Entre irmãos

Neno Vasco

6 de dezembro 1914


Primeira Edição: Conto foi extraído do jornal A Aurora (Porto, 6 de dezembro 1914), onde foi publicado no contexto do rebentar da 1ª Guerra Mundial.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/entre-irmaos/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Naquele lugar solitário e triste, onde o tinham posto de sentinela, o soldado meditava. No céu encoberto não luzia uma estrela; em frente, era o descampado silencioso e tétrico; atrás, ficava o acampamento, conde repoisavam por terra, embrulhados nos capotes, milhares de homens fatigados…

E o soldado meditava.

Trágica situação a sua… Quando criança, morrera-lhe o pai, e sua mãe casara com um estrangeiro, seguindo-o para a pátria dele, onde dera à luz um segundo filho. Depois, novamente viúva voltara à terra natal com os rapazes.

E veio a guerra monstruosa. Os dois irmãos que tanto se amavam, haviam partido passivamente para a chacina, todos imbuídos, desde a escola de patriotismo guerreiro. Soldados de pátrias inimigas, militavam em exércitos opostos. Dentro de poucas horas, travar-se-ia uma grande batalha: os dois irmãos iam talvez defrontar-se…

E o soldado, de arma em descanso, meditava.

E depois para quê? A que sacrificava ele o seu grande amor de filho, o seu grande amor de irmão? Os dois governos, os dois Estados diziam-se ambos defensores da liberdade, da civilização, da justiça… Ambos se pretendiam provocados e agredidos, em estado de legítima defesa… ambos invocavam causas supremas e supremos princípios…

Mas seria aquilo bem verdade? Ou seriam todos, ele e os pobres como ele, joguete de interesses inconfessáveis e de castas prepotentes? Não ganhariam com a guerra unicamente os corvos – as aves negras que se nutrem de cadáveres e os homens de rapina que vivem dos exércitos e dos armamentos, das conquistas e da exploração? Não haveria para os pobres apenas a miséria, como galardão da vitória ou quinhão da derrota?

Veio-lhe um grande acesso de revolta desesperada, irresistível, quase inconsciente. E como que empurrado por uma força dominadora, pôs-se a marchar através do descampado, ao acaso, sempre em frente.

Alto! Diante dele, parou um vulto no qual brilham metais. Um soldado inimigo! Uma sentinela avançada!

Não, não fará fogo! Agora, detesta a guerra fratricida, duplamente fratricida. O seu caso particular, que é um símbolo, iluminou-lhe o espírito. Não matará! Render-se: era a única solução. Esperaria o fim da guerra e voltaria ao lar materno, onde talvez sua mãe chorasse já a perda do outro filho…

E avançou. O vulto avançou também.

– Rendo-me!

Mas o vulto dissera o mesmo – e na mesma língua, na mesma língua materna.

– Rendo-me!

Iam talvez rir-se da triste e cómica situação; mas não tiveram tempo. Os dois irmãos, disfarçados de inimigos, haviam-se reconhecido pelo som da voz, e estavam nos braços um do outro, arquejantes, soluçando, rindo de ternura e de comoção, falando um ao outro a mesma linguagem de afeto.

Depois, num mesmo impulso, mútuos prisioneiros, atados pelos laços do amor, os dois soldados empreenderam de braço dado a marcha forçada da libertação incerta e da sorridente esperança…

Ao longe, o vento amigo rasgara um farrapo de núvens e descobrira um pedaço de azul, em que cintilavam estrelas.

E todo o descampado lhes pareceu claro, como que iluminado pela sua luz interior…


Inclusão: 24/06/2021