Os Anarquistas no Movimento Operário

Neno Vasco

2, 3 e 4 de junho de 1914


Primeira Edição: TESE apresentada pelo grupo editor da BROCHURA SOCIAL à CONFERÊNCIA ANARQUISTA DA REGIÃO DO SUL REUNIDA EM LISBOA em 27 e 28 de JUNHO DE 1914 Escrita por Neno Vasco. Apresentada por Aurélio Quintanilha. Transcrito a partir de documento original disponibilizado pelo Seminário Livre da História das Ideias. Trata-se de uma tese apresentada a uma conferência anarquista em Lisboa (e também no Porto simultaneamente) em junho de 1914. O texto foi posteriormente publicado em vários periódicos, como «A Voz do Trabalhador» do Brasil (número 66, 1/1/1915), «A Aurora» do Porto (Abril a Junho 1917, números 12, 13, 16 e 17).

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/06/01/os-anarquistas-no-movimento-operario/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O ANARQUISMO NA INTERNACIONAL

Se procurarmos, não as origens filosóficas do ideal anarquista, nem a filiação do sentimento libertário nas revoltas e aspirações populares do passado — porque isso perde-se vagamente na noite dos tempos — mas sim o aparecimento dum movimento anarquista definido, do anarquismo operário com todas as características essenciais que tem hoje, vamos encontrá-lo como expressão do movimento operário, vamos encontrá-lo “sindicalista” antes do termo, no seio da Internacional e das associações internacionais de que Bakunin foi o principal inspirador, fundindo e vivificando as ideias marxistas com o pensamento de Proudhon e dos socialistas franceses. Para verificar este asserto, basta ler os escritos daquela época, como, por exemplo, os quatro límpidos artigos publicados por Bakunin, em meados de 1869, na Égalité de Genebra, e ainda recentemente reunidos em folheto pela Vie Ouvrière, sob o seu título original: A política da Internacional. Ou então a brochura de James Guillaume Ideias sobre a organização social, há pouco reeditada em italiano pelo nosso camarada Luigi Fabbri e depois pelo orgão da União Sindical Italiada, – o primeiro para propaganda anarquista e o segundo para propaganda sindicalista revolucionária.

O movimento anarquista formou-se, pois, no seio das associações operárias, em países com tradições revolucionárias e suficiente experiência democrática.

Entretanto, a Internacional era composta de sindicatos operários (sociedades de resistência) e de centros de estudos sociais ou grupos de ideias. Hoje concebe-se mais claramente, embora não inteiramente de novo, a diferenciação necessária entre os orgãos e funções do movimento operário e os de partido político-social, entre os de luta de classe e os de propaganda e ação revolucionárias.

ANARQUISMO E SINDICALISMO

Após a desastrosa guerra franco-prussiana, o esmagamento da Comuna de Paris, com a relativa hecatombe de revolucionários, e a dissolução da Internacional, veio um período de reação burguesa e de abatimento proletário. As sociedades operárias encolheram-se, abandonando-se aos pequenos expedientes daquela espécie de reformismo que poderíamos chamar, apesar da aparente contradição dos termos, conservador.

Do seu lado, os anarquistas insularam-se, enfraquecidos pela repressão e desanimados ante a enormidade da tarefa, ante o espírito dominante nas corporações. O anarquismo, apartado do movimento operário, entrou de definhar, de se consumir num criticismo estéril e impotente, de se dividir em pequenas capelas, por vezes ridículas, com infiltrações de individualismo burguês ou de misticismo, divagações metafísicas e torneios intelectuais de diletantes e de snobes. A tradição anarquista da Internacional pareceu por vezes quebrada, sobretudo em França, a despeito dos esforços de muitos militantes infatigáveis para chamar os anarquistas à consciência da sua missão e para os reconduzir ao terreno fecundo onde tomara corpo a nossa ideia. Lição severa para o futuro, pois as regressões, aparentes ou reais, do movimento operário tendem a desanimar muitos elementos revolucionários, que fazem acentuar ou perdurar com a sua retirada o recuo iniciado.

