Literatos, literatices…

Neno Vasco

Agosto de 1912


Primeira Edição: A Sementeira, Nº 46 da 1ª série, agosto de 1912.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/literatos-literatices/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Não há como os literatos para ignorar a questão social!

Como literato, por exemplo, é tido um sr. Carlos Malheiro Dias, que para um jornal de S. Paulo exporta sobre o anarquismo coisas extraordinariamente fantásticas e absolutamente imprevistas. Impassível e solene, o pobre homem dá do anarquismo e da anarquia definições abracadabrantes, origens jamais sonhadas. O trecho que dele ofereceu como amostra A Aurora, de 23 de junho, é uma obra-prima de ousada ignorância e desdenhosa inconsciência.

Temos agora outro. Digamos, porém, que como literato é bem superior ao primeiro e que, se não se mostra muito mais bem informado sobre a magna questão, revela mais viva intuição das coisas, uma inteligência mais clara do problema, menor dose de pretensão e de pedantismo. Trata-se do homónimo portuense do nosso camarada francês: do sr. João Grave. Do mesmo que, não há muito, escrevia algures que as ideias revolucionárias da Confederação Geral do Trabalho francesa tinham sido a esta comunicadas por Hervé!…

Numa «Crónica do Porto», publicada no Diário de Notícias de 21 de julho, o sr. João Grave traça-nos o retrato dum seu amigo, real ou imaginário, pessimista amargo, adversário da riqueza»,(1) que gasta o seu tempo a invetivar pelas esquinas, durante horas e horas, entre baforadas de cigarrilhas, os ricos e a riqueza, «promotores da desordem sociológica do nosso tempo», e a rugir contra as desigualdades e iniquidades da fortuna, que não, no seu dizer, «obscenidades do destino».

Tal como nos é descrito, este pessimista supersticioso é um vulgar descontente com as cruezas da «sorte», sem, sem critério renovador nem doutrina social alguma. Pois é nele que o escritor parece querer combater o socialismo!

Para isso, começa por aproximar os desabafos do infeliz da doutrina de renúncia do cristianismo primitivo. E ei-lo bravamente a desfazer nessa nefasta teoria de pobreza e humildade, de resignação e sofrimento, teoria de morte e de que o socialismo – seja qual for a sua modalidade económica, comunismo ou coletivismo, ou o seu método político, anarquismo ou democratismo – é a negação mais categórica e mais completa.

Os desabafos do pessimista e a renúncia cristâ, que o cronista julga formarem a essência das reivindicações modernas das «classes produtoras e exploradas», com que argumentos os critica ele? Com argumentos socialistas!… Caso alegre, não é verdade? Assim, escreve:

Porque a ventura do homem anda, desde as mais remotas idades, intimamente ligada à sua liberdade – mas, não a liberdade expressa nas legislações. Para ser feliz, o homem carece de ser libre de leis, de regimes, de admirações, de convencionalismos. Precisa, enfim, de ser independente, não se vendo obrigado a recorrer ao auxílio de ninguém – indivíduo ou corporação – para ganhar a sua subsistência, levantando a fronte com altivez, não se vergando a cultos de qualquer espécie, não adulando quem quer que seja, reagindo continuamente contra todas as dependências, não se submetendo a determinadas imposições, afirmando incessantemente o seu caráter, o seu modo de pensar, as suas ideias, sem procurar colori-las ou desfigurá-las no intuito de captar as simpatias dos dominadores. Ora, esta esplêndida independência só a riqueza lha dará. A infelicidade, o tumulto, a desordem atuais derivam, portanto, de um facto económico.

Não poderia esta passagem ser firmada por um socialista libertário?

Ah! sim, com efeito, o mal-estar e a desordem atuais derivam de um facto económico: da miséria. Não é porque há ricos e riquezas que se tem o espetáculo doloroso de tantos males remediáveis: é porque há pobres, e é porque há exploradores e explorados, parasitas e produtores.

É porque os ricos, detendo a terra e os instrumentos de trabalho, têm assim os meios de explorar e dominar, de escravizar a grande maioria; é porque os pobres, privados dos meios de produzir – não só dos que são obra da natureza, como o solo, mas também dos que são obra coletiva e indivisível das gerações, como as máquinas – estão por isso «dependentes» da minoria de monopolizadores da vasta riqueza social.

É ainda porque essa riqueza social é restringida, diminuida, embaraçada pelo regime de produção capitalista – produção regulada por uma classe em seu proveito exclusivo, determinada, não pelas reais necessidades de todos, mas pelas limitadas possibilidades de compra do assalariado, dirigida no sentido, não de satisfazer os consumidores, mas de enriquecer os detentores, cujo interesse está precisamente na falta e na carestia, na rarefação e no açambarcamento, na abundância de braços desocupados e de estômagos famintos, de terrenos incultos e de máquinas inativas.

É em suma porque a atual organização da sociedade é absolutamente incapaz de fazer aproveitar a todos a riqueza que é obra de todos os vivos e a herança indestrinçável das gerações passadas, é impotente para desenvolver esse precioso património comum, proporcionando-o ao número e às necessidades das populações.

