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Tinhamos iniciado as conversações de paz na esperança de sacudir as massas trabalhadoras da Alemanha e da Austria-Hungria, bem como a dos países da "Entente".
Para atingir este objectivo era necessário prolongar as conversações o mais possível, a fim de dar tempo aos operários europeus para compreenderem convenientemente a própria revolução soviética e, em particular, a sua política de paz.
Após a primeira interrupção das conversações, Lenine propôs-me que me dirigisse a Brest-Litovsk. A perspectiva de negociar com o barão Kühlmann e o general Hoffmann não tinha em si nada de sedutor; mas, "para empatar as conversações era preciso um empata", como dizia Lenine. Tivemos, no Instituto Smolni, uma breve troca de opiniões acerca da linha geral a seguir. Foi posta temporariamente de lado a questão de se assinar ou não assinar: era impossível saber-se qual a marcha das conferências, o efeito produzido na Europa, e a nova situação que daí resultaria. E, como é óbvio, não renunciávamos à esperança de se dar uma rápida evolução revolucionária.
Para mim, era absolutamente evidente o facto de não podermos continuar a guerra. Quando atravessei pela primeira vez as trincheiras a caminho de Brest-Ltovsk, os nossos camaradas, apesar de todos os avisos e exortações que lhes tinham sido dirigidos, não conseguiram organizar uma manifestação mais ou menos significativa para protestar contra as exigências excessivas da Alemanha: as trincheiras estavam quase vazias, ninguém ousava dizer palavra, nem mesmo de uma forma condicional, acerca de um prolongamento da guerra. A paz, a paz a todo o custo!...
Mais tarde, quando voltei a Brest-Litovsk, tentei convencer o representante do grupo militar junto do Comité Executivo pan-russo a defender a nossa delegação com um discurso "patriótico".
- Impossível, respondeu, absolutamente impossível; já não poderíamos voltar para as trincheiras; não seríamos compreendidos; perderíamos toda a influência...
Assim, não houve qualquer espécie de desacordo entre Vladimir Ilitch e eu no que se referia à possibilidade de uma guerra revolucionária.
No entanto, uma outra questão se punha: poderiam os Alemães continuar a guerra, ser-lhes-ia possível desencadear uma ofensiva contra a revolução, quem declararia o fim das hostilidades? Como poderíamos nós conhecer, sondar a opinião da massa de soldados alemães? Que impressão teriam produzido sobre essa massa a Revolução de Fevereiro e a de Outubro? A greve de Janeiro na Alemanha parecia indicar um certo abalo. Qual a sua intensidade? Não seria necessário tentar submeter a classe operária e o exército alemães a uma prova: por um lado, a revolução operária dando a guerra por terminada; por outro, o governo dos Hohenzollern dando ordem para desencadear uma ofensiva contra esta revolução?
- É certamente muito sedutor, replicava Lenine, e não há dúvida de que algo resultaria de uma prova semelhante. Mas é muito, muito arriscado. E se, como é muito provável, o militarismo alemão tiver força suficiente para desencadear o ataque contra nós, que sucederá então? É impossível arriscar: actualmente não existe no mundo nada mais importante que a nossa revolução.
No início, a dissolução da. Assembleia Constituinte prejudicou muito a nossa situação Internacional. Contudo, os Alemães tinham podido recear desde logo que um entendimento entre nós e "os patriotas" da Assembleia Constituinte conduzisse a uma tentativa de continuação da guerra. Uma tal aberração arruinaria definitivamente a revolução e o país; porém só mais tarde nos teríamos apercebido disso, e, entretanto, os Alemães seriam levados a despender um novo esforço. Ora a dissolução da Assembleia Constituinte mostrava aos Alemães que nós estávamos verdadeiramente dispostos a terminar a guerra qualquer que fosse o preço. O tom de Kühlmann tornou-se imediatamente mais insolente.
Que impressão poderia essa dissolução da Assembleia Constituinte produzir no proletariado dos Aliados? Não era difícil responder a esta questão: a imprensa da "Entente" apresentava o regime soviético como simples agência dos Hohenzollern. E eis que os bolcheviques dispersavam a Assembleia Constituinte "democrática" para concluirem com os Hohenzollern uma paz humilhante, enquanto a Bélgica e o Norte da França se encontravam ocupados pelas tropas alemãs. Era evidente que a burguesia da "Entente" conseguiria despertar nas massas operárias a maior perplexidade. Por outro lado, isto poderia facilitar uma intervenção militar contra nós. Era sabido que, até mesmo na Alemanha, circulavam com insistência, entre a oposição social-democrata, lendas afirmando que os bolcheviques teriam sido comprados pelo governo alemão e que o que estava a passar-se em Brest-Litovsk era simplesmente uma comédia cujos papéis tinham sido distribuídos antecipadamente.