Por fim, tornou a encher-se a maré revolucionária. Os sindicatos, desiludidos do reformismo chato e do democratismo, adquiriam em França novo espírito; e os anarquistas, reanimados, lançavam-se de novo no movimento operário, atrás de pioneiros, entre os quais é preciso citar Pelloutier. O anarquismo levava o seu espírito, teoricamente enriquecido, convém dizê-lo, pois nem só inconvenientes lhe trouxera o insulamento; e recuperava em troca o seu caráter popular, de movimento prático de emancipação coletiva. Eis reatada a tradição da Internacional, com os enriquecimentos da prática e da teoria e com as modificações dos novos tempos. Eis revivificado o anarquismo operário, às vezes sob o nome de “sindicalismo revolucionário”, que é para muitos um simples eufemismo.

Há certamente várias espécies ou conceções de sindicalismo, como as há de anarquismo; e a cada passo, para saber se um sindicalista é na verdade dos nossos, precisamos, não só de observar a sua ação quotidiana e de indagar o modo como entende a luta operária, mas também de o interrogar sobre a sua maneira de conceber a reorganização social. Mas se verificarmos que procede como nós e pretende o mesmo que nós, não nos prendamos demasiadamente com os nomes preferidos, não provoquemos azedumes, desconfianças e divisões por causa de palavras. Para o anarquista, os termos anarquismo e sindicalismo podem ser igualmente queridos: o primeiro para indicar o seu ideal de sociedade sem Estado (não, claro está, sem organização e sem influências interpessoais), de sociedade sem privilégio político e económico; o segundo para designar a necessidade da organização para a luta de classe, para a expropriação dos capitalistas e para a reorganização da sociedade, para exprimir ainda a suprema necessidade da associação voluntária.

O sindicalista considera o sindicato profissional como agrupamento de combate hoje e como grupo produtor na sociedade futura. Mas como concebe ele o funcionamento desse grupo? Se o pretende único e fechado, proprietário exclusivo dos meios de produção, o seu ideal é um neo-corporativismo medieval, que produzirá uma nova forma de servidão. A mesma coisa, se ele entrevê uma comissão central a superintender na produção e uma burocracia sindical permanente: o seu fito é um Estado social-democrático, com uma nova divisão em classes. Para ser anarquista, deve querer o grupo profissional livre e aberto e não pode admitir a propriedade individual ou corporativa, nem uma nova classe burocrática; o seu ideal será a livre cooperação (determinada pelas necessidades a que todos voluntariamente se submetem) e o direito de cada um ao uso gratuito dos meios de produzir. O método de organização é a questão política essencial.

A ideia do sindicato ou sociedade de resistência constituindo o elo entre a sociedade presente e a futura, continuando amanhã em proveito de todos a produção hoje guiada pelo interesse duma classe, e a conceção duma sociedade como uma “federação económica”, como a livre federação dos grupos produtores, são velhas no anarquismo da Internacional e no seu continuador.

Evidentemente, o sindicato atual não será transplantado para a sociedade comunista livre tal qual está. Hoje mesmo modifica-se continuamente, na sua natureza profissional e no seu método de organização, sob a ação dos progressos técnicos e das ideias libertárias. Imagine-se, pois, a diferença, quando a produção, em vez de governada por uma classe em seu proveito, for diretamente administrada pelos produtores em benefício de todos, quando forem suprimidos os parasitismos e serviços inúteis ou nocivos, quando a técnica, posta ao serviço de todos e dispondo das forças de toda a sociedade, tomar um vôo prodigioso! Hoje, o sindicato é sobretudo uma associação para a luta.

Impossível é, pois, prever exatamente o modo de agrupamento na sociedade livre de iguais. Provavelmente, será múltiplo: o grupo profissional para a produção essencial (alimentação, vestuário, alojamento, etc.); o grupo de afinidades para a satisfação das necessidades intelectuais, estéticas e morais; a livre Comuna, para os interesses locais. E as multíplices federações livres, locais, regionais, mundiais, de sindicatos, de grupos por afinidades e de comunas.

