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Primeira Edição: A Lanterna (S. Paulo), N. 257, 22 de agosto de 1914. Também publicado sem assinatura no A Aurora (Porto) na mesma altura.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/a-guerra/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
LISBOA, 2 DE AGOSTO.
Desencadeou-se sobre a Europa um ciclone apocalítico de ferro e fogo! Sua Majestade a Morte vai ser bem servida pelos seus melhores trubutários: a Fome, a Peste e a Guerra. Soltaram-se os tigres: vão baquetear-se os corvos e as hienas. Os pastores cúpidos conduzem os rebanhos ao matadouro.
E dizia-se que a indústria é inimiga da guerra!
Assim seria, com efeito, se não se tratasse da indústria capitalista; se os meios de produzir fossem comuns, estivessem à disposição de todos; se não existissem fronteiras nem Estados; se se produzisse para satisfazer as necessidades de cada um, não para dar riqueza e poder a uma minoria que de tudo dispõe.
Mas entre a indústria capitalista e a guerra não há contradição alguma: antes pelo contrário.
A humanidade acha-se dividida em duas classes principais: a dos que tudo possuem e governam, dispondo dos homens por meio da detenção das coisas indispensáveis ou por maio da coação direta; e a dos que, privados da terra e dos instrumentos de trabalho, estão naturalmente sujeitos aos detentores da riqueza e do poder.
Além desse antagonismo fundamental existem – derivadas da mesma fonte, a Propriedade privada e o Estado – outras rivalidades entrelaçadas, de uma classe para outra ou dentro de cada classe, aqui em torno do ouro e do domínio, ali em volta dum modesto ganha-pão; aqui entre cobiçosos do mando e da opulência, ali entre pobres concorrentes, espicaçados pela miséria.
A divisão dos Estados, então, com a sua embrutecedora e traiçoeira religião patriótica, com o seu gendarme e o seu monstro militarista, ao mesmo tempo que origina novos ódios e disputas, serve para manter esse absurdo sistema de privilégios e de exploração.
Eis aqui um grande e rico país cuja produção agrícola e manufatureira poderia satisfazer amplamente as necessidades da sua população. Mas esta população, que vive do seu magro salário, não pode com ele readquirir o que produziu. É preciso, pois, exportar – mesmo o que faz falta no lugar de produção: é nisso que está o ganho. É esse o principal segredo do comércio e do enriquecimento duma minoria, à custa da privação geral. Se não há mercados para a exportação – embora haja no interior superabundância de necessidades a satisfazer – restringe-se a produção, fecham-se as fábricas, enchem-se as ruas de desocupados e famintos – cresce a miséria por haver… produtos em demasia! Se tudo fosse de todos, essa abundância seria uma bênção. Medir-se-iam as necessidades reais da população, tratando a comunidade de produzir o suficiente para as satisfazer. Mas, em regime capitalista, não se têm em mira as necessidades de todos, mas sim o interesse, o ganho dos detentores e diretores da riqueza: a abundância traz a baixa dos preços e a abolição dos lucros…
Por isso são tão disputados os mercados e os caminhos de ferro – origem de tantos conflitos.
Entretanto, uma guerra é uma aventura perigosa, pondo em risco poderosos interesses. Seria, pois, modernamente evitável, mesmo independentemente dos esforços proletários, se não houvesse uma categoria especial de interessados no estado de guerra declarado ou latente: os construtores de couraçados e material de guerra, os fornecedores do exército, o militarismo profissional. Amontoam-se armas e soldados, cria-se um espírito agressivo e provocador, convence-se a massa, por meio da grande imprensa, da iminência da guerra e da invasão, fomentam-se ambições e paixões guerreiras. No fundo, o que se pretende são encomendas e boas colocações. Mas vem um dia em que se inflamam os explosivos acumulados e em que triunfam os interesses de carniça e de pilhagem. Há dezenas de anos que a Europa corre desesperadamente para o abismo.
Que resultará desta colossal guerra? Um longo eclipse da civilização? O desaparecimento das magras liberdades conquistadas? O recuo do ideal socialista e libertário e da organização operária? A revolução?
Angustioso problema!
No princípio, a multidão falsamente educada, vilmente ludibriada, está toda entregue às paixões brutais, à embriagues guerreira, à loucura nacionalista – essa loucura de que o insigne Jourès foi a primeira vítima ilustre. Mas com os efeitos da guerra virá talvez a reflexão – e a revolta. Não talvez com as vastas finalidades da revolução social, levada a cabo com maior desenvolvimento de força e de consciência; mas rasgando em todo caso novos horizontes e novas possibilidades.
Melhor seria que a guerra fosse impedida pela greve geral insurrecional. Em todo caso, houve impotentes manifestações de protesto em todos os países: há progresso sensível sobre o estado de espírito anterior à guerra de 70, coroada depois com a Comuna de Paris…