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Primeira Edição: A Lanterna de S. Paulo, N.º 215, 1/11/1913. Também publicado no A Aurora do Porto (28/12/1913).
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-professor-primario-e-o-padre/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Clemenceau descreve, num número recente do Manuel gènèral de l’instruction primaire, a luta que o professor laico tem que sustentar em França (como, aliás, em outros países).
O professor primário que pretenda lutar só tem por ele uma «irresponsável burocracia, cuja doutrina única é não ter questões», e tem contra ele «a mais poderosa jerarquia que o mundo jamais conheceu, desde o sacristão ao papa, passando por bispos; e, como se não bastasse esse bloco formidável, eis que às potências do céu se juntam as potências da terra para repelir o propalador de humildes verdades desagradáveis. O castelo, que protegeu a Igreja, precisa hoje da sua proteção. Entra, pois, na batalha, assim como tudo o que do povo emergiu para se aproximar do senhor terreal. E o próprio povo, na sua larga acepção de multidão assalariada, sob a dependência dum patrão ou duma clientela, alista-se de bom ou mau grado contra o homem que veio para o emancipar.» Depois de mostrar como o professor é mal defendido, quando não perseguido e castigado, pela gente oficial, o articulista escreve: «Eu digo que, para aceitar essa luta na cruel desvantagem das condições que acabo de indicar, é preciso um esforço de heroísmo em nada inferior ao do mais valoroso guerreiro.»
E os dois ensinos? Um novo, caluniado, mal armado; o outro cheio de prestígio, de tradição e de aparências. Traduzimos:
«Com a sua leve bagagem de humildes livros, o mestre leigo traz aos seus alunos as noções elementares que mais tarde hão-de determinar os meios de conhecer, não oferecendo nem podendo oferecer ainda senão vistas sobre possibilidades de saber. Tarefa ingrata sobre todas! O discípulo abre com religioso respeito o primeiro livro em que vai oferecer-se-lhes, pensa ele, um mundo inteiro de verdades eternas. Vã ilusão de ignorante, desfeita no primeiro embate da realidade! Começos de começos que levarão mais tarde a outros começos ainda, antes de alcançar avenidas de saber que se enterram na obscuridade do universp infinito. Pela virtude duma magia de iniciação, julgava-se o estudante na situação de ir conhecer. Se acaso é capaz de refletir sobre si mesmo, sente já vagamente que está a braços com o inatingível e que nunca possuirá senão fragmentos de fragmentos. E ainda assim, apenas um escol é que poderá elevar-se a essa altura de vistas. A massa, desconcertada, obstinar-se-á na sua necessidade de absoluto e esperará de outro a luz de milagre que aliás lhe não faltará…
«Não longe dali, entretanto, levantou-se outro ensino, que não solicita esforço algum de intelectualidade árdua. Distingue-se do resto da humanidade um traje hierático. Do templo augusto onde reside a Divindade, deixa de cair sobre os homens palavras de eternidade. Como o professor, apresenta-se com o seu livro, mas este livro possui sobre o outro a vantagem de ser a chave de tudo e de não deixar questão alguma sem resposta… Repetindo fórmulas duma simplicidade que desconcerta a contradição, o aluno tem palavras definitivas sobre tudo… A autoridade superior do clérigo impõe-se irresistivelmente, atestada pela magestade do santo lugar, pela tradição secular, pelo consenso universal das turbas.»
Apesar disto, os professores primários têm persistido e alcançado vitórias. E isso, declara Clemenceay, devem-no eles à sua união, à sua ação coletiva, ao esforço das suas sociedades amicales, das suas mutualidades e dos seus círculos de estudo — não ao Estado «laico», que os abandona em regra geral e que os persegue e estorva muitas vezes. Os factos são inúmeros.
Clemenceau, porém — naturalmente! —, não quer sindicatos de de mestres, embora confesse que «aos sindicatos é reconhecido o direito de defender os interesses gerais da função», direito que as amicales tiveram amiúde que tomar, «saindo do domínio dos interesses profissionais» e transformando-se assim, de facto, num sindicato.
Queira-o ou não Clemenceau, o professor primário continuará cada vez mais a formar uma nova concepção da escola popular, adaptada às novas necessidades do povo em vias de emancipação social, isto é, do proletariado organizado em sindicatos, com cujos interesses e aspirações o mestre primário se sente cada vez mais identificado. E o sindicato surge então naturalmente, para conquistar para o professor a necessária autonomia, a direção da sua própria função, de harmonia com as outras funções produtivas. Para começar, o sindicato acha, com Condorcet, que «é necessário tirar ao foverno, não só toda ação direta sobre a instrução, mas até toda influência indireta», que «os estabelecimentos pela força social consagrados à instrução devem ser o mais possível independentes de qualquer autoridade política.»