Os três parafusos

Neno Vasco

Dezembro de 1912


Primeira Edição: revista A Sementeira, Nº 50 da 1ª série, dezembro de 1912.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/os-tres-parafusos/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


No último capítulo do seu livro Qual é a minha vida? Tolstoi compara engenhosamente a parafusos os modos da escravidão moderna.

Cada escravidão se baseia sobre a violência brutal, sobre uma ameaça de morte. Se um homem tem uma alimentação e um vestuário insuficientes, obriga os filhinhos a um trabalho superior às suas forças, vai, muitas vezes longe da sua terra, dedicar toda a vida a um trabalho repugnante e inútil, é porque é constrangido por uma ameaça de morte. Os homens muitas vezes não notam tal ameaça e julgam-se ingenuamente livres. É porque a disfarçaram sob novas formas e palavras.

Na antiguidade, o meio de escravizar e a ameaça de morte eram evidentes. Havia a escravatura pessoal e a espada. O senhor dizia ao seu escravo: «És meu prisioneiro, posso matarte; mas se trabalhares para mim, perdoo-te; se não fizeres o que eu te mandar, mato-te». Eis o primeiro parafuso, o parafuso-base, o mais importante ainda: a espada.

Mas a civilização complica-se. O senhor só pode ter um número restrito de escravos, sendo forçado a cuidar deles. Demais deve ter a ameaça de morte sempre suspensa sobre a cabeça do escravo. É preciso outro parafuso: é a propriedade da terra e das provisões, é a fome. O senhor diz ao servo: «Posso fazer-te morrer de fome, porque o trigo é meu; mas dou-te um pouco, se em troca fizeres o que eu ordenar». A espada subsiste ainda, mas sobretudo para guardar as provisões, para as defender contra os ataques dos roubados. Estes, constrangidos pela fome, vêm oferecer-se, vender-se de per si aos administradores das riquezas do país, aos donos dos celeiros (Génesis, XLVII, 13 a 26). A escravidão abrange maior número de servos, que não é preciso ir buscar à força, nem alimentar, nem vestir. É verdade que o senhor tem de repartir com mais associados, mais funcionários: soldados e administradores; mas também tem mais interessados na conservação do domínio. Todos os proprietários, e os que o podem vir a ser por um feliz concurso de circunstâncias, são associados.

Mas a civilização complica-se ainda. É preciso outro meio mais maleável, mais flexível; é preciso não deixar escapar ninguém à escravidão. Inventa-se outro parafuso: o dinheiro, o imposto. Baseia-se também sobre a fome; mas à privação dos produtos da terra, ajunta-se a de outros objetos indispensáveis à vida: carne, peles, lã, vestuário, combustível, e mesmo casas. O escravo é obrigado a vendê-los para pagar os impostos. À fome, soma-se o frio, toda a espécie de privações. O senhor diz ao assalariado, ao contribuinte: «Disponho de ti porque tenho a espada e a terra; mas deixo-te em liberdade, se me pagas um imposto em dinheiro, que representa tudo isso. Arranja-te como puderes.» Assim o amo dispõe dos operários, não só em tempo de carestia, de fome, mas em todos os momentos. Governa-os pela privação, pela miséria. Depois poucos podem escapar, ou ninguém escapa a este meio de opressão. O opressor tem, é verdade, maior número de sócios: aumenta a burocracia, cresce o número de proprietários; mas em compensação não o amparam eles?

Estes três meios de escravizar nunca deixaram de existir. São três parafusos que apertam as tábuas entre as quais são presos e esmagados os trabalhadores.

O parafuso do meio, o mais importante, é a espada: nunca se desanda, sem ele não duraria a opressão, não seria possível. Hoje a escravatura pessoal perdura no exército, na polícia, na classe armada. Mudou de nome unicamente: chama-se disciplina; em vez de durar toda a vida, é só durante o serviço, o contrato. Ali há obediência passiva, sob pena de morte ou de tortura. Persiste também ainda a ameaça de morte: se os camponeses se apoderassem das terras para as cultivar por conta própria e organizar a produção em proveito de todos, viriam os soldados para as retomar. Se alguém recusasse pagar o imposto, iria parar à cadeia.

A existência atual dos outros dois parafusos é manifesta. Existem os proprietários, os monopolizadores: ou um só, como na Turquia; ou um pequeno número, como na Inglaterra; ou um número um tanto maior, como na Rússia, na França, etc. Os impostos crescem também cada vez mais. Temos portanto a apropriação particular da terra, das provisões, dos instrumentos de trabalho, o dinheiro, os impostos.

Às vezes dá-se um grande grito de alegria porque afrouxou um parafuso; mas não se repara que os outros dois foram mais apertados. A escravatura pessoal só abranda, quando se desenvolvem os outros dois meios de opressão, mantidos pela mentira e pela violência. E se o parafuso da apropriação da terra se desatarraxa, o do imposto apera mais. Assim o problema da nacionalização do solo reduz-se a isto: apertar o parafuso imposto para afrouxar o da servidão agrária.

Os três parafusos representam a opressão militarista, política e económica, isto é, a Propriedade monopolizada e o Governo.

Tolstoi é, pois, anarquista; mas como repudia a resistência ativa, seria capaz, para não violar um pretendido princípio moral, de deixar que os parafusos continuassem a esmagar-nos, embora pudesse quebrá-los com uma martelada. Nós não: podendo, aplicar-lhes-íamos tal pontapé que haveriam de voar três dias pelo espaço. Para isso nos preparamos a nós e ao maior número possível dos que estão entre as tábuas.

Desatarraxados ou quebrados os três parafusos (todos, pois se fica um, os outros seriam de novo atarraxados) ficaria a terra ao dispor de todos, e a vida social, não entregue ao Estado, ao Governo, mas à iniciativa individual e à livre cooperação.


Inclusão: 24/06/2021