Esta versão devia parecer ainda mais aceitável na França e na Inglaterra. Assim, era minha opinião que antes de assinar a paz era absolutamente necessário dar aos operários da Europa uma prova cabal do ódio mortal que nos separava dos dirigentes alemães. Foi precisamente influenciado por estes motivos que, em Brest-Litovsk, cheguei à ideia de uma demonstração "instrutiva" que se traduzia pela fórmula: terminamos a guerra, mas não assinamos a paz. Aconselhei-me junto de outros membros da delegação, que me deram o seu assentimento, o que comuniquei por escrito a Vladimir Ilitch.
Respondeu: "Quando voltar falaremos". Talvez pensasse até exprimir nesta resposta que não estava de acordo com o que eu tinha proposto. De momento não me recordo, não tenho a carta à mão nem a certeza de que tenha sido conservada. Quando voltei para Smolni tivemos, Vladimir e eu, longas conversas.
- Tudo isso é extremamente sedutor, não se poderia desejar nada de melhor se o general Hoffmann fosse incapaz de fazer avançar as suas tropas contra nós. Existem porém poucas esperanças de que assim seja. O general encontrará, para desencadear a sua ofensiva, regimentos especialmente compostos por ricos camponeses bávaros, e será isso necessário para nos derrotar? Você mesmo diz que as trincheiras estão vazias. E se os Alemães, apesar de tudo, recomeçam guerra?
- Então seremos forçados a assinar a paz, mas será evidente para todo o mundo que não tínhamos outra solução. Isto bastará para destruir a lenda relativa a uma pseudo-ligação de bastidores entre nós e o Hohenzollern.
- Não há dúvida de que isso tem vantagens. Contudo demasiado arriscado. Actualmente não há nada no mundo mais importante que a nossa revolução; é preciso defendê-la do perigo custe o que custar.
Juntaram-se às dificuldades principais desta questão enormes complicações no seio do partido. Nos meios que lhe eram afectos, ou pelo menos entre os elementos dirigentes, a opinião dominante, intransigente, era a de ser necessário rejeitar as condições de Brest e recusar a assinatura da paz. Os relatos publicados pelos nossos jornais sobre as conversações mantinham e agravavam este estado de espírito, que encontrou a sua expressão mais viva no grupo do comunismo de esquerda que lançava a palavra de ordem da guerra revolucionária. Esta circunstância, evidentemente, inquietava Lenine.
- Se o Comité Central decide aceitar as condições alemãs unicamente sob a influência de um ultimatum verbal, dizia-lhe eu, arriscamo-nos a provocar uma cisão no partido. É indispensável desvendar o verdadeiro estado das coisas, tanto ao nosso partido como aos operários da Europa... Se cortamos relações com os da esquerda, o partido abrirá caminho à direita: pois, como é evidente, está fora de dúvida que todos os camaradas que tomaram uma posição nítida contra o golpe de Estado de Outubro e se pronunciaram a favor do bloco dos partidos socialistas, demonstraram, sem reservas, serem partidários da paz de Brest-Litovsk. Ora a nossa tarefa não consiste apenas em concluir a paz; entre os comunistas de esquerda existem muitos que desempenharam um papel de militantes extremamente activos durante o período de Outubro, etc...
- Tudo isso é indiscutível, respondia Vladimir Ilitch. Mas o que se decide neste momento é o destino da revolução. Nós iremos restabelecer o equilíbrio no partido. Antes de mais nada, é necessário salvar a revo1ução, e não é possível salvá-la senão assinando a paz. É preferível uma cisão do que o perigo de ver a revolução esmagada pela força militar. As manias da esquerda passarão e, seguidamente, - se é que eles vão mesmo ao ponto de provocar uma cisão, o que não é totalmente inevitável - regressarão ao partido. Porém, se os Alemães nos esmagarem, ninguém os fará voltar... Enfim, imaginemos que o vosso plano é aceite. Nós recusamos assinar a paz. Nesse caso os Alemães tomam a ofensiva. Que fareis então?
