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Primeira Edição: Leon Trotsky, In Defense of Marxism, New York 1942.
Fonte: "Em Defesa do Marxismo", publicação da Editora "Proposta Editorial"
Direitos de Reprodução: © Editora Proposta Editorial. Agradeçemos a Valfrido Lima pela autorização concedida.
O camarada Craipeau quer nos convencer, uma vez mais, de que a burocracia soviética, como tal, é uma classe. No entanto, para ele, o problema não é de ordem puramente "sociológica". Não. Tudo o que quer, como veremos, é traçar, de uma vez por todas, uma via livre e direta para o tipo de internacionalismo que lhe é próprio, um internacionalismo que, infelizmente, não está seguro de si mesmo. Se a burocracia não é uma classe, se ainda podemos caracterizar a União Soviética como um Estado operário, será necessário apoiá-la em caso de guerra. Como se manter, então, irreconciliavelmente em oposição ao próprio governo se este é aliado dos soviets? A tentação de cair no social-patriotismo é terrível. Não, é infinitamente melhor varrer radicalmente o terreno: a burocracia stalinista é uma classe exploradora e, em caso de guerra, é desnecessário fazer uma distinção entre os soviéticos e o Japão.
Infelizmente, este radicalismo terminológico não nos leva muito longe. Admitamos por um momento que a burocracia seja uma classe no sentido que este termo tem na sociologia marxista. Neste caso, encontramo-nos perante uma nova forma de sociedade de classe, que não é idêntica nem à sociedade feudal, nem à sociedade capitalista, e que jamais tinha sido prevista pelos teóricos marxistas. Uma tal descoberta é digna de uma análise mais atenta.
Por que é que a sociedade capitalista se meteu, por si só, em um beco sem saída? Porque já não é capaz de desenvolver as forças produtivas, quer nos países avançados, quer nos atrasados. A cadeia do mundo imperialista foi rompida no seu elo mais frágil, a Rússia. E eis que nos damos conta de que, no lugar da sociedade burguesa foi estabelecida uma nova sociedade de classe. Craipeau ainda não lhe deu um nome, nem analisou suas leis internas. Mas isto não nos impede de constatar que esta nova sociedade é progressiva em relação ao capitalismo, Pois, sobre a base da propriedade nacionalizada, a nova "classe" possuidora assegurou um desenvolvimento das forças produtivas, sem igual na história do mundo. O marxismo nos ensina, (não é verdade?), que as forças produtivas são o fator fundamental do progresso histórico. Uma sociedade que não é capaz de assegurar o crescimento do potencial econômico, é ainda menos capaz de assegurar o bem-estar das massas trabalhadoras, seja qual for o modo de distribuição. O antagonismo entre feudalismo e capitalismo e o declinar do primeiro foram determinados pelo fato de que o último abria perspectivas novas e grandiosas para as forças produtivas estancadas. A mesma observação é aplicável à URSS. Seja qual for o modo de exploração que a caracterize, esta nova sociedade é, pelas suas próprias características, superior à sociedade capitalista. E nisto que reside o verdadeiro ponto de partida de uma análise marxista.
Este fator fundamental, que são as forças produtivas, reflete-se também no domínio ideológico. Enquanto que a vida econômica dos paises capitalistas não nos mostra senão as mais variadas formas de estancamento e de declínio, a economia nacionalizada e planificada da URSS é a maior escola para a humanidade que aspira um futuro melhor. E preciso ser cego para não ver a diferença.
Em caso de guerra entre o Japão e a Alemanha de um lado, e a URSS do outro, o que estaria colocado em questão não seriam os problemas de igualdade de distribuição, da democracia proletária ou da justiça de Vychinski, mas sim o destino da propriedade nacionalizada e da economia planifica. A vitória dos Estados imperialistas não significaria somente a destruição da nova "classe" exploradora soviética, como também o das novas formas de produção, e, portanto a queda de toda a economia soviética ao nível de um capitalismo atrasado e semi-colonial. Pergunto, pois a Craipeau: Quando estamos perante a luta de dois Estados que são os dois — admitamo-lo — Estados de classe, mas dos quais um representa o estancamento imperialista e o outro o formidável progresso econômico, não devemos defender o Estado progressivo contra o Estado reacionário? Sim ou não?