Em todo caso, cremos que nenhum anarquista comunista deixará de concordar com Malatesta, quando este afirma a grande utilidade dos sindicatos no período de transição e especialmente durante a tormenta insurrecional. “Pode-se dum golpe derrubar e destruir o governo, podem-se expropriar os detentores da riqueza, mas não se pode de um dia para o outro reorganizar sobre bases completamente novas a produção e a troca. Entretanto, a vida económica nas suas funções fundamentais não admite interrupção. É preciso comer todos os dias, depois é preciso prover ao abastecimento das cidades, ao fabrico do pão, etc. E a satisfação destas necessidades, sem a qual a insurreição seria logo sufocada pela reação do povo faminto, pode ser enormemente facilitada pelos sindicatos já organizados e prontos a continuar em vantagem de toda a população o trabalho que eles já executavam por conta dos capitalistas.”

O AUTOMATISMO SINDICAL

Vimos que, sob a designação de “sindicalismo revolucionário”, achamos as mais das vezes um anarquista. Contudo, é frequente usarem de preferência aquela qualificação os que, embora com as mesmas aspirações finais que nós, confiam inteiramente nas virtudes intrínsecas do sindicato: este, para eles, conduz automaticamente, fatalmente, à revolução social e a uma sociedade de produtores livres e iguais, mesmo independentemente da ação e propaganda duma minoria consciente. Afinal, a diferença mede-se apenas em graus, pois não há anarquista que negue ao sindicato operário, agrupamento homogéneo de assalariados, a sua predisposição revolucionária, assim como não há sindicalista que dê crédito completo a essa nova forma de fatalismo económico (verdadeiro pendant e complemento do outro fatalismo marxista), conformando com ele a sua ação — ou inação.

A história do movimento operário em todos os países mostra-nos degenerações, recuos, longos estacionamentos, a luta de classe substituída pela colaboração com a burguesia, pela luta entre as corporações operárias, pelo reformismo estatal e patronal. No congresso anarquista de Amsterdão e noutras partes, Malatesta combateu essa conceção simplista da luta de classe, segundo a qual esta luta surge automaticamente, desde que se agrupam assalariados para defesa dos seus interesses imediatos, económicos e profissionais. Ora, entre os trabalhadores, tomados individualmente, e entre as corporações de ofício ou categorias, há amiudados conflitos e rivalidades de interesse, como, por exemplo, quando uma corporação reclama a construção de couraçados ou de arsenais (caso recente, em Itália), ou quando outra pede uma taxa aduaneira protetora, nociva para o povo em geral ou para outras categorias de operários.

Dizer que a luta de classe não nasce automática e fatalmente nas organizações corporativas, não é negá-la: nem disso pode ser acusado Malatesta, que é um dos mais lídimos representantes do anarquismo operário — “de luta de classe”, poderíamos chamar-lhe — e que sempre propugnou a ação direta, enérgica e solidária, dos trabalhadores contra a classe burguesa. É pelo contrário defini-la e defendê-la contra as falsificações dos corporativistas, que nela incluem atos de luta intercorporativa e de colaboração com a classe patronal. A luta de classe é a luta pelos interesses gerais do proletariado, ou pelos interesses corporativos que não contrariam aqueles; e, para ser revolucionária, deve visar à abolição das classes. E infelizmente, não é só o parlamentarismo, o pseudo-socialismo parlamentar, que conduz à colaboração de classes e à negação da luta de classe: o corporativismo, sem a ação consciente dos revolucionários, a cada passo aí vai ter.

A LIBERDADE DE PROPAGANDA NO SINDICATO

A demasiada confiança no automatismo revolucionário do sindicato pode levar a dois erros: a descurar a propaganda revolucionária, a considerar inútil e até nociva ou incómoda a ação das minorias libertárias no sindicato; e a julgar de pouca monta questão do funcionalismo sindical retribuído e permanente.

A nosso ver, para que a organização operária de resistência se eleve, pela ação, pela experiência, pela discussão, à conceção superior dum interesse geral de classe, que possa abranger o de toda a humanidade pela integração de toda ela na classe única dos produtores úteis, possuidores em comum de todos os meios de produzir, a minoria consciente que atua no seu seio como fermento revolucionário deve evitar dois escolhos: o primeiro é a subordinação da organização operária a um partido ou a adoção oficial duma doutrina, por mais revolucionária que seja; o segundo é, com o pretexto de independência, suprimir dentro do sindicato o franco e leal embate dos métodos e ideais, agindo no terreno e com os meios que o sindicato oferece.

