Apresentação do documento "Carta aos camaradas do Comitê Central do PCF", de autoria de Louis Althusser

Danilo Enrico Martuscelli(1)

Outubro de 2015


Fonte: Crítica Marxista, n. 41, p.135-151, 2015. http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Quais questões teóricas e políticas estavam em jogo quando Louis Althusser decidiu redigir uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista Francês (PCF) em março de 1966?

Nos idos dos anos 1960, Althusser formulou uma análise original acerca da evolução do pensamento de Marx, orientada pela crítica ao economicismo e ao humanismo teórico e pela defesa do caráter científico da teoria marxista da história, formulada nos textos de maturidade de Marx. Publicadas em 1965, as obras Pour Marx e Lire le Capital poderiam ser concebidas como as principais referências do marxismo althusseriano daquela época. Na obra Pour Marx, Althusser reuniu uma série de artigos que havia publicado em revistas de esquerda na França desde 1960.(2) Já, no livro Lire le Capital, Althusser organizou um conjunto de textos oriundos de um grupo de pesquisa que coordenava na École Normale Supérieure, situada na Rue D’Ulm em Paris. A publicação original desta obra contou com artigos do próprio Althusser e de outros membros daquele coletivo, entre eles: Étienne Balibar, Jacques Rancière, Pierre Macherey e Roger Establet. Em 1968, este livro passou a ser editado com algumas retificações teóricas em relação ao texto original e a contar apenas com os artigos de Althusser e Balibar.(3)

É preciso ressaltar que a reação crítica a essas obras unificou no seio do pró­prio marxismo e da esquerda em geral autores e grupos que, no entanto, diver­giam em outras questões teóricas e políticas. Intelectuais e dirigentes stalinistas, trotskistas, social-democratas e católicos de esquerda deram-se as mãos para combater o anti-humanismo teórico defendido por Althusser. Defendiam que o marxismo era uma variante do pensamento humanista e ocultavam a revolução teórica empreendida por Marx em seus escritos de maturidade. O que faziam era enfatizar os elementos de indignação moral presentes em alguns textos de Marx de crítica política do capitalismo para ocultar a revolução científica representada pela teoria da história de Marx.

A elaboração da Carta aos camaradas do Comitê Central do PCF vincula-se às polêmicas em torno do humanismo teórico e da evolução do pensamento de Marx. Não há registros de que essa Carta tenha sido efetivamente enviada aos seus destinatários. O que sabemos é que ela se encontra disponível para consulta nos arquivos do IMEC e que sua primeira publicação/tradução foi viabilizada por William S. Lewis na revista marxista inglesa HistoricalMaterialism, número 15 (2007). Recentemente, outra publicação desta Carta apareceu na revista espanhola chamada Res Publica: Revista de Filosofia Política, número 29 (2013).

Em meados dos anos 1960, o PCF vinha acenando para a construção de uma política de aproximação com intelectuais e artistas. Em 22 e 23 de janeiro de 1966, o Comitê Central do PCF organizou uma jornada de estudos com intelectuais comunistas, em Choisy-le-Roi (cidade da periferia de Paris), na qual procurou debater os problemas suscitados pelas obras de Roger Garaudy (De l’anathème au dialogue) e de Althusser e seus discípulos (Pour Marx e Lire le Capital)(4). Roger Garaudy (1913-2012) era filósofo e dirigente influente do PCF. Althusser, passando naquele momento por uma crise de depressão, não pode participar deste encontro, mas encarregou Michel Verret de fazer a leitura de trechos do seu artigo “Théorie, pratique théorique et formation théorique. Idéologie et lutte idéologique” (1965), que havia sido recusado pela revista Les cahiers du communisme, ligada ao Comitê Central do PCF.(5)

A “Conferência de Choisy” pode ser considerada uma espécie de convenção preparatória para a reunião do Comitê Central do PCF, que seria realizada em Argenteuil (cidade localizada ao norte de Paris) nos dias 11, 12 e 13 de março de 1966. Desta reunião saiu a publicação de uma resolução que continha três partes fundamentais: I - O partido comunista, os intelectuais e a cultura; II - O marxismo e os problemas de nosso tempo; III - O partido e os intelectuais comunistas. O texto da resolução foi redigido pelo poeta francês Louis Aragon (1897-1982) e publicado no jornal do PCF, L’Humanité, no dia 15 de março. A resolução advogava claramente em favor das teses defendidas pelo próprio Aragon e por Garaudy na medida em que sustentava o caráter humanista do marxismo e enquadrava toda a reflexão sobre arte e cultura na problemática humanista.(6) As análises feitas por Althusser e seus discípulos foram ignoradas por tal resolução. Em resposta a tal posicionamento do Comitê Central, Althusser elaborou a referida Carta.(7)

A crítica formulada por Althusser às decisões do Comitê Central de Argenteuil fundava-se num problema central, a saber, na constatação de uma contradição exis­tente entre um objetivo declarado e a posição efetivamente tomada pelo partido, ou ainda, uma contradição entre “o princípio de não intervenção” nos problemas teóricos não resolvidos e a intervenção “de fato” nas questões ainda abertas e que, portanto, mereceriam aprofundamento nas investigações e debates teóricos. Para Althusser, os problemas teóricos ainda não resolvidos, para os quais o PCF havia dado uma resposta conclusiva, estariam relacionados à ideia de que “há um humanismo marxista”; à tese da “ausência de rupturas no vasto movimento criador do espírito humano”; e à elaboração de uma teoria da arte e da cultura fundada na perspectiva humanista. Althusser indica três erros teóricos presentes na resolução e estabelece uma linha de demarcação entre a sua posição teórica e a posição assumida pelo Comitê Central, que sofria forte influência das análises de Aragon e Garaudy.

