, viu novamente melhores dias, graças ao banqueiro judeu Rodrigues, o qual, com alguns outros capitalistas, lhe proporcionou meios para terminar seus dias calma e tranquilamente. De 1802 até 1825, ano em que morreu, Saint-Simon consagrou-se à intensa atividade literária. Suas ideias correspondiam aos interesses da burguesia industrial. Um golpe de vista rápido sobre a situação da época claramente o demonstra.
A burguesia francesa, que havia enriquecido durante os anos da Revolução e do Império, suportou tranquilamente o despotismo de Napoleão enquanto este conservou em torno de si a auréola da vitória. Mas, depois da retirada da Rússia, passou à oposição. E, quando Napoleão voltou da ilha de Elba, já encontrou pela frente um forte movimento constitucional, ao qual ele iria ser obrigado a fazer concessões. Depois da derrota de Waterloo e da abdicação do imperador, os Bourbons voltaram ao poder. Pretenderam ignorar tudo o que havia acontecido durante a Revolução e restituir à nobreza e ao clero os antigos privilégios. A burguesia rebelou-se. Era economicamente mais forte que em 1789, porque nesse período, a técnica e a indústria tinham progredido consideravelmente. Por isso, sentia, cada vez mais, que era a verdadeira força no seio do Estado. Como os Bourbons a condenavam à impotência política, ela procurou conquistar as simpatias das massas populares e apresentar-se como a representante do povo, em face do reinado e da reação absolutista.
Esta situação geral explica a obra de Saint-Simon e, sobretudo, o saint-simonismo. Realmente: o saint-simonismo entra em cena nas vésperas da Revolução de Julho de 1830, no momento em que a burguesia se empenha em violenta luta contra os Bourbons; Saint-Simon, pelo contrário, apenas assiste o começo dessa luta e até preconiza um entendimento entre o reinado e a burguesia.
A ideia mestra da doutrina de Saint-Simon é que a missão principal da sociedade deve ser o desenvolvimento da produção de riquezas.
Os industriais (Saint-Simon considera industriais os fabricantes, técnicos, fazendeiros, artesãos, banqueiros, negociantes), são, portanto, uma classe social mais importante que a nobreza e o clero. Conclui-se então que a burguesia deve assumir a administração do país… “É o direito de propriedade — diz ele — e não a Constituição política, que exerce maior influência sobre o bem-estar social. O direito de propriedade deve ser instituído de maneira que estimule os possuidores, para que desenvolvam o mais possível a produção... Esse direito deveria ser baseado no desenvolvimento das riquezas e da liberdades do indivíduo... A lei que cria e mantém a propriedade é a mais importante de todas, porque nela repousa o edifício social. A lei que fixa a divisão dos poderes e regula o seu funcionamento (isto é a Constituição) é uma lei meramente secundária”.
Saint-Simon estabelece uma distinção entre o direito e a lei da propriedade. Na sua opinião, a lei da propriedade deve ser progressiva. “O espírito humano progride. Por isso, a lei da propriedade não pode ser eterna”. Por último, ele afirma que a propriedade feudal é o resultado da violência, ao passo que a propriedade, dos “industriais” é o fruto do trabalho.
Eis porque Saint-Simon combate as pretensões políticas da nobreza.