Em toda sua tese, Craipeau fala das coisas mais diversas, e inclusive das coisas mais afastadas do tema, mas não menciona nem uma só vez o fator que a sociologia marxista considera decisivo: o desenvolvimento das forças produtivas. É por esta razão que todo o seu edifício está. suspenso no ar. Faz malabarismos com as sombras terminológicas ("classe", "não-classe") ao invés de tentar apreender a realidade. Pensa que é suficiente atribuir o qualificativo de classe à burocracia para evitar ter que analisar o lugar que ocupa a nova sociedade no ascenso histórico da humanidade. Desejoso de obrigar-nos a não fazer nenhuma distinção entre uma sociedade que é absolutamente reacionária, pois freia e inclusive destrói as forças produtivas e uma sociedade que é relativamente progressiva, porque permitiu um grande salto adiante da economia, Craipeau quer nos impor a política de "neutralidade" reacionária. Sim, camarada Craipeau, reacionária!
Pelo que precede, pode-se ver que poderíamos muito bem não analisar este problema teórico, ou, dito de outro modo, o problema que preocupa Craipeau e que, em si mesmo, está longe de ser decisivo para nossa política em caso de guerra. Mas o problema da natureza social da burocracia é, apesar de tudo, muito importante do ponto de vista mais geral e não vemos nenhuma razão para fazer, neste terreno, a menor concessão a Craipeau. O nosso critico muda de argumentos sem o menor inconveniente. Neste caso consegue seu golpe de efeito com uma citação da Revolução Traída, segundo a qual "todos os meios de produção pertencem ao Estado e o Estado, em certa medida, à burocracia" (sublinhado por mim). Craipeau pula de alegria. Se os meios de produção pertencem ao Estado e o Estado à burocracia, esta converte-se no proprietário dos meios de produção e, só por este fato, em uma classe proprietária exploradora. O resto da argumentação de Craipeau tem um caráter puramente literário.
Outra vez nos diz, dando-se ares de polemizar comigo, que a burocracia termidoriana é malvada, rapina, reacionária, sanguinária etc. Que revelação! Mas nós não dissemos nunca que a burocracia stalinista seja a encarnação da virtude. Somente lhe negamos o caráter de classe no sentido que o marxismo dá a esse termo, quer dizer, em relação à propriedade dos meios de produção. Mas eis que Craipeau me obriga a desautorizar a mim mesmo, já que reconheci que a burocracia trata o Estado como propriedade pessoal sua. "Aqui está a chave do enigma." Com esta argumentação hiper-simplista, Craipeau dá mostra de uma deplorável ausência de sentido dialético. Nunca afirmei que a burocracia soviética equivalesse à burocracia da monarquia absoluta ou à do capitalismo liberal. A nacionalização da economia cria uma situação totalmente nova para a burocracia, com novas possibilidades de progressão ou de degeneração. Sabíamos disso, mais ou menos antes da revolução. A analogia entre a burocracia soviética e a burocracia do Estado fascista é mais pertinente, sobretudo do ponto de vista que nos interessa. Também a burocracia fascista trata o Estado como propriedade sua. Impõe sérias restrições ao capital privado, em cujo seio provoca, freqüentemente, convulsões. Podemos dizer, pela via da argumentação lógica: se a burocracia fascista conseguisse impor, cada vez mais ao capitalismo, sua disciplina e as restrições que dela se desprendem, sem encontrar resistência real, transformar-se-ia gradualmente em uma nova classe dominante, absolutamente análoga à burocracia soviética. Mas o Estado fascista não pertence à burocracia senão "em certa medida" (ver citação mais acima). Isto' são miudezas que Craipeau ignora deliberadamente. Têm, no entanto, sua importância. São inclusive decisivas. São parte integrante da lei dialética da transformação da quantidade em qualidade. Se Hitler tentar converter-se em proprietário do Estado e, com isso, converter-se em proprietário da propriedade privada, completamente e já não só "em certa medida", encontrará a oposição violenta dos capitalistas; grandes possibilidades revolucionárias se abririam para os trabalhadores. Encontram-se, no entanto, ultra-esquerdistas, que aplicam à burocracia fascista o raciocínio de Craipeau sobre a burocracia soviética e que põem um sinal de igual entre os regimes fascistas e stalinistas (certos spartakistas alemães, Hugo Urbahns, certos anarquistas etc.). Dissemos deles o que dizemos de Craipeau: seu erro está em acreditar que os fundamentos da sociedade podem ser modificados sem revolução ou contra-revolução; desenvolvem o filme do reformismo ao contrário.
