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Primeira Edição: jornal O Amigo do Povo, Nº10 – São Paulo, 16 Agosto de 1902
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/apontamentos-cartas-dum-pai-como-eles-se-fazem-homens/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
«José:
«Muito estimo que ao receber esta gozes perfeita saúde, em companhia dos teus bons patrões. A minha, graças a Deus, é boa; só tua mãe é que tem andado adoentada e tua irmã Maria também não anda lá muito boa; já gastámos um bom dinheirinho na botica, e se isto assim vai, não sei o que ha-cle ser de nós.
«Por isso ó que tu deves fazer por ser homem para um dia ajudares teus pais. O teu bom patrão queixa-se de que estás um pouco preguiçoso agora, de que te demoras muito nos recados e já «ma vez lhe respondeste mal. Olha lá o que fazes; olha se não segues os conselhos que nós te demos em casa. Deves respeitar muito os patrões, fazer-lhes todas as vontadinhas e nunca responder mal. Olha que eles são mais do que tu e se não és humilde, nunca chegas a ser homem, nem eles te estimam, nem tu podes ajudar os teus pais quando forem velhos. Os teus patrões são teus amigos porque até já te deram umas calças quase novas, como mandaste dizer e ainda te podem dar mais até aumentar o ordenado, se fores obediente, e andares ao seu mando, sem resmungar.
«Nem eu nem a tua mãe acreditamos nas queixas que mandas na tua carta. Que tem lá que te levantes às 5 e te deites depois das 10? Tens muito tempo para dormir. Se trabalhas todo o dia, melhor; assim é preciso para seres homem. Ou tu tens alguns rendimentos? Eu, quando tinha 11 anos como tu, já andava a ganhar a minha vida e aprendi à minha custa. Se o teu patrão te bate, é para teu bem; olha que eu também levei muitas pancadas e abençoadas sejam as mãos que mas deram, que agora é que eu vejo o bem que me fizeram. Isso das negras no braço não há-de ser nada, isso passa; tua mãe é que tem a culpa de seres ainda muito mimalho. Se o teu patrão te bateu não foi só por lhe dizeres que não podias mais de cansado. Mais alguma fizeste, respondeste por aí com maus modos.
«Pois olha que não é pela educação que te demos, que nós bem te ensinamos a seres bem criado e humilde com os que são mais do que tu. Já tens idade para ter juízo; faz a vontade aos patrões, para eles te darem mais prendas. Olha se arranjas a pedir toda a roupa velha que eles não queiram; e se tiveres mais do que a precisa, manda para os teus irmãos pelo primeiro portador. Não dês desgostos a teus pais; olha que somos muito pobres e que, se voltas para casa, aqui a vida ainda te sairá pior. E se os patrões te baterem e te vens cá queixar, ainda por cima apanhas outras.
«Aceita visitas de tua mãe e dos teus irmãos e a bênção de teu pai muito amigo,
Joaquim.»
«Senhor doutor:
«O que eu estimo é que estas duas mal traçadas linhas o vão encontrar de perfeita saúde em companhia de sua senhora e dos meninos e de quem mais deseja.
«Já escrevi a meu filho recomendando-lhe que tivesse juízo e que fosse muito obediente ao sr. doutor e a todos os seus bons patrões e pedia ao sr. doutor que por esta vez lhe perdoasse, porque somos muito pobres e não podemos estar a mantê-lo em casa. Se ele fizer alguma coisa que não agrade a V. Ex.ª, faça-nos o favor de lhe bater, para que ele aprenda. Quem dá o pão, dá a educação, e eu também assim fui ensinado, e olha o sr. doutor que ele não se atreve a vir cá com choradeiras, porque ainda apanha mais. Estamos-lhe muito agradecidos, sr.doutor, por tudo o que V. Ex.ª tem feito por nós e Deus lho pagará no céu.
«Muitas visitas de minha mulher para a boa sr.ª D Luíza, mais para os meninos e as mesmas deste seu criado muito agradecido,
Joaquim.»
Substância do ensino: resignação, obediência, mendicidade, hipocrisia…
Do natural.