Em 1819, publicou sua célebre parábola contra a nobreza. Foi, por isso, preso, processado, e, mais tarde, absolvido pelo tribunal: “Suponhamos que a França – diz Saint-Simon — perdesse subitamente os seus cinquenta melhores físicos, os seus cinquenta melhores químicos, os seus cinquenta melhores fisiologistas, os seus cinquenta maiores banqueiros, os seus duzentos maiores negociantes, os seus seiscentos melhores ferreiros (e continua citando as profissões industriais mais importantes). Esses homens são justamente os franceses que mais produzem, que criam os mais importantes produtos. Portanto, com o seu desaparecimento, a nação sofreria um rude golpe e transformar-se-ia num corpo sem alma. Tornar-se-ia inferior às nações rivais e continuaria nessa situação de inferioridade até reparar essa perda, até readquirir nova cabeça... ”
“Suponhamos, agora, que a França não perca nenhum dos homens de gênio que possui nas ciências, nas belas-artes, nas artes e ofícios; suponhamos, ainda, que a França tenha a infelicidade de perder no mesmo dia o irmão do rei, monsenhor duque de Angoulème (e Saint-Simon cita, um a um, todos os membros da família real); e que nesse mesmo dia morram todos os grandes oficiais da Corôa, todos os ministros de Estado, — com ou sem departamentos — todos os conselheiros do Estado, todos os chefes de expediente, todos os marechais. cardiais, arcebispos, bispos, vigários-gerais e cônegos, os padres e prefeitos, os empregados dos ministérios, todos os juízes e os mais ricos dez mil proprietários que vivam como nobres. Se tal acontecesse, sem dúvida alguma, toda a França sentiria grande pesar porque todos esses homens são bons... Mas o desaparecimento dos dez mil indivíduos, hoje considerados como os mais importantes do Estado, só seria lamentável sob o ponto de vista sentimental... O Estado não sofreria com isso o menor prejuízo político...”
É por esse motivo que Saint-Simon aconselha que o rei de França, Luis XVIII, estabeleça uma aliança com a burguesia e assim se torne um rei burguês. Aliás, era também o desejo da burguesia francesa, desejo que se realizou depois da Revolução de 1830, quando Luis-Felipe subiu ao trono, que os Bourbons haviam deixado vago.
Saint-Simon fez, também, algumas incursões nos domínios da filosofia da História, tentando aplicar ao passado as luzes de suas concepções. Estudaremos estas tentativas no capítulo seguinte, quando examinarmos o saint-simonismo. Desejamos, no momento, dizer apenas que o pensamento de Saint-Simon era essencialmente burguês. Sua atitude em relação aos operários era também nitidamente burguesa.
Nas Cartas a um habitante de Genebra (1802), uma das suas primeiras obras, Saint-Simon divide a sociedade em três classes: 1.º, os liberais (sábios, artistas e todos os indivíduos de ideias progressistas); 2.º, os possuidores, indivíduos adversários do progresso, inimigos de qualquer transformação; 3.º, os operários, e, em geral, todos os que se agrupam em torno da palavra de ordem de igualdade. Aos operários, que reclamam igualdade econômica, Saint-Simon declara: “O poder dos ricos sobre os pobres não é resultado da riqueza, mas da superioridade intelectual”. E mais adiante: “Lembrai-vos do que se passou em França, quando vossos camaradas estavam no poder; eles provocaram a fome”. Saint-Simon refere-se ao período da Convenção (1792 1794) e parece ignorar que, nesse período, não eram os operários que estavam no poder e que a fome foi provocada justamente pelos inimigos dos jacobinos, isto é, pelos açambarcadores, usurários, especuladores, etc. Saint-Simon, aliás, considera o período da Convenção como um período de desbragada anarquia. “A Convenção é responsável pela morte de Luis XVI, o mais nobre amigo dos homens, e pela destruição da monarquia — a instituição fundamental da organização social de França. Ela criou uma Constituição democrática, que tornou preponderantes as camadas mais pobres e mais atrasadas da população”. Saint-Simon foi sempre um liberal, isto é, partidário do domínio dos industriais. Mas acompanhou com atenção o desenvolvimento do movimento operário. Pobre e dominado por sentimentos religiosos e morais, Saint-Simon defendeu a doutrina social do cristianismo primitivo. Nesse particular, é preciso não esquecer que a Educação da Humanidade, de Lessing, sobre ele exerceu grande influência. A partir de 1819, Saint-Simon começou a insistir cada vez mais sobre a necessidade de se proporcionar auxílios aos operários. No Catecismo dos Industriais, dirige-se aos patrões e mostra-lhes a necessidade de se interessarem pela situação dos operários. “Os patrões — diz ele são protetores-natos, chefes