Para Althusser, os conceitos antropológicos ou humanistas dos textos de juventude de Marx, tais como os conceitos de essência humana, alienação, desa- lienação, trabalho alienado, perda/reapropriação da essência humana etc., obstam a possibilidade de constituição de um conhecimento científico e, portanto, devem ser deslocados por conceitos propriamente científicos, como os conceitos de tra­balho assalariado, exploração de classe, luta de classe. Nesse caso, a resolução do Comitê Central comete um erro por omissão, pois ignora a caracterização do marxismo como um anti- ou a-humanismo teórico. O segundo erro é caracterizado como um erro por supressão, visto que a resolução condena a ideia de ruptura epistemológica, advogada por Althusser, preferindo filiar-se à linguagem das fi­losofias espiritualistas da criação que apontam para a inexistência de rupturas no “vasto movimento criador do espírito humano”. O terceiro erro é o de estabelecer uma teoria da arte e da cultura fundada em conceitos idealistas e espiritualistas (homem, criação, criador, liberdade criadora, poder criador do trabalho), consi­derados por Althusser como conceitos “vazios de conhecimento” que impedem pensar a “produção do efeito estético”, ou seja, que obstam a reflexão sobre a natureza dos processos estéticos.

Em termos gerais, é possível dizer que o cerne da análise de Althusser, presente nesta Carta, encontra-se na defesa da natureza científica da teoria marxista, o que o levou a reafirmar a tese de que o marxismo é um anti-humanismo teórico e, em decorrência disso, a postular algumas breves considerações visando à elaboração de uma teoria marxista da arte e da cultura.

Leia a carta de Louis Althusser


Notas de rodapé:

(1) Professor de Ciência Política da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), câmpus Chapecó. (retornar ao texto)

(2) A obra Pour Marx foi traduzida e publicada no Brasil pela Editora Zahar, primeiramente com o título Análise crítica da teoria marxista, em 1967, e, posteriormente, com o título A favor de Marx, em 1979. As duas edições encontram-se fora de catálogo. Em 2015, esse livro ganhou uma nova tradução, Por Marx, e foi publicado pela coleção Marx 21 da Editora da Unicamp. (retornar ao texto)

(3) A primeira versão da obra Lire le Capital foi traduzida e publicada no Brasil pela Editora Zahar, em 1979, com o título: LerO Capital, e encontra-se atualmente fora de catálogo no país. No capítulo 3 da obra Les aliances de classes, Pierre-Philippe Rey analisa as diferenças teóricas de fundo existentes entre as duas versões da obra Lire le Capital. Ver: Les alliances de classes (sur l'articulation de modes de production). Paris, Maspero, 1973. (retornar ao texto)

(4) Cf. François Matheron, «Louis Althusser et Argenteuil: de la croisée des chemins au chemin croix», Annales de la Société des Amis de Louis Aragon et Elsa Triolet, n.2, 2000. (retornar ao texto)

(5) Ainda nos anos 1960, esse artigo foi publicado em três países latino-americanos com o título: "Teoría, práctica teórica y formación teórica. Ideología y lucha ideológica" na revista Casa de las Americas, número 34, Havana (Cuba), 1966; "Marxismo, ciência e ideologia" no livro Marxismo segundo Althusser. São Paulo: Sinal Editora e Distribuidora, 1967; e "Práctica teórica y lucha ideológica", no livro La filosofia como arma de la revolución. Córdoba (Argentina): Ediciones Pasado y Presente, 1968. (retornar ao texto)

(6) Em 1970, apenas quatro anos após a vitória do seu marxismo humanista na reunião de Argenteuil, Garaudy foi excluído do partido devido às posições teóricas e políticas que foi assumindo após o movimento de Maio de 1968 - aproximação com a esquerda autogestionária, condenação da ocupação da antiga Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e negação do caráter socialista da antiga União Soviética. Após sua saída do PCF, Garaudy tornou-se religioso - aderiu ao catolicismo e, posteriormente, converteu-se à religião mulçumana. (retornar ao texto)

(7) Althusser registra no texto datilografado o dia 18 de março como data de elaboração desta Carta, mas há indícios de que ela tenha sido concluída alguns dias depois, após a elaboração de alguns esboços prévios. Cf. Ibid.; e William S. Lewis, «Editorial Introduction to Louis Althusser's 'Letter to the Central Comittee of the PCF, 18 March 1966'», Historical Materialism, n.15, 2007. (retornar ao texto)

Inclusão: 07/11/2019
Última alteração: 17/10/2023