É neste momento que Craipeau, mais contente que nunca, cita outra afirmação da Revolução Traída a propósito da burocracia soviética: "se estas relações chegarem a ser estabelecidas, legalizadas, elevadas ao nível de normas, sem nenhuma resistência ou apesar da resistência dos trabalhadores, levarão à liquidação completa das conquistas da revolução proletária". E Craipeau conclui: “Assim, o camarada Trotsky vislumbra (para o futuro) a possibilidade de transição do Estado operário para o Estado capitalista sem intervenção militar" (?). Em 1933 podíamos chamar isto de "passar o filme reformista ao contrário". Em 1937, o chamamos da mesma forma. O que a meus olhos não era senão um argumento lógico, converte-se para Craipeau em um prognóstico histórico. Sem guerra civil vitoriosa, a burocracia não pode dar origem a uma nova classe dominante. Esta sempre foi e continua sendo a minha convicção. Pelo contrário, o que se produz neste momento na URSS não é senão uma guerra civil preventiva, desencadeada pela burocracia. E apesar de tudo não tocou ainda nas bases econômicas do Estado criado pela revolução; o qual, apesar de todas as deformações, assegura o desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas.
Ninguém negou nunca a possibilidade particularmente no caso de uma decadência mundial prolongada - da restauração de uma nova classe proprietária originária da burocracia. A atual posição da burocracia, de que por meio do Estado, tem "em certa medida" as forças produtivas nas suas mãos, constitui um ponto de partida de extrema importância para um processo de transformação. Trata-se, no entanto, de uma possibilidade histórica e não de algo já realizado.
Em a Revolução Traída tentei dar uma definição do atual regime soviético. Esta definição compreende nove parágrafos. Estou de acordo que esta série de fórmulas descritas e prudentes não é muito elegante. Mas trata-se de uma tentativa de ser honesto em relação à realidade. O que é sempre uma vantagem. Craipeau nem menciona esta definição. Não lhe opõe nenhuma outra. Não diz se a nova sociedade de exploração ê superior ou inferior à antiga e não se pergunta se esta nova sociedade representa uma etapa inevitável entre o capitalismo e o socialismo ou se se trata simplesmente de um "acidente" histórico. No entanto, do ponto de vista das nossas perspectivas históricas gerais, tal como estão formuladas no Manifesto Comunista de Marx e Engels, a definição sociológica de burocracia reveste-se de uma importância capital.
A burguesia veio ao mundo como elemento saldo das novas formas de produção; continuou representando uma necessidade histórica enquanto as novas formas de produção não esgotaram as suas possibilidades. Pode-se afirmar o mesmo de todas as classes sociais anteriores: proprietários de escravos, senhores feudais, mestres-artesãos medievais. No seu tempo, foram os representantes e dirigentes de sistemas de produção que representaram momentos do progresso da humanidade. Mas, como Craipeau situa o lugar histórico da "classe burocrática"? Não diz nada desta questão decisiva. No entanto, repetimos muitas vezes, com a ajuda do próprio Craipeau, que a degeneração do Estado soviético é produto do atraso da revolução mundial, quer dizer, conseqüência de causas políticas e "conjunturais", por assim dizer. Pode-se falar de uma nova classe... "conjuntural"? Na verdade, duvido muito. Se Craipeau permite que se verifique a sua muito apressada concepção, levando em consideração a sucessão histórica dos regimes sociais, ele mesmo reconhecerá, certamente, que dar à burocracia o nome de classe dominante não ê só um abuso terminológico, como sobretudo um grande perigo político, que corre o risco de fazer-nos descarrilar completamente das nossas perspectivas históricas. Craipeau tem razões suficientes para rever a concepção marxista neste ponto capital? De minha parte, não vejo nenhuma. É por isso que me recuso a seguir Craipeau.