naturais da classe operária. Enquanto os patrões não entrarem em acordo com os operários, estes deixar-se-ão arrastar pelos intrigantes e demagogos de todos os matizes, que procuram levá-los a uma revolução, para que conquistem o poder político”. A favor de sua tese, Saint-Simon cita o exemplo do movimento operário da Inglaterra. Nos últimos anos de vida, seu interesse pelos operários sobrepujou todas as outras preocupações. No livro que publicou pouco antes de morrer, O Novo Cristianismo (1325), Saint-Simon expõe as suas ideias a respeito: O novo cristianismo deve regrar as relações entre o capital e o trabalho, no sentido de “melhorar o mais depressa possível a sorte das classes pobres”. Saint-Simon afasta-se dos dogmas e dos ritos religiosos. Limita-se a ética social. Sua reivindicação fundamental é que todos os homens se considerem mutuamente como irmãos. “O novo cristianismo será constituído de várias partes; de modo geral, essas partes estarão em harmonia com as doutrinas heréticas da Europa e da América. Como na época do cristianismo primitivo, o atual cristianismo será apoiado, protegido e desenvolvido pela força da moral e da opinião pública”. Saint-Simon, em seguida, declara que inicialmente procurou conquistar os ricos para as suas ideias, mostrando-lhes que essas ideias não são totalmente contrárias aos seus interesses, porque o melhoramento da sorte dos pobres só será possível com o auxílio de meios que também proporcionarão à classe rica mais amplas possibilidades de uma vida feliz. “Eu procurei explicar aos artistas, aos sábios e aos grandes fabricantes que os seus interesses, no fundo, coincidem com os das massas populares; primeiro, porque eles também pertencem à classe operária, pois são os seus chefes naturais; depois, porque a gratidão do povo pelos serviços que eles prestarem será a única recompensa digna de sua gloriosa atividade”. Ele também dirige-se à Santa Aliança, aos príncipes e aos reis: “Uni-vos em nome do cristianismo e cumpri os deveres que cabem aos poderosos: lembrai-vos que ele vos manda consagrar todas as forças em prol do mais rápido crescimento possível da felicidade social dos pobres”.
Saint-Simon morreu pouco tempo depois da proclamação deste novo evangelho. Pode-se dizer, resumindo, que ele não era nem socialista nem democrata, mas um liberal avançado que, em virtude de seu grande desenvolvimento intelectual e desinteresse absoluto, pode desenvolver, de maneira consequente, teorias éticas liberais. Esta afirmação é particularmente aplicável à sua teoria da propriedade, a qual, mais tarde, no momento em que o movimento operário entrou em nova fase de atividade, iria ser interpretada num sentido contrário à propriedade burguesa. Nisso, principalmente, consistiu a obra dos saint-simonistas.
Os poucos discípulos, que Saint-Simon deixou, pertenciam na sua maioria às camadas mais abastadas e cultas da população. A partir de 1827, as eleições legislativas parciais levaram à Câmara um número cada vez maior de deputados da oposição. Mas, já em 1829 a juventude intelectual de Paris começava a fundar organizações secretas com o fim de derrubar os Bourbons e estabelecer a soberania do povo. Os membros dessas associações secretas comunicaram-se com o carbonari italianos e assimilaram-lhes os métodos de conspiração. Estudaram a Revolução Francesa, as teorias sociais inglesas e, de maneira geral, mostraram-se accessíveis a todas as ideias novas. Entre esses jovens estava Saint-Amand Bazard (1791-1832), de inteligência lúcida e raciocínio profundo, e J. Buchez (1796-1832), que, mais tarde, iria consagrar-se à propaganda a favor da instituição de cooperativas de produção. Bazard aderiu às ideias de Saint-Simon em 1825. Em 1828, leu o livro que Buonarroti acabara de publicar sobre a conspiração de Babeuf. No ano seguinte, começou a fazer, nos centros saint-simonistas, conferências sobre os ensinamentos do mestre. Aí encontrou um precioso colaborador na pessoa de B. P. Enfantin (1794-1864), homem que possuía, a par de poderosa imaginação, grande energia e inteligência vivíssima. A eles se uniram, ainda, os irmãos Pereira, que pouco depois iriam fundar grandes bancos, e Fernando de Lesseps, que, mais tarde, abriu o canal de Suez e dirigiu os trabalhos iniciais da construção do canal de Panamá. Foi desse modo que, finalmente, os ensinamentos de Saint-Simon se mostraram o que sempre, na realidade, haviam sido, isto é, um liberalismo industrial-comercial. Mas, até esse momento, foi o caráter social da doutrina que apareceu em primeiro plano. Eis porque os saint-simonistas foram, a princípio, considerados socialistas.
