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Observação: Leia o texto de Althusser
Fonte: Crítica Marxista, n.47, p.181-183, 2018.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
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Na obra Elementos de autocrítica, finalizada em junho de 1972 e publicada originalmente em francês em 1974, Althusser escreve uma dedicatória para o então secretário-geral do Partido Comunista Francês (PCF): “Para Waldeck Rochet, que admirava Spinoza e sobre o qual me falara longamente num dia de junho de 1966”.(2) A referida conversa ocorreu três meses depois de o Comitê Central do PCF se reunir em Argenteuil (subúrbio no nordeste da região parisiense) e aprovar uma resolução que caracterizava o marxismo como um humanismo, expressando, assim, apoio às teses defendidas por Louis Aragon e Roger Garaudy e contrariando as críticas ao humanismo teórico formuladas por Althusser e seu grupo.
Em seu número 41, Crítica Marxista publicou a “Carta aos camaradas do Comitê Central do PCF”, na qual Althusser questiona as respostas conclusivas dadas pelo PCF para problemas teóricos e políticos ainda não resolvidos, como: a tese de que existe um humanismo marxista, a ideia de que não há descontinuidade e ruptura “no vasto movimento criador do espírito humano” ou a proposta de elaboração de uma teoria humanista da arte e da cultura.(3) Na apresentação desse documento, relatamos as controvérsias e decisões tomadas em Argenteuil e resumimos o conteúdo da carta de Althusser endereçada ao CC do PCF.(4) No relato da conversa com Rochet, ainda que logo no início faça menção à obra de Spinoza, o tema central discutido por Althusser é exatamente o mesmo da reunião do CC em Argenteuil: o humanismo teórico.(5)
Waldeck Rochet tinha formação filosófica, era simpatizante da filosofia spinoziana e, após a morte de Maurice Thorez, em julho de 1964, assumiu a função de secretário-geral do PCF. Ocupou formalmente tal cargo até 1972, mas já em 1969, ao tomar conhecimento de que portava um distúrbio neurovegetativo, foi cedendo espaço para Georges Marchais, que passou a dirigir o PCF a partir de então. Entre 1972 e 1979, Rochet foi alçado à condição de presidente de honra do PCF. Faleceu em 1983, num período em que já havia se convertido ao catolicismo romano e se tornado um devoto da Virgem Maria.
De acordo com seu biógrafo Jean Vigreux, ao chegar ao posto de secretário- -geral do PCF, Rochet engajou-se numa via de “abertura” das posições partidárias mais afeitas ao dogmatismo e ao obreirismo, com o objetivo de ganhar aliados à esquerda contra o gaullismo, especialmente os cristãos progressistas e as novas camadas médias, e renovar o programa do PCF, inclinando-se à defesa e à legitimação da via pacífica de transição ao socialismo e da teoria do capitalismo monopolista de Estado. Embora fosse simpatizante do humanismo teórico, Rochet se tornou uma espécie de árbitro na polêmica sobre o tema, que, nesse período, envolvia Roger Garaudy, Louis Aragon e Louis Althusser. Entre as principais iniciativas tomadas durante o exercício de sua função como secretário-geral do PCF, encontram-se: a criação de uma “direção coletiva”, a abertura do PCF para a imprensa não comunista, a proposta de rejuvenescimento dos quadros partidários, o apoio à candidatura única de esquerda de François Mitterrand para a presidência da República em 1965 e a defesa da “liberdade de criação” dos intelectuais ligados ao partido.(6)
Nesse encontro, um dos temas debatidos foi a relação entre teoria e prática. De acordo com Vigreux, Rochet considerava que Althusser opunha a teoria à prática,(7) mas, no relato, Althusser procura demonstrar que Rochet confunde prática com ideologia, concluindo que isso dificultaria pensar a prática em seus diversos domínios, enquanto luta ideológica, política ou econômica, além de inviabilizar a compreensão de que a ideologia espontânea do proletariado só se torna científica ao se encontrar com o marxismo, momento em que, segundo ele, os conceitos e noções típicos da ideologia pequeno-burguesa e burguesa deixam de influenciar a ideologia do proletariado.
É a partir do debate sobre a relação entre teoria e ideologia que a conversa começa a gravitar em torno da polêmica sobre o humanismo. Althusser insiste em dizer que, quando fala em anti-humanismo, trata do anti-humanismo teórico — e não do anti-humanismo em geral. A palavra “teórico” assume relevância na medida em que o trabalho científico passa a ser compreendido como o de crítica das noções e conceitos ideológicos, tais como: emancipação humana, alienação, essência humana, e de fundação da teoria marxista da história a partir de novos conceitos e noções, como: trabalho assalariado, classes sociais, relações de produção, forças produtivas etc. Para Althusser, os marxistas não podem sucumbir aos conceitos ideológicos típicos da problemática teórica humanista, pois isso implicaria não só negar a natureza científica do marxismo, como também traria consequências para a luta política do proletariado. Afinal, a quem interpela o discurso humanista? De acordo com ele, e contrariando as posições de Rochet, o humanismo teórico não interpela os camponeses e operários, fala somente a linguagem da pequena burguesia e da burguesia. Nesse sentido, mais do que mero capricho lexical ou terminológico, a crítica ao humanismo teórico empreendida por Althusser e reiterada nessa conversa com Rochet tem o objetivo de construir o marxismo como uma ciência da história e, assim, ratificar uma política classista para os comunistas, tal qual Marx e Engels já haviam formulado em O manifesto comunista quando, no processo de fundação da Liga dos Comunistas, substituíram o lema “todos somos irmãos”, defendido pela Liga dos Justos, pelo lema “proletários do mundo inteiro, uni-vos”, e trataram de caracterizar a revolução social como resultante do confronto de classes. No discurso humanista teórico, é a própria ideia de luta de classes que desaparece e cede lugar à irmandade dos humanos, isto é, à política de conciliação de classes.
Notas de rodapé:
(1) Professor de Ciência Política da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). (retornar ao texto)
(2) Éléments d'autocritique (Paris: Librairie, 1974), p.11. No Brasil, essa obra foi publicada no volume 1 de Posições, livro editado no Rio de Janeiro pela editora Graal em 1978. A referida dedicatória aparece na página 77 desse volume. (retornar ao texto)
(3) Althusser, Louis. Carta aos camaradas do Comitê Central do PCF. Crítica Marxista, n.41, 2015. Essa carta jamais chegou ao seu destino final. (retornar ao texto)
(4) Martuscelli, Danilo Enrico. Apresentação do documento "Carta aos camaradas do Comitê Central do PCF", de autoria de Louis Althusser. Crítica Marxista, n.41, p.1 33, 2015. (retornar ao texto)
(5) O relato da conversa com Rochet feito por Althusser é marcado por uma redação truncada em alguns momentos, como se fosse uma espécie de registro ou anotação informal e livre dos resultados de um encontro com um companheiro de partido. Esse texto se encontra nos arquivos de Louis Althusser guardados no Institut Mémoires de l'Édition Contemporaine (Imec), situado em L'abbaye d'Ardenne (norte da França), e foi publicado originalmente no número 2 da revista Annales de la Société des Amis de Louis Aragon et Elsa Triolet, em 2000. (retornar ao texto)
(6) Vigreux, Jean. Waldeck Rochet et les intelectuels. Nouvelles Fondations, n.3-4, 2006/3. A biografia de Rochet, elaborada por Vigreux, foi publicada no formato de livro: Waldeck Rochet, une biographie politique (Paris: La Dispute, 2000). (retornar ao texto)
(7) Vigreux, op. cit. (retornar ao texto)