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Primeira Edição: jornal A Aurora do Porto (2/3/1913). Artigo de fundo não assinado. A confirmação da (já muito evidente) autoria de Neno Vasco vem no seu artigo no número seguinte do mesmo jornal, «Sindicalismo e Anarquismo» (9/3/1913).
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/em-defesa-do-anarquismo/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Não foi sem surpresa que lemos no último número do Sindicalista, como artigo de fundo, um escrito de Manuel Ribeiro que falseia o anarquismo, sob pretexto de defender o sindicalismo, que não tinha sido atacado.
No seu artigo na Terra Livre, Emílio Costa reconheceu, como era de esperar, a capital importância do movimento operário sobre o terreno da luta de classes, assim como o alto valor e necessidade da organização sindical autónoma. Criticando a frase «o sindicalismo basta-se a si próprio», o camarada Emílio Costa deu-lhe talvez um sentido que outros lhe não dão, mas de modo algum quis atacar a autonomia sindical, a obra de emancipação operária feita pelos próprios operários, as instituições de luta genuinamente proletárias. É reler de espírito claro o seu artigo e considerar as suas bem conhecidas e velhas ideias.
Dizer, pois, que o seu artigo «veio talvez fazer mais mal ao sindicalismo do que a conferência do sr. Afonso Costa» é tão grande e irritante disparate como, por exemplo, considerar anti-sindicalista o próprio Georges Yvetot, um dos secretários da C. G. T., só por ele ter chamado, no artigo que a Terra Livre traduziu da Bataille Syndicaliste, «pretenciosa teoria», «sindicalismo falso e complicado», às construções teóricas dos «intelectuais» como Berth e Sorel.
Para estabelecer diferenças entre uma determinada concepção teórica do sindicalismo, ou por outra, do movimento operário, e o anarquismo, Manuel Ribeiro começa por despir o anarquismo do seu fim, por esvaziá-lo do seu conteúdo, considerando-o sob o aspeto político apenas!
Ora é sabido que a palavra anarquismo designando por si só a política, isto é, o método, a organização, não é mais do que a abreviatura usual de comunismo libertário, ou mais genericamente, de socialismo-anarquista. Como socialistas primeiro que tudo, queremos a morte do salariato e do capitalismo, a abolição das classes, a socialização dos meios de produzir; para esse fim é que somos anarquistas, isto é, partidários da ação direta económica e política, da organização livre da vida social por obra direta dos produtores-consumidores, da livre associação dos trabalhadores e livre federação dos grupos de produção (ou dos sindicatos, como já diziam os anarquistas da Internacional). Em economia social, em moral, como objeto da sociedade, defendemos o socialismo (a-capitalismo, anti-individualismo); em política, como método de ação e de organização, temos o anarquismo (anti-estatismo) ou livre federalismo (federalismo económico, diziam Proudhon e Bakunin). Socialismo e anarquismo, sempre os considerámos interdependentes, não podendo viver um sem o outro, pois o privilégio económico tende a estabelecer o privilégio político e vice-versa. É o que diz, por exemplo, Kropotkin, quando escreve que «a cada modo de produção corresponde uma forma política». E reconhecia-o o próprio Marx, escrevendo em 1872: «Todos os socialistas entendem por Anarquia isto: uma vez alcançado o objetivo do movimento proletário, a abolição das classes, desaparece o poder do Estado, que serve para manter a grande maioria produtora sob o jugo duma minoria exploradora pouco numerosa, transformando-se em simples funções administrativas as funções governamentais» (As pretendidas cisões na Internacional).
O movimento anarquista foi socialista desde a origem, na Internacional, na Federação Jurassiana, sob a influência das doutrinas de Marx e de Proudhon — do mesmo que disse: «a oficina há-de matar o governo». Bakunin traduziu e propagou O Capital; e ele e os da sua tendência diziam-se a princípio unicamente socialistas. Na Itália, por exemplo, o socialismo foi introduzido pelos anarquistas.
Se estes depois começaram a ser designados pelo seu qualificativo político foi porque o parlamentarismo principiou a corromper e a desviar o socialismo. As questões de tática e de método acentuaram-se naturalmente; e são elas no fundo as que melhor diferençam os partidos. Não ocupam elas ainda o maior lugar nas discussões entre os sindicalistas revolucionários e os reformistas? entre os partidários da ação direta e da autonomia sindical e os defensores da ação parlamentar dos sindicatos e da subordinação do movimento operário ao socialismo democrático? Os anarquistas não deixaram o seu socialismo, o seu anticapitalismo; mas em face da corrupção parlamentarista, frisaram a sua tática, o seu método, ao mesmo tempo que, do seu lado, os sociais-democratas, por ignorância ou sectarismo, pretendiam monopolizar o socialismo. Eis as razões das abreviaturas «anarquismo» e «anarquistas».
O anticapitalismo é elemento substancial do anarquismo; e para sorrir da fantasia que dá o anarquismo como tendo sido só a luta contra o Estado, porque este era tudo e tudo dominava, ao passo que o «sindicalismo» surgiu depois como luta contra o capitalismo, quando começou a predominar o fator económico, basta notar que o sindicalismo revolucionário não apareceu nos países anglo-saxónicos, tão industriais, mas primeiramente nos países latinos, menos industriais, onde também se desenvolveu mais o socialismo anarquista.
O anarquismo teve degenerações? Mas que doutrina social, que movimento não está exposto a erros e a desvios? Não foi o parlamentarismo um terrível cancro para o socialismo? Não degenerou o trade-unionismo inglês e norte-americano, tão revolucionários no começo? Não há no movimento operário organizado — e no entanto, é movimento, é ação — tantas teorias interpretativas, tantas tendências, táticas e infiltrações estranhas?
Sim, o anarquismo teve o joio individualista, que a mais importante corrente sempre se esforçou por arrancar e repelir. E aqui, entendamo-nos quanto à palavra «individualismo». No seu sentido clássico, o individualismo é a doutrina económica e moral da burguesia, o regime da propriedade individual e da concorrência, a luta de todos contra um e de um contra todos; ora os chamados anarquistas «individualistas» não repelem de todo, sob o ponto de vista económico, o comunismo, tão evidente é que o anarquismo sem socialismo seria sem objeto, seria… a forma sem a matéria. Dão ao «individualismo» o significado confusionista e restrito de doutrina do insulamento, erro nefasto derivado de circunstâncias históricas bem conhecidas e da grosseira confusão de «organização», princípio fundamental e indestrutível da vida social, com «autoridade», parasita da organização.
Vai longo o artigo. Deixamos outros pontos — como o valor da propaganda, as relações entre o facto e a ideia, o atentado político, etc. — para outra vez, tanto mais que Manuel Ribeiro promete continuar, e nós também…