Desde que os operários, convencidos da inutilidade ou insuficiência da ação e meios mutualistas, cooperativos, eleitorais e parlamentares, assim como do mal da inércia, se decidem a lutar contra a exploração capitalista, só podem constituir uma verdadeira força se se unem sobre o terreno dos seus interesses comuns, fora dos partidos e escolas doutrinais. A violação deste princípio de organização económica traz a dispersão de forças ou dá-nos uma ficção, perigosa para o próprio ideal apregoado na tabuleta: as ideias duma minoria artificialmente atribuídas à maioria inconsciente.

Mas a independência ante os partidos e escolas, a auto-administração da organização operária, não implica a expulsão do seio do sindicato dos ideais e das inevitáveis reações destes sobre a ação sindical. O sindicato não toma parte oficial em manifestações partidárias, não exerce funções que lhe não são próprias, age com os seus meios e no seu campo; mas nada mais. Unir forças não é nivelar tendências, nem abdicar de opiniões. Pelo contrário. A alma da união está na tolerância e no respeito mútuo das opiniões, assim como a alma do movimento operário é a livre expansão das ideias — procurando conquistar, não os estatutos e as declarações oficiais, mas o espírito dos associados e das massas, para se traduzir espontaneamente em factos.

O FUNCIONALISMO SINDICAL

A questão do funcionalismo sindical não está posta em Portugal. Por um lado, não há funcionários pagos permanentes; e por outro, a inconsciência e a desorganização da massa exigem a iniciativa e a dedicação dos militantes.

Convém, porém, estarmos prevenidos contra o perigo duma burocracia sindical, que contrariasse o fim do sindicalismo revolucionário e do anarquismo. Os funcionários permanentes, obrigados a um equilíbrio entre as várias tendências, paralisados pelas responsabilidades da sua situação, são levados a descuidar, em seguida a dificultar e finalmente a trair a propaganda e ação revolucionárias, tendendo para se encerrar nas tarefas administrativas e estreitamente corporativas. E como, em geral, adquiriram influência e prestígio entre os sindicalizados, estes seguem amiúde os seus pastores, quase sempre sem perceber a mudança: tanto mais facilmente, quanto mais se houverem acostumado a deixar aos seus funcionários e militantes o cuidado da ação e da iniciativa. O funcionalismo sindical pode ainda constituir uma ameaça numa remodelação social, tendendo a ficar como nova burocracia, estranha à produção, num novo Estado.

Sobretudo os anarquistas devem — salvo circunstâncias especiais, necessidades impreteríveis e irremediáveis de outro modo — conservar-se simples sindicalizados entre os sindicalizados, para suscitar energias, despertar consciências, impelir os indivíduos à ação direta e à gerência direta do trabalho.

ATITUDE DOS ANARQUISTAS NO SINDICATO

Primeiro que tudo, uma questão que diremos pessoal: o anarquista deve principiar por se fazer estimar e escutar. Questão de temperamento, de feitio, dir-se-á; mas nós, que somos propagandistas, que queremos determinar vontades pela doutrinação e pelo exemplo, comecemos por educar a nossa.

Componhamos para nós uma filosofia essencialmente anarquista, baseada em três princípios: a dúvida, derivada da inexistência duma certeza absoluta e porta aberta a novas verdades, a modificações nas ideias próprias; a tolerância, filha dessa dúvida e da necessidade do respeito alheio às nossas convicções; a ação, suprema necessidade da vida e único modo de verificar hipóteses e descobrir verdades. A dúvida e a tolerância, sem a ação, seriam o ceticismo doentio e desfibrador, o negativismo estéril e impotente, ou a subserviência mole e apática. E agir sem um plano, modificável embora pela experiência, ou, por outro lado, segundo uma fé cega e intolerante, seria andar às cabeçadas e correr ao encontro dos maiores desastres. Não sejamos zaragateiros inconsultos, nem críticos rabugentos e enervadores.