No entanto, podemos e devemos dizer que a burocracia soviética tem todos os vícios de uma classe possuidora, sem ter nenhuma das suas "virtudes" (estabilidade orgânica, diversas normas morais etc.). A experiência ensinou-nos que o Estado operário é ainda um Estado ou, dito de outra forma, um produto do bárbaro passado; que é duplamente bárbaro em um país atrasado e isolado; que, em condições desfavoráveis, pode degenerar até chegar a ser irreconhecível; que uma revolução suplementar pode ser necessária para sua regeneração. Mas o Estado operário não deixa por isso, de ser uma etapa que é preciso franquear obrigatoriamente. Não se pode ultrapassar esta etapa a não ser pela revolução permanente do proletariado internacional.
Não posso seguir, ponto por ponto, o conjunto da argumentação de Craipeau; para fazê-lo seria preciso recapitular o conjunto da concepção marxista. O problema é que Craipeau não analisa os fatos tais como são, juntando antes argumentos lógicos a favor de uma tese pré-concebida. Na sua essência, este método é anti-dialético e portanto anti-marxista. Vou dar alguns exemplos:
a) "Há muitos anos que o proletariado russo já perdeu toda a esperança de poder político..." Craipeau tem muito cuidado em não dizer precisamente desde quando. Quer simplesmente dar a impressão de que nossa tendência manteve ilusões desde há "muitos anos". Esquece-se de dizer que em 1923 a burocracia se encontrava sacudida até os seus fundamentos e que só a derrota alemã e a desmoralização que fez nascer no proletariado russo deram uma nova estabilidade à sua posição. No curso da revolução chinesa (1925-1927), a crise repetiu-se com as mesmas fases. O primeiro Plano Qüinqüenal e a grande agitação que precedeu a ascensão de Hitler na Alemanha ameaçaram, por sua vez, a ascensão burocrática. Finalmente, podemos duvidar por um instante que o proletariado russo não teria podido, se a revolução espanhola tivesse sido vitoriosa e se os trabalhadores franceses tivessem sido capazes de levar até ao final a sua ofensiva em maio-junho de 1936, recobrar o seu valor e a sua combatividade e derrubar a burocracia termidoriana com um mínimo de esforços? Foi somente a sucessão das mais terríveis e desmoralizantes derrotas que estabilizou o regime de Stalin. Craipeau opõe o resultado, que, na verdade, é perfeitamente contraditório, ao processo que o engendrou e à nossa política, que foi o reflexo deste processo.
b) A fim de refutar o argumento segundo o qual a burocracia não manipula os recursos nacionais mais do que faria uma guilda corporativa - e uma guilda particularmente vacilante — e os burocratas não têm o direito de dispor da propriedade do Estado a titulo individual, Craipeau replica: "Os próprios burgueses (?) tiveram que esperar muito tempo antes de poder transmitir aos seus descendentes o direito de propriedade sobre os meios de produção. Nos começos das guildas o patrão era eleito pelos seus iguais..." Mas Craipeau omite uma bagatela: nos "começos das guildas", estas não estavam divididas em classes e o patrão não era um "burguês", no sentido moderno do termo. A transformação da quantidade em qualidade não existe para Craipeau.
c) "A propriedade privada está em vias de restauração, a herança a caminho de restabelecer-se!". Mas Craipeau abstêm-se de dizer que se trata da propriedade dos objetos de utilidade pessoal e não dos meios de produção. Esquece-se igualmente de mencionar o fato de que o que os burocratas, incluindo os da alta hierarquia, possuem a titulo privado, não é nada ao lado dos recursos materiais que lhes são proporcionados pelas suas funções; também esquece que a recente "purga" que, de um só golpe, reduziu milhares e milhares de famílias de burocratas à pobreza, mostra precisamente a extrema fragilidade dos laços que existem entre os próprios burocratas — e com mais razão a sua família — e a propriedade de Estado.