A Exposição da doutrina saint-simonista, coletânea de conferências realizadas por Bazard, contem as seguintes ideias:
Saint-Simon ensinava que, na História da Humanidade, aos períodos orgânicos sucedem períodos críticos, e reciprocamente. Nos primeiros, reina a unidade de pensamento e de fé, uma certa comunidade de interesses. Foi, por exemplo, o que se observou na Grécia, até o século V, antes de Jesus Cristo, quando o politeísmo reinava de maneira incontestável; foi, também, o que se observou na Idade Média, até o aparecimento de Lutero, quando a Igreja constituía a unidade intelectual da época. Aos períodos orgânicos sucedem os períodos críticos, nos quais a unidade do pensamento é destruída. Surgem, então, conflitos sociais de todos os gêneros, como, por exemplo; na Grécia, a partir do século V A. C., quando surgiram vários sistemas políticos e, nos países da Europa ocidental, a partir da época da Reforma, a qual deu origem a diferentes sistemas de pensamento e foi acompanhada de grande número de revoluções políticas e sociais. Depois desse período crítico, virá um novo período orgânico. A missão de Saint-Simon foi justamente preparar-lhe o advento Esta missão, formulada no Novo Cristianismo, terá como resultado a terminação do período crítico iniciado por Lutero.
Desenvolvendo as ideias de Saint-Simon, Bazard declara que tais períodos orgânicos e criticos caracterizam-se respectivamente pela associação e pelo antagonismo. Mas os antagonismos são de caráter transitório e secundário. A associação, pelo contrário, representa o esforço principal da Humanidade, a lei fundamental da História. Os antagonismos e conflitos entre famílias e entre cidades deram origem às nações. As lutas e os antagonismos entre as diferentes nações farão surgir um organismo superior, sob o domínio de uma só fé, de uma unidade intelectual. A Humanidade tende para a grande associação universal, na qual reinarão o amor e a paz, a ciência e a riqueza.
Os antagonismos e os conflitos foram sempre provocados, até o presente, pelo reinado da violência, que originou a exploração do homem pelo homem. Mas o efeito desta violência torna-se cada vez mais fraco. Esse enfraquecimento avalia-se pelo progresso que se realizou do escravo da Antiguidade ao operário dos dias presentes. As diversas fases desse desenvolvimento são a escravatura, a servidão e o trabalho assalariado. Vê-se, desse modo, que a exploração do homem pelo homem pouco a pouco se atenuou. O escravo pertencia inteiramente ao senhor. O servo já possuía alguma liberdade. O operário moderno é politicamente livre. Só lhe falta libertar-se economicamente. E consegui-lo-á à medida que a associação progredir. Mas semelhante progresso é ainda entravado pela obstinada conservação da lei tradicional da propriedade, graças à qual o proprietário pode viver sem trabalhar e dominar os que nada têm. Há quem sustente que na propriedade se fundamenta toda a ordem social. “Nós, também, (saint-simonistas), somos, de maneira geral, dessa opinião. Mas a propriedade é um fenômeno social, sujeito, consequentemente, como todos os fenômenos sociais, à lei do progresso. A propriedade poderá, consequentemente, em diferentes épocas, ser regulamentada, compreendida e definida de diversas maneiras”. Eis porque Heine dizia que os saint-simonistas não queriam suprimir a propriedade, mas apenas defini-la.
