Carta a Alves Pereira

Neno Vasco

28 de outubro de 1913


Primeira Edição: revista AURORA, N.º10, junho de 1930

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/correspondencia-de-neno-vasco/carta-a-alves-pereira-28-10-1913/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Lisboa, 28-10-1913

Caro Amigo Alves Pereira:

Recebi a tua carta de 25, acompanhando a carta do Gonçalves Correia.

Eu já tinha ouvido falar dessa nova tentativa de colónia comunista. Escreveu-me a tal propósito, há já bastantes meses, Maria Adélia Fernandes, que, numa linguagem mística, entusiástica e cheia de maiúsculas, tinha a ingenuidade de nos convidar — a minhas cunhadas especialmente — para a tal «comuna libertária»…

Como me pedia também que lhe comunicasse o endereço de Maria José Pires dos Santos ou entregasse a esta uma carta sobre o mesmo assunto — não me recordo bem — limitei-me a responder sobre este último ponto. Não me lembro, por sinal, se a procurada foi encontrada por quem disso foi incumbido por mim. Creio que sim e que não fez caso do convite; mas isso não o garanto.

Depois, a minha correspondente estranhou talvez a minha indiferença ante a grande novidade e houve quem a informasse da minha opinião a tal respeito. Escrevendo-me de novo, disse-me que estava disso informada e pediu-me que não atacasse a «comuna»!

Agora torno a encontrar na carta do Gonçalves Correia a mesma linguagem, reveladora do mesmo estado de espírito. O teu embaraço é justificado e seria o meu no teu caso.

Recomendar ou mesmo anunciar como «comunas libertárias» esses míseros ensaios de cooperação restrita é inconsciência ou ingenuidade, quando não é fraqueza, porque é contribuir para manter ou divulgar um falsíssimo conceito — místico e pueril — do anarquismo e dos seus meios, é contrariar a propaganda do anarquismo e contribuir para o seu descrédito.

Mas, por outro lado, discutir com homens que têm aquela linguagem, aquele modo de pensar, é muitas vezes tempo perdido e não dá amiúde outro resultado senão o afastamento e a irritação de elementos sinceros e dedicados. E quando conseguimos convencê-los, corremos o risco de lhes destruir ao mesmo tempo o entusiasmo, o ardor na luta e a fé no esforço próprio, pois não estão preparados para aceitar de chofre novos processos e novos modos de atividade. É preciso dar tempo ao tempo.

O que neste momento me ocorre como mais razoável e prático é escrever-lhe, ao G. Correia, com a maior afabilidade, procurando mostrar-Ihe que, no próprio interesse do seu ensaio e no interesse das ideias, convém realizar a empresa entre amigos, sem espalhafato, sem publicidade, até se poder apresentar ao público, se não uma realização prática do anarquismo, impossível de realizar em pequenas doses no meio desta sociedade, ao menos um exemplo de cooperação fraterna e boa harmonia entre camaradas, num esforço para suprimir desde já algumas pequenas misérias e algumas pequenas sujeições imediatas (o que já é conceder-lhes muito).

Mas para isso, para que tenha valor o exemplo, é preciso que esteja já de pé, sólido, em pleno êxito, e não é prudente nem sensato chamar a atenção para uma tentativa, que pode fracasar como as outras, pelas mil dificuldades do ambiente. Assim têm procedido prudentemente outros experimentadores, aliás com recursos muito superiores aos da colónia do Vale de Santiago. Certamente G. Correia e os seus amigos não quererão chamar ali toda a gente, nem poderão aceitar quem quer que apareça. Quererão um número reduzido e só gente afim e conhecida, se não de todos os colonos, ao menos de alguns… Mais uma razão para se dispensar o réclame.

Se ele teimar em querer anúncio e barulho, se quiser discutir, então pensaremos no melhor meio de o fazer. Talvez então convenha dar a noticia, o mais neutra possível, sem comentários, e reproduzir depois alguns artigos sobre colónias, falar de outras tentativas, etc., sem alusão directa à… «escola prática de vida livre».

— A Mercedes não está pior; mas aquilo ainda está para durar, ao que parece.

— Recomenda-me ao Lucena, Amadeu e mais amigos.

Abraça-te, o


Inclusão: 24/06/2021