d) A guerra civil preventiva que na atualidade, é levada a cabo pela camarilha dirigente, demonstra novamente que esta última não poderá ser derrubada a não ser pela violência revolucionária. Mas já que esta nova revolução deve surgir sobre as bases da propriedades do Estado e da economia planificada, caracterizamos a derrubada da burocracia como revolução política, em oposição à revolução social de 1917. Craipeau acha que esta distinção "compete ao domínio da casuística". E por que tal severidade? Porque, vejam bem, a reconquista do poder pelo proletariado terá conseqüências sociais. Mas as revoluções políticas burguesas de 1830, 1848 e setembro de 1870 também tiveram conseqüências sociais, na medida em que modificaram seriamente a repartição do rendimento nacional. Mas, meu querido Craipeau, tudo é relativo neste mundo que não é uma criação de formalistas ultra-esquerdistas. As mudanças sociais produzidas por ditas revoluções políticas, por mais sérias que tenham sido, aparecem como totalmente secundárias quando comparadas com a grande Revolução Francesa que foi a revolução social por excelência. O que falta ao camarada Craipeau é o sentido das proporções e o conceito de relatividade. O nosso jovem amigo não sente nenhum interesse pela lei da transformação da quantidade em qualidade. No entanto, esta é a mais importante das leis da dialética, Claro que as autoridades do mundo acadêmico da burguesia pensam que a própria dialética "compete ao domínio da casuística".
e) Não é por acaso que Craipeau se inspira na sociologia de M. Yvon(1). As observações pessoais de Yvon são honestas e muito importantes. Mas não foi um acidente que o levou ao estreito cais de La Révolution Prolétarienne(2). Yvon interessa-se pela "economia" da "oficina", para empregar a terminologia de Proudhon — e não pela "política", quer dizer, pela economia generalizada. Pertence formalmente à escola proudhoniana, e precisamente isso permitiu-lhe manter-se neutro no curso da luta entre a oposição de esquerda e a burocracia; não tinha compreendido que dela dependia a sorte da "oficina". O que disse sobre a luta "pela herança de Lênin" sem distinguir entre as tendências sociais — ainda hoje, em 1937! — revela claramente a sua composição, ao mesmo tempo pequeno-burguesa, totalmente contemplativa, absolutamente não revolucionária. Para Yvon a noção de classe é uma abstração que ele coloca sobreposta à abstração da "oficina". É verdadeiramente triste que Craipeau não encontre outra fonte de inspiração teórica.
Todo este andaime sociológico, infelizmente muito frágil, não serve a Craipeau, como dissemos, senão para evadir-se da necessidade de fazer distinção no curso da guerra entre a URSS e os Estados imperialistas. Muito reveladores são os dois últimos parágrafos do seu tratado onde aborda o problema. Craipeau diz:
"Em nossos dias, toda a guerra européia ou mundial se transforma em conflito imperialista, e só os imbecis stalinistas e reformistas podem crer que, por exemplo, o que estará em jogo na guerra futura será o fascismo ou a democracia",
Atenção a esta tese magistral: ainda que um pouco simplificada, é exata, e portanto extraída desta vez sim, do arsenal do marxismo. Logo depois com o fim de caracterizar e fustigar a URSS como "campeão da guerra imperialista", Craipeau nos diz:
"No campo de Versalhes, a sua diplomacia (a da URSS) joga agora o mesmo papel de animador que a diplomacia Hitleriana joga no outro campo",
Admitamos isso. Mas, o caráter imperialista da guerra vem determinado pelo papel provocador com a diplomacia fascista? De modo algum. "Só os imbecis stalinistas podem acreditar nisso". E espero que, de nossa parte, não seja aplicado o mesmo critério ao Estado soviético. Nos países imperialistas pode-se ser derrotista — não é verdade? — porque se quer abater o regime da propriedade privada e não porque se queira castigar um "agressor" qualquer. Na guerra entre a Alemanha e a URSS, a questão será mudar as bases econômicas desta última, não castigar Stálin e Litvinov. E depois? Craipeau não expôs sua tese fundamental senão para tomar imediatamente um caminho oposto. O perigo, o verdadeiro perigo, segundo ele, é que os social-patriotas de toda a espécie tomarão a defesa da URSS como pretexto para novas traições. "Em tais condições, qualquer equívoco na nossa atividade se toma fatal". E conclui:
"Hoje é necessário escolher: ou a "defesa incondicional da URSS, quer dizer (!!!), a sabotagem da revolução no nosso país da mesma forma que na União Soviética, ou o derrotismo e a revolução."