Entretanto, os saint-simonistas reclamavam a supressão completa da herança: “Os bens das pessoas falecidas serão propriedade do Estado já transformado em simples associação de trabalhadores. A herança será recebida por toda a nação, e não pela família do morto. Os privilégios de nascimento, que aliás já vêm sendo cada vez mais restringidos, devem ser completamente abolidos...” “Por que um indivíduo deve herdar riquezas só pelo fato de ser filho de seu pai ou parente de outra pessoa qualquer? O direito à riqueza deve ser unicamente um corolário da capacidade de produzir. No Estado associado do futuro, cada qual ocupará o lugar que lhe compete, de acordo com as capacidades que possuir. E cada capacidade será recompensada de conformidade com as próprias realizações. O Estado transformar-se-á numa simples administração econômica, à frente da qual serão colocadas as melhores cabeças. Do mesmo modo que atualmente há escolas e academias militares destinadas à formação de bons generais, no Estado associado haverá escolas e academias para a formação de bons administradores da indústria. A missão desses administradores será dirigir a economia, classificar os trabalhadores de acordo com as suas aptidões, destinadas às atividades que mais lhes convierem e recompensá-los conforme seus méritos. A vida econômica será dirigida não pela democracia, mas por uma direção organizada em bases hierárquicas. De outra maneira não será possível suprimir a ociosidade, o excesso de trabalho, a pobreza, a exploração do homem pelo homem, e instaurar o novo período orgânico a era da harmonia social.
O operário moderno, já politicamente livre, também deve ser livre do ponto de vista econômico. Mas essa libertação não poderá ser violenta. “Os ensinamentos de Saint-Simon não cogitam de nenhuma transformação violenta, de nenhuma revolução. Estabelecem apenas a transformação lenta, a evolução. Esta será o resultado de uma nova educação, de um completo renascimento moral”. Até o presente, todas as transformações sociais foram realizadas violenta e catastroficamente porque os homens ainda não conheciam as leis do progresso. Era por ignorância que transformavam as evoluções em revoluções. Hoje, a Humanidade já sabe que progride. Já conhece a lei das crises sociais. É, pois, fácil preparar as transformações, a fim de evitar surpresas violentas. “As transformações da organização social que anunciamos – por exemplo: a substituição do atual regime da propriedade por um novo regime — não se processarão nem brusca nem violentamente, mas por meio de uma evolução lenta e pacífica”. No Estado associado, o primeiro lugar será ocupado pela religião (os pregadores do novo cristianismo); o segundo, pelos sábios e o terceiro, pelos industriais. O entusiasmo moral e religioso, a razão lúcida e disciplinada e a boa técnica industrial libertarão a Humanidade.
Essas conferências de Bazard não podiam deixar de seduzir os intelectuais, os artistas e os liberais avançados. Alcançaram formidável êxito. Mas, logo depois os saint-simonistas cindiram-se. Por isso, não foi possível fazer uma propaganda eficaz. Enfantin, em inteiro desacordo com Bazard e Rodrigues, aderiu às ideias de Fourier quanto à emancipação da mulher e procurou introduzir, no saint-simonismo, o princípio do amor livre. Mas a maior parte dos saint-simonistas a isso se opôs. Enfantin retirou-se, então, com seus partidários para Menilmontant, onde viveu algum tempo à frente de sua comunidade. Daí por diante, o saint-simonismo desapareceu como movimento. Mas legou ao movimento revolucionário do período 1830-1848 um rico tesouro de ideias que exerceram grande influência naquela época.