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Primeira Edição: revista A Sementeira, Nº 33 da 1ª série, maio de 1911
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/o-movimento-anarquista-no-brasil-draft/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A propaganda anarquista que, conduzida duma maneira seguida e sistemática, não é muito antiga no Brasil, encontra ali naturalmente obstáculos mais numerosos do que nos países de população fixa, indústria desenvolvida, opinião pública formada e tradições revolucionárias.
A população brasileira tem ainda como predominantes os elementos incultos, proveniantes do trabalho agrícola, de caráter colonial, com ressaibos da escravatura recente; e a esses elementos juntam-se nos Estados de imigração – os do sul especialmente – camadas novas e móveis, das quais apenas uma parte se fixa, quase sempre sem se adaptar inteiramente.
Demais, estas camadas instáveis são em grande parte constituídas por trabalhadores rústicos, saídos de regiões atrasadas e miseráveis.
Os imigrantes têm, em geral, um escopo único: o amontoamento dum pecúlio para regressar à pátria. Pelo menos é esse muitas vezes o seu pensamento quase exclusivo. Tal estado de espírito, somado à estranheza do novo ambiente, à incerteza causada na vida pela instabilidade da situação económica e do lugar de residência, às diferenças de línguas e às influências do clima, não favorece naturalmente a propaganda e ação de qualquer doutrina social.
Não é raro até ouvir, da boca dos que na Europa foram propagandistas, como explicação da indiferença própria, que eles à América só foram para ganhar dinheiro – no próprio interesse aliás das ideias, a que dedicarão as suas melhores energias, quando voltarem ao seu meio natural…
Não há coesão, ligação, homogeneidade, mas desapego às questões sociais, desunião e rivalidades. A grande indústria, de recente formação e mal desenvolvida, não teve tempo nem vigor para fornecer a liga necessária.
Às causas hisóricas da falta duma opinião pública, forte e vibrátil, adicionam-se no campo económico e social, sob o ponto de vista proletário, as que estorvam a organização do operariado e a difusão das doutrinas socialistas.
Não enumerei entre as causas do vagaroso desenvolvimento das nossas ideias, a oposição, as medidas de repressão e prevenção postas em prática pelo governo, porque não lhes atribuo a eficácia e o valor que – naturalmente! – pelo governo lhes são supostos.
Os frequentes períodos de apatia e desorganização do operariado das cidades não se devem às arbitrariedades repressivas do governo. Tempo virá e talvez não tarde em que as violências governamentais não farão senão acentuar o movimento e acender os entusiasmos proletários.
Quanto à proibição de desembarque dos anarquistas – ou dos tidos como tais – expulsos da Argentina e precedidos nos portos do Brasil pelo aviso da polícia, tem uma diminuta importância. Os muitos que, ludibriando a vigilância e precauções policiais, conseguem desembarcar, perante a resistência do meio, que acham frio, e a diferença da língua, em breve sentem a nostalgia do foco ardente donde vieram e regressam quase todos…
Na sua quase totalidade, os militantes anarquistas do Brasil, ou são brasileiros natos, ou são estrangeiros ali residentes desde longa data e ali ganhos à nossa causa.
A propósito de proibição de desembarque, não será descabido citar, embora não seja nova nem anormal, a contraditória atitude da imprensa, dos políticos e dos escritores.
Os anarquistas expulsos da Argentina são-no manifestamente por «delito de ideias».
Se tivessem praticado algum ato de rebeldia, não os teria expulsado o governo argentino; antes todo se arrepelaria, se lhe tivessem fugido.
Pois os jornais brasileiros, mesmo os que de longe a longe nos dirigem boas palavras, noticiam com a maior indiferença ou com aplauso que a polícia obstou ao sembarque de tão «perigosos hóspedes»… Ninguém fala em arbitrariedade…
Expulsou, porém, a república portuguesa os frades e jesuítas e anunciou-se que muitos iriam acoitar-se no Brasil. Os anti-clericais agitam-se ruidosamente, há manifestações populares, e o governo de Nilo Peçanha resolve impedir a entrada de tais padres, «por não terem residência no Brasil e constituirem uma ameaça à ordem pública, como foi reconhecido pela nação irmã, expulsando-os do seu território».
Os motivos eram exatissimamente os mesmos que os invocados contra os nossos. A lei de expulsão estava bem aplicada…
Mas agora tratava-se do venerando Sacerdócio Católico, como dizem os religiosos «positivistas». Intervieram altas personalidades, entre elas o presidente dum Estado, políticos, jornalistas, escritores, magistrados, damas, a Igreja Positivista, e tudo quanto ama pomposamente a liberdade. Invocaram-se muitos e bons argumentos – alguns dos quais já antes usados por nós. Os padres eram perseguidos políticos; nada provava que tivessem realmente perturbado a ordem; o Brasil subordinava-se a uma política estrangeira, etc. Violava-se flagrantemente, odiosamente, a Constituição. E o Supremo Tribunal rasgou a decisão presidencial e deu aos padres entrada franca…
Compreensível a diferença, não é verdade?