É esta a questão. O problema não é de modo algum, o caráter social da URSS - e o que ele implica - já que, segundo Craipeau, a defesa de um Estado operário, mesmo que seja inclusive totalmente autêntico, implica em que o proletariado dos países imperialistas, aliados a esse Estado, realize a união sagrada com a sua própria burguesia. "Aqui está a chave do enigma", como dissemos. Craipeau acredita que em caso de guerra — com G maiúsculo — o proletariado não tem nenhum interesse em saber se se trata de uma guerra contra a Alemanha, a URSS ou Marrocos inssurreto, já que em todos os casos é indispensável proclamar "o derrotismo sem ambigüidades" como única possibilidade de escapar à influência do social-patriotismo. Novamente vemos — e com que clareza — que o ultra-esquerdismo é sempre um oportunismo que tem medo de si mesmo e pede, em conqüência, garantias absolutas — quer dizer, garantias inexistentes — de que permanecerá fiel à sua bandeira. Este tipo de intransigência recorda-nos os homens débeis e tímidos que, quando ficam furiosos, gritam para os seus amigos: "Agarrem-me ou eu faço uma desgraça". Dêem-me teses hermeticamente seladas, ponham-me uma venda totalmente fechada ou então... vou fazer alguma coisa terrível. Na verdade, encontramos a chave do enigma.
Mas depois de tudo, Craipeau duvida, por exemplo, do caráter proletário do Estado soviético entre 1918 e 1923 ou, pelo menos, para fazer uma concessão aos ultra-esquerdistas, entre 1918 e 1921? Durante este período o Estado soviético manobrava no terreno internacional e procurava aliados temporários. Mas foi precisamente neste período que o derrotismo foi erigido à categoria de dever para os operários de todos os paises imperialistas, fossem "inimigos" ou "aliados". O dever de defender a URSS nunca significou que o proletariado revolucionário devesse dar um voto de confiança à burguesia. A atitude do proletariado durante a guerra é o prolongamento de sua atitude em tempo de paz. O proletariado defende a URSS com a sua política revolucionária que não está subordinada à burguesia, mas sempre adaptada às condições concretas. Tal é o ensinamento dos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista. Craipeau quer que revisemos retrospectivamente este ensinamento?
Se Blum, em vez de proclamar a pérfida “não-intervenção” e sem deixar de obedecer às ordens do capital financeiro, tivesse apoiado Caballero, Negrín e sua democracia capitalista, renunciaria Craipeau à sua posição irredutível ao governo da “Frente Popular”? Teria deixado de cumprir o seu dever que é distinguir entre dois campos que lutam na Espanha e adaptar sua política e esta distinção?
A mesma constatação vale para o extremo Oriente. Se Chang, pisando nos calos da Inglaterra, declarasse guerra ao Japão, participaria Craipeau na União Sagrada para ajudar a China? Ou, ao contrário, proclamaria que não há nenhuma diferença entre a China e o Japão que possa influenciar a sua política? A alternativa de Craipeau: seja a defesa da URSS, da Etiópia ou da Espanha republicana, da China colonial por meio da União Sagrada, seja o derrotismo sistemático, hermeticamente selado e de amplitude cósmica - esta alternativa fundamentalmente errônea se desfará em pó na primeira prova dos fatos e abrirá amplamente a porta às mais grosseiras formas de social-patriotismo.