E é precisamente porque queremos a liberdade, não legal, mas expressa em possibilidades materiais; é porque queremos o homem independente de facto, sem necessidade de vender os braços a um patrão e de se sujeitar às leis duma minoria; é porque pretendemos que ninguém, pela coação direta da violência física ou pela pressão indireta da fome, tenha de se fazer escravo, e ninguém possa subtrair-se à obrigação natural do trabalho, é porque aspiramos a essa liberdade, a essa independência, a essa riqueza para todos, que nós queremos arrancar a uma classe o monstruoso e mortífero monopólio da força económica e da força política, socializando os bens, isto é, restituindo a cada um o direito de usar livremente dos meios de produção e deixando à consciência das inelutáveis necessidades naturais e ao livre acordo entre sócios iguais, entre os comproprietários de tudo, a organização da produção e de toda a vida social.

Naquela passagem estamos, pois, de acordo com o sr. João Grave, que logo em seguida escreve, porém:

O coletivismo que desapossar o homem de toda a propriedade para fazer brilhar na terra a luz da equidade sem névoas. Ilusão, que apenas levará para uma confusão e para um sobressalto social incomparavelmente maior do que o existente. A ânsia da fortuna ativa maravilhosamente o propresso da humanidade, estimula as inicialivas, cria os famosos arrojos. O que é indispensável para a concórdia humana descobrir a maneira de tornar toda a gente proprietária. A fórmula é esta: – Enriquecei e vivereis contentes e satisfeitos no El-Dorado de que falava o sarcástico Voltaire!

Não, não é o socialismo que pretende tirar ao homem a propriedade: é pelo contrário o individualismo burguês que dela priva de facto a enorme maioria dos seres humanos. O socialismo quer restituí-la a todos, para os tornar livres e independentes.

E onde está o estímulo para o trabalho nos ociosos que podem viver do suor alheio e nos desgraçados que moirejam de sol a sol, bestialmente, no inferno sem esperança do salariato? Quem pode enriquecer, salvo raríssimos trabalhadores, que conseguem evadir-se do salariato, fazendo-se a seu turno exploradores e parasitas?

É preciso «descobrir a maneira de tornar toda a gente proprietária»? Perfeitamente! É o nosso escopo! Mas como atingi-lo?

Dividindo a riqueza social em quinhões iguais?… Seria impossível a avaliação; e ainda quando possível fosse, em breve voltariam a desigualdade e a miséria. Mas admitamos por hipótese todos ricos desse modo. Não havendo assalariados nem pobres, todos teriam que trabalhar… Como? Como se organizaria a produção? Para não «recorer ao auxílio de ninguém, indivíduo ou corporação», trabalharia cada um para si, ou iria quando muito até às trocas individuais? Mas era então o regresso à indústria primitiva, tão escassa de produtos e tão pródiga de canseiras, era a pobreza, era a sujeição a um trabalho material exaustivo e absorvente, era a pior das dependências…

Não: a liberdade, a independência só existe na interdependência e na solidariedade entre iguais. Só existe na equivalência das funções igualmente necessárias à vida social. Só existe na propriedade comum e no trabalho associado. Só existe no socialismo – com a sua indispensável garantia de liberdade individual, que é para cada um o direito, em todos os casos, ao uso gratuito dos instrumentos de trabalho, a ter nos grupos produtores entrada e saída francas.

Façamos todos os homens donos de tudo. Organizemos a produção tendo em vista as necessidades reais de todos; produzamos não para a venda, mas para o consumo. Façamos as trocas sem sinal de câmbio, isto é, sem que o dinheiro venha a falsear, sem valores de fácil acumulação, meio de exploração, de parasitismo e de furto. Aproveitemos todas as forças produtivas hoje desdenhadas – braços desocupados ou mal ocupados, parasitas, improdutivas, terras incultas, máquinas inativas, matérias primas, materiais de construção, forças naturais inaplicadas, progressos da técnica, descobertas científicas – e promovemos a abundância para todos e para todos o trabalho breve e curto. Constituamos a sociedade pela forma mais livre e maleável, da unidade para a coletividade, sob o impulso das necessidades naturais e pelo jogo das afinidades, o indivíduo autónomo no grupo, o grupo na federação. Não teria assim o indivíduo a maior soma de independência?

A independência material aumenta com a solidariedade. Na sociedade atual, dividida em classes, há dependência e subordinação de escravos. Numa organização socialista livre, de propriedade comum e trabalho associado, teria um cada vez mais garantidas todas as vantagens da civilização. O próprio trabalho associado evoluiria no sentido da maior elasticidade, do menos número de vontades a congregar, da maior individualização – pela crescente abundância e generalização da força motriz e pelos progressos gerais da técnica.

Outra independência não há. Onde todos são interdependentes e solidários, ninguém depende de outrem. Onde a riqueza é de todos, ninguém é pobre e servo.


Notas de rodapé:

(1) A abertura das aspas é suprimida na revista por gralha. Impossível adivinhar onde as aspas começam. (Nota de Última Barricada) (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2021