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Primeira Edição: diário O Mundo (Lisboa), Ano I, N.º 340, 24/08/1901.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/os-filhos-de-joaquina-rosa/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
E então, resolve matá-los também, na certeza de que para nada servem, assim andrajosos, esfomeados, sem educação, sem trabalho, sem nada. Porque a mulherzinha, ignorante, não conhece a única utilidade, talvez, desses bandos de miseráveis, e que é aumentarem extraordinariamente a onda dos revoltados de amanhã.
Maximo Brou.
Este comentário ao caso de Joaquina Rosa obriga-me a trazer para a questão um novo aspeto, a considerá-la sob um ponto de vista até aqui desprezado, e que, no entanto, é aquele que primeiro deveria surgir a propósito do drama. O caso é bem conhecido. Há uma pobre mãe que tem muitos filhos — «andrajosos, esfomeados, sem educação, sem trabalho, sem nada». Esses filhos têm fome e a mãe, que não tem pão, recorre a um meio extremo, ao último refúgio, isto é, resolve matar-se e matar os filhos, para não ficarem por aí ao abandono… Ela lá tinha as suas razões para desconfiar do carinho e da proteção da Sociedade — a terrível madrasta a quem deixaria as crianças, se a morte as não libertasse…
Mas se ela os abandonasse, os pequenitos? Iriam eles engrossar, assim rotos, esfomeados, sem educação, a heróica legião dos revoltados?
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Máximo Brou contradiz-se.
Esses bandos de miseráveis, famintos, ignorantes… para nada servem — é verdade: nem mesmo para a revolta! Para nada! Para nada de bom como a revolta, para nada de consciente como a revolta.
Esta luta que nós travamos, em que gastamos a nossa inteligência e consumimos os nossos esforços, essa luta que é a revolta, bem distinta da simples violência, não a compreenderão eles, os desgraçados, muitas vezes inimigos dos seus próprios defensores; não a combaterão eles, os últimos miseráveis, os rotos, sem pão para a boca e sem luz para o cérebro…
Revoltados, eles?! Só se a revolta for essa forma inconsciente de protesto, que nos códigos se chama crime, se chama roubo, se chama assassinato…
Revoltados, os filhos de Joaquina Rosa? Eles, que tinham fome, porque a mãe não tinha pão! Eles, sem educação, porque a mãe, em vez de os mandar à escola, só podia metê-los na fábrica, se na fábrica, apesar de gulosa de crianças, ainda houvesse lugar!…
Revoltados, não. Seriam vadios… Grilhetas da oficina, iriam, quando muito, às festas dar vivas estúpidos ou acompanhar cortejos com licença dos patrões… Dariam talvez tuberculosos, talvez suicidas como a mãe, talvez mendigos em ocasiões de greve…
Ah! não são os embrutecidos pela miséria — miséria em toda a extensão da palavra —, os extenuados quem faz as revoluções! Não são eles os revoltados! Através dos séculos, uma imensa maioria de oprimidos, de aviltados, tem sido escravisada, explorada, vilipendiada, dominada por uma minoria de felizes! E ao cabo de muito sofrimento, de muita dor, de muita humilhação, quando enfim incendeia o mundo um clarão de revolta, quem o provoca? quem o alimenta? quem o torna triunfante? Sempre uma minoria consciente!
O explorado — ckair a canon, besta de carga, irmão inimigo do seu próprio irmão, máquina barata que o burguês explora, joguete que o político maneja — o que faz é dobrar a espinha às vergastadas do chicote, beijar o pé que o escoucinha, curvar-se sobre o arado, extenuar-se na fábrica, pedir uma esmola…
Revoltar-se? Ah! não! Ele não se revolta… Quando muito, irá atrás de um charlatão…
Nem tem cérebro para pensar; às vezes nem pulmões para gritar, nem um braço forte para erguer uma espingarda… Costumou-se a obedecer, o que lhe concedem a custo é um favor, que se agradece de chapéu na mão… Quando lhe cospem, alegra-se porque lhe não bateram; quando lhe batem, alegra-se porque o não mataram… A lei, o juiz, o sabre… metem-lhe medo…
Revoltado? Revoltado é Kropotkin, é Tolstoi, foi Bakunin…
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Vá! Deixemos esse erro fatal, que é o erro da tese falsa e anti-revolucionária da «Fecundidade», de Zola!
Filhos! muitos filhos! sempre filhos! pode ser o conselho gritado ao escravo pelo senhor (neo-malthusiano em seu proveito exclusivo), porque esse tem interesse nessa superprodução: agora é a abundância do género no mercado, é a concorrência até entre pais e filhos, entre irmãos…
Mas, nós, ensinemos aos proletários que, se é um crime matar os filhos, evitá-los é indispensável e é justo; que a procriação deve ser fiscalizada pela vontade, orientada pela ciência, regulada pela intervenção consciente do homem.
A burguesia clamará que é um crime — oh! um horroroso crime! Pouco importa! Bem sabemos a norma pela qual ela avalia os crimes, conhecemos bem a sua moral…
Ninhadas de filhos, mal alimentados, mal preparados, não irão senão perpetuar o domínio dos opressores, alistando-se violentamente nas suas fileiras, ou tornando-se, pela sua fraqueza, incapazes de resistência e de luta. A Sociedade toma conta deles — para os transformar em vadios ou para os explorar, para os mandar para a caserna, para o asilo ou para os empurrar para o fundo húmido e doentio de uma prisão… Triste imprevidência essa e tristes crianças essas que um dia hão de ser — revoltados? não! — escravos, criminosos ou mendigos…
Limite à procriação! O filho é, decerto, a mais pura alegria do Amor! Nem nós devemos desprezar os legítimos e necessários gosos do Amor! Os miseráveis muitas vezes não têm outros. Mas para que arremessar a este mundo seres e seres desgraçados, sofredores, degenerados, sem vontade, incapazes de um geste altivo de revolta?
Filhos, sim! Mas que venham quando o decidirmos refletidamente, quando sentirmos que deles poderemos fazer homens — homens verdadeiros — que sirvam para tudo!
O erro inicial de Joaquina Rosa, a causa da tragédia toda, foi a sua imprevidência… Por ignorância, coitada! Consumado o erro — todos aqueles canários cheios de fome, esfarrapados, futuro pasto da miséria, da ignomínia, da lama — a pobre mulher só via um caminho a seguir: matá-los!
Porto, 20-8-901.