Livremo-nos sobretudo de criticar apenas sem dar o exemplo da iniciativa e da ação. Nos atos e movimentos que só muito moderadamente nos agradem, sejamos nós os mais ativos e dedicados, depois de termos francamente exprimido a nossa opinião, e trabalhando em todo caso na parte mais harmónica com as nossas convicções e no sentido por elas determinado. Não descoroçoemos, não estorvemos a ação, sob pretexto de crítica; porque, se o fizéssemos, não só perderíamos nós o crédito em breve, mas faríamos perder aos outros o benefício da experiência.

Nos conflitos e dissensões entre operários, digamos nós a palavra de tolerância e de concórdia: “paz entre nós, guerra aos senhores!”, como se canta na Internacional. Os anarquistas não vêm para desunir, mas para unir. Nós não temos interesses pessoais nem de partido a salvaguardar, não disputamos o domínio, como os políticos — para os quais, aliás, a própria cordialidade serve de instrumento nessa disputa. A nossa cordialidade não aspira… à presidência da República, mas a servir o nosso ideal e a promover entre os oprimidos e explorados uma união moral que, à falta duma identidade de ideias e aspirações, seja a primeira base da luta solidária contra os amos para emancipação comum. E desejando nós que os grupos produtores do futuro sejam tolerantes, livres e abertos, mais uma razão para desde já prepararmos esse estado de espírito nos sindicatos, primeiros núcleos da sociedade nova.

A PROPAGANDA ANARQUISTA NOS SINDICATOS

Os operários anarquistas reclamam o direito à livre expansão das suas ideias nos sindicatos, tanto mais que essas ideias são precisamente, antes de tudo, a independência da organização operária ante os partidos, a sua abstenção nas lutas políticas partidárias, o emprego exclusivo dos meios de ação direta próprios do sindicato e comuns a todos os assalariados. Os anarquistas querem que a luta operária seja diretamente conduzida pelos próprios interessados, assim como pretendem que a reorganização social seja obra direta dos trabalhadores.

Em matéria de organização, reclamam a maior simplificação administrativa, a maior elasticidade, a mais perfeira realização possível dos princípios de autonomia e livre federação.

Quanto ao fito da atividade sindical, embora os preocupe sobretudo a necessidade duma revolução social, bem como a urgência de dar ao maior número possível a consciência dessa necessidade, os anarquistas não desconhecem o inevitável e o indispensável dos melhoramentos e conquistas parciais. Fazem, porém, uma seleção, orientados pelos interesses gerais do proletariado, considerado como classe em vias de emancipação, e pelo bem duma humanidade livre e sem classes.

Os anarquistas apoiam o que poderíamos chamar reformas de economia operária, referentes ao trabalho e à oficina, girando no âmbito dos interesses diretos dos trabalhadores e sujeitas à sua contínua fiscaliação e ação diretas, garantias únicas de realização. Também favorecem a ação direta e a pressão exterior sobre os poderes públicos, quando se trata dos interesses diretos, morais ou materiais, do povo trabalhador.

Mas há uma classe de reformas, a cuja conquista, independentemente dos métodos de ação, o operariado não deve dedicar as suas forças organizadas, nem os anarquistas podem associar-se: são as reformas de economia burguesa (fomento, intensificação da indústria nacional, protecionismo ou livre câmbio, reformas orçamentais, etc.), as quais conduzem à colaboração com a burguesia, dividem o proletariado em categorias rivais, dispersas pelos diferentes partidos políticos, franca ou disfarçadamente burgueses, e são para estes o melhor engôdo destinado a atrair os trabalhadores ingénuos.