As nossas próprias teses sobre a guerra, pergunta Craipeau, estão isentas de equívocos sobre este problema? Infelizmente não. Analisando a necessidade do derrotismo, sublinham que "na natureza das ações práticas, podem ser provocadas consideráveis diferenças pela situação concreta no curso da guerra". Por exemplo, as teses indicam que no caso da guerra entre a URSS e o Japão "não devemos sabotar o envio de armas para a URSS" e em conseqüência evitar suscitar greves que sabotassem a fabricação de armas etc. Só se pode crer no que os olhos vêem. Os acontecimentos confirmaram nossa posição neste terreno com uma força notável e indiscutível, particularmente na França. Durante meses, as reuniões operárias tinham vibrado ao grito de "aviões para a Espanha". Imaginemos por um momento que Blum tivesse decidido mandar alguns. Imaginemos que nesse momento exato estivesse em curso uma greve de estivadores ou marinheiros. Que faria Craipeau? Ter-se-ia oposto ao grito de "aviões para Espanha"? Teria aconselhado os trabalhadores em greve a fazer uma exceção para carregar os aviões? Mas acontece que a URSS enviou efetivamente aviões (a um preço muito alto e a título de ajuda ao regime capitalista, sei disso perfeitamente). Deveriam os bolcheviques chamar os operários a sabotar estes envios? Sim ou não? Se, amanhã, os trabalhadores ficam sabendo que os carregamentos de munições estão sendo preparados para serem enviados, um para o Japão e o outro para a China, qual seria a atitude de Craipeau? Considero que é suficientemente revolucionário para chamar os trabalhadores a boicotar o barco destinado a Tóquio, e deixar ir aquele que se destina à China sem, por isso, mudar sua opinião sobre Chang-Kai-Chek, nem dar a menor confiança a Chautemps. E isto precisamente que preconizam as nossas teses: "na natureza das ações práticas, podem ser provocadas consideráveis diferenças pela situação concreta no curso da guerra". A propósito desta fórmula, poderiam-se despertar dúvidas na época em que foram publicadas em anteprojeto. Mas hoje, depois da experiência da Etiópia, da Espanha, da guerra sino-japonesa, falar de equivoco nas nossas teses me parece que revela a atitude de um Bourbon ultra-esquerdista que não quer nem aprender nem esquecer nada(3).
Camarada Craipeau, o equivoco está totalmente do seu lado. Seu artigo está cheio desses equívocos. Chegou a hora de se desfazer deles. Sei muito bem que, até nos seus erros, você é guiado pelo ódio à opressão que a burocracia termidoriana encarna. Mas, por si só, o sentimento, por legitimo que seja, não pode substituir uma política correta, baseada nos fatos objetivos. O proletariado tem razões suficientes para derrubar e destruir a burocracia stalinista, corrompida até a medula. Mas, por esta mesma razão, não pode, nem direta nem indiretamente, deixar esta tarefa a Hitler ou ao Mikado. Stalin derrubado pelos trabalhadores: é um grande passo para o socialismo. Stalin eliminado pelos imperialistas: é a contra-revolução que triunfa. Tal é o sentido preciso de nossa defesa da URSS em escala mundial, trata-se de uma orientação análoga li nossa defesa da democracia em escala nacional.
Notas:
(1) Recordamos que o livro de Yvon foi publicado no mesmo ano de 1937 em que Craipeau fala da burocracia como “classe”. (retornar ao texto)
(2) “A revolução proletária”, grupo oposicionista de esquerda agrupado em torno a Monatte, Rosmer e Loriot. Rompeu com Trotsky em 1929, derivando para o anarco-sindicalismo. (retornar ao texto)
(3) Talleyrand, referindo-se à nobreza francesa que, depois de um quarto de século de emigração, tinha voltado à França com a restauração dos Bourbons, de 1815, disse dela que "não tinha aprendido nem esquecido nada" (ils n 'ont rien appris ni rien oublié). (retornar ao texto)
Inclusão | 29/08/2009 |
Última alteração | 09/03/2010 |