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É em língua italiana que, se não estou em erro, se faz há mais tempo propaganda anarquista no Brasil, sobretudo duma maneira sistemática e seguida. E data da fundação de La Battagliapelo camarada Orestes Ristori, auxiliado por bons elementos que o têm fielmente acompanhado, o período de maior atividade, continuidade, união e influência.
Não quero aqui falar dos indivíduos, nem tive em vista, ao começar estas linhas para A Sementeira, traçar no reduzido âmbito dum artigo uma história completa do anarquismo no Brasil. Mas é justo que de passagem diga, como julgador objetivo e imparcial, que à enorme, à invulgar atividade de Ristori, jornalista e orador sempre ambulante, bem como à energia, coragem e inteligência dele e dos seus colaboradores, deve muito a nossa propaganda entre a considerável população italiana dos Estados de S. Paulo, Rio, Minas e dos três mais meridionais.
Mais irregular e vagarosa é a propaganda feita em português, a que mais diretamente deve afrontar os inúmeros obstáculos atrás aludidos ou indicados.
Começada e mantida por alguns militantes brasileiros e portugueses, com o auxílio de espanhóis e italianos, teve não há muito um período de vigoroso impulso, tendo jornais no Rio, em S. Paulo e em Porto Alegre. Hoje subsistem apenas, aparecendo porém irregularmente e a longos intervalos, a Terra livre em S. Paulo e a Luta em Porto Alegre (Rio Grande do Sul).
Mais do que recursos pecuniários e cooperadores, escasseiam propagandistas, pela palavra oral e escrita. Tomados uns pelo ganha-pão extenuante e absorvente; fatigados outros pelos excesso de labor de propaganda a pesar sobre os ombros de poucos e pelos obstáculos encontrados, flutuantes outros outros, os militantes anarquistas não podem fazer face às eventualidades e necessidades do movimento; as suas manifestações são esporádicas, incertas e tardias; os efeitos perdem-se; a ação sobre a massa é débil; e daí o desânimo de tantos convencidos e simpatizantes, que se desinteressam.
Um ou outro grupo mantem heroicamente a continuidade da ação, lança de vez em quando um manifesto, espalha de longe a longe um boletim, publica um ou outro número de jornal, edita algum folheto. Mas os seus esforços, desamparados, não vibram com a intensidade necessária.
E no entanto não faltam lá anarquistas brasileiros e portugueses, inteligentes, dedicados e sinceros. Não são tampouco desunidos. Em S. Paulo, por exemplo, deixei com profundíssima saudade um ambiente cordial e amável, e se não isento de pequenas questões sem alcance – o que seria sobre-humano – ao menos desembaraçado de baixas intrigas, franco e acolhedor. Não conheço camarada que o tenha abandonado sem verdadeiro pesar. E são eles certamente, os nossos amigos do Brasil, os que mais se desesperam com a impotência a que se vêem tantas vezes reduzidos.
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Todas estas condições e circunstâncias são suscetíveis de rápida transformação. O Brasil evolui com volocidade. As cidades aumentam e prosperam a à vista de olhos, a indústria fabril toma um incremento visível, os caminhos de ferro rasgam o sertão…
Já não falo da grande e sorridente esperança, da promessa de fartura que o vasto e ubérrimo solo brasileiro, sulcado de largas artérias fluviais, coberto de espessas matas, oferece a uma imensa população de homens livres. à humanidade futura, senhora da terra e de todos os meios de produção, livre de parasitas e governantes.
Refiro-me somente à evolução do regime capitalista naquele país.
Principia ali a construir-se um proletariado industrial, mais estável e aglutinado, e a formar-se uma vida pública.
Eis que o terreno se vai tornar favorável para a sementeira e se aproxima um momento que todas as ideias devem aproveitar o melhor possível, para se radicarem e frutificarem no futuro.
E a propaganda naquele vasto pedaço do globo não é uma questão nacional, particular, mas geral. Toda a nossa obra é forçosamente solidária, como afinal toda a humanidade. Bastaria pensar que o Brasil poderia ser o refúgio da reação capitalista, como já o está sendo da reação clerical.
Ora os anarquistas portugueses são dos que mais interesses e responsabilidades têm nesta questão. Assim como se fala de aproximações comerciais e políticas, de missões diplomáticas e intelectuais, assim nós devemos encarar e realizar uma união – não na forma, muitas vezes vazia, mas no que consitui a essência, a carne, o sangue dessa aliança – a incessante troca de recursos de toda a espécie.
Nessa permuta de ideias, de correspondências, de publicações, de contribuições pecuniárias – e sobretudo de homens, para o conhecimento direto e pessoal dos ambientes e das pessoas – muito terão a ganhar o movimento anarquista de Portugal e do Brasil, pois há falhas recíprocas que os dois, melhor ou pior, poderão suprir, amparando-se.
Não será certamente o Portugal anarquista – digamos assim! – o que menos lucrará, pois que, por exemplo o Brasil nos proporciona ambientes cosmopolitas, cujo conhecimento pessoal nos alargaria os horizontes intelectuais, pondo-nos em contacto mais direto com os diversos meios libertarios e socialistas do mundo inteiro.
Aos anarquistas portugueses – para refletirem.