AS REFORMAS ECONÓMICAS BURGUESAS

Em todos os países, mesmo nos mais industriais, quando os operários reclamam melhorias, respondem-lhes com o deficit do orçamento ou da produção, ou com a incapacidade das indústrias, ou com a concorrência estrangeira, etc. O que os operários (ou os militantes por eles) devem responder é o seguinte:

— Arranjem-se como puderem. Vocês é que têm a administração: só vocês poderão e deverão tratar do desenvolvimento industrial e da distribuição dos encargos entre iguais, habilitando-se a satisfazer as nossas reclamações inadiáveis. Lá se avenham uns com os outros; nós queremos ter uma existência mais humana e tornar mais livre o trabalho. Já que não administramos diretamente as coisas, já que são vocês os detentores e diretores de tudo, assumam as relativas responsabilidades. E, se não podem, arreiem: abandonem o posto…

Quando muito, à laia de argumento, para retrucar ao hipócrita “não podemos” capitalista, poderão os operários indicar o que os detentores da riqueza social deveriam fazer, em matéria de fomento, aplicação de receitas, desenvolvimento das indústrias, aperfeiçoamentos técnicos, etc.

E para esporear os capitalistas nas medidas e trabalhos de utilidade geral, têm os operários as suas reclamações de salários, horas de trabalho, higiene e melhoramento da oficina, etc. Essas conquistas, quando restringidas a um grupo ou a poucos grupos de trabalhadores, são recuperadas pelos patrões sobre a massa produtora e consumidora. Mas se elas se generalizam, se a todo o operariado se estende o movimento de reivindicações, as repercussões encontram forte resistência, tendem a provocar novas exigências operárias, e os patrões e governantes tratarão de as evitar, refazendo-se de outro modo: repartindo entre si os encargos de maneira diversa, aumentando a produção, barateando os produtos por meio de novos processos técnicos, etc. O desenvolvimento industrial de muitos países tem em boa parte essa explicação. Mais uma razão para a generalização da organização e movimento operários.

A ação operária, de classe, independente e livre de compromissos e colaborações nefastas, não é só caracterizada pelo método, pela luta direta, mas ainda pela natureza das reivindicações. Saindo dela, o sindicato contradiz a sua missão, desune, em vez de unir. Os anarquistas é que não podem aceitar reformas capitalistas,que empurram o operariado para a colaboração com a classe burguesa, para a criação de categorias operárias antagónicas e para a formação de sub-classes privilegiadas no seio do proletariado.

Chegados ao fim do nosso trabalho, que aliás maiores desenvolvimentos demandaria, condensemo-lo em poucas conclusões.

CONCLUSÕES

  1. Consideramos o sindicato como agrupamento necessário de luta de classe, para defesa imediata dos interesses morais e materiais dos trabalhadores, e como primeira célula da sociedade renovada, assegurando a indispensável continuidade da vida social;
  2. Vemos no sindicato um terreno admirávelmente predisposto para a sementeira das nossas ideias — ideias de emancipação dos oprimidos e abolição das classes, expressão das necessidades populares e consequência lógica do movimento operário; mas achamos imprescindível essa semeadura, a ação duma minoria revolucionária consciente e ativa dentro da organização sindical;
  3. Desejamos sindicatos independentes dos partidos políticos, administrando-se a si pŕoprios, agindo com os seus próprios meios, abertos a todos os trabalhadores de qualquer crença ou opinião, dando a todas as convicções liberdade de expansão e de discussão;
  4. Temos como necessária e educativa a ação direta e incessante dos trabalhadores organizados para melhoramento das suas condições; mas reputamos nefastas as reformas que, com qualquer método de ação, criam antagonismos operários e levam à colaboração de classes, ou ao fortalecimento do Estado e ao desenvolvimento da sua burocracia.

Camaradas:

Onde quer nos achemos, não percamos de vista o nosso fim — a expropriação da burguesia e a reorganização da sociedade por obra direta dos produtores úteis, em vantagem de todos; e o meio supremo para esse fim: a revolução social, revestindo provavelmente a forma de greve geral, imediatamente insurrecional e expropriadora, a abrir o caminho a novas possibilidades, a criar condições para novas formas de vida.

Lancemos, pois, desde já, no caminho dessa revolução que se elabora, o ouro puro das nossas ideias e esforços integrais, para obter a melhor liga possível, suscetível de se purificar em breve com novas adições.

2, 3 e 4-6-1914


Inclusão: 24/06/2021