- Assinamos a paz constrangidos pelas baionetas. Nessa altura, a situação define-se claramente ante a classe operária de todo o mundo.
- E não defenderíeis então a palavra de ordem da guerra revolucionária?
- Nunca.
- Se a questão se apresenta assim, então a experiência poderá ser já muito menos perigosa. Arriscar-nos-íamos a perder a Estónia ou a Letónia. Vieram ver-me alguns camaradas estónios e contaram-me como tinham iniciado já e com bastante êxito a construção socialista nas colónias agrícolas. Será muito lamentável sacrificar a Estónia socialista - acrescentava Lenine num tom irónico - mas será preciso, será preciso, assim o penso, chegar a esse compromisso em prol da boa causa da paz.
- Mas supondo que a paz é assinada imediatamente, será que isso suprime a possibilidade duma intervenção militar dos Alemães na Estónia ou na Letónia?
- Admitamos que sim: mas é uma simples possibilidade, enquanto que no outro caso é uma quase certeza. Em qualquer das hipóteses, eu não me pronunciarei pela assinatura imediata: é mais seguro.
Perante o meu plano, Lenine temia sobretudo que, no caso dos Alemães retomarem a ofensiva, não conseguíssemos assinar a paz suficientemente depressa, isto é, que o militarismo alemão não nos desse tempo: "Esta Besta salta bruscamente", afirmou mais de uma vez Vladimir Ilitch.
Na conferência onde se deliberou sobre a questão da paz, Lenine pronunciou-se resolutamente contra a esquerda e com muita circunspecção e calma contra a minha proposta. Aceitou-a, todavia, contra-vontade, uma vez que era evidente a oposição do partido à assinatura, na medida em que uma resolução transitória deveria servir-lhe de ponte e levá-lo-ia a assinar o tratado.
A conferência dos bolcheviques mais em foco - isto é, dos delegados ao III Congresso dos Sovietes - demonstrou sem qualquer espécie de dúvida que o nosso partido, apenas saído do fogo de Outubro, tinha necessidade de verificar através da acção qual era a situação internacional. Se não tivesse surgido uma fórmula transitória, a maioria ter-se-ia pronunciado a favor da guerra revolucionária.
Talvez não seja destituído de interesse notar que os socialistas revolucionários de esquerda de forma alguma se pronunciaram imediatamente contra a paz de Brest-Litovsk. Spiridonova, pelo menos, estava nos primeiros tempos resolutamente a favor da assinatura:
- O mujique já não quer mais guerra - dizia ela - e aceitará qualquer espécie de paz.
- Assinai imediatamente a paz - dizia-me, no meu primeiro regresso de Brest - e aboli o monopólio dos trigos.
Seguidamente, os socialistas revolucionários de esquerda declararam-se a favor da fórmula transitória: cessar a guerra sem assinar a paz; mas consideravam-na como uma etapa a caminho da guerra revolucionária, "em caso de necessidade".
É sabido que a delegação alemã respondeu à nossa declaração de tal modo que poder-se-ia pensar não ser intenção da Alemanha retomar as hostilidades. Chegáramos a essa dedução quando nos voltámos a ver em Moscovo.
- Não irão eles enganar-nos? - perguntava Lenine. Dávamos a entender, com um gesto, que isso não nos parecia provável.
- Então está bem, disse Lenine. Tanto melhor se assim é: as aparências estão salvas e eis-nos saídos da guerra.(1)
No entanto, dois dias antes da data que nos tinha sido fixada como prazo final, recebemos um aviso telegráfico do general Samoilo, que ficara em Brest, dizendo que, segundo a declaração do general Hoffmann, os Alemães se consideravam em guerra connosco a partir do meio-dia de 18 de Fevereiro e, consequentemente, o tinham convidado a ele, Samoilo, a abandonar Brest-Litovsk. Este telegrama foi entregue directamente a Lenine. Encontrava-me então no seu gabinete. Conversávamos com Kareline e já não recordo com que outro camarada dos socialistas revolucionários de esquerda.
Após tomar conhecimento do telegrama, Lenine passou-mo sem dizer palavra. Recordo-me do seu olhar fazendo-me sentir imediatamente que o telegrama continha uma notícia importante e má. Lenine apressou-se a terminar a conversa com os socialistas-revolucionários para poder examinar a nova situação.
- Então, e apesar de tudo, enganaram-nos. Ganharam cinco dias. Esta Besta não deixa perder nada. Agora só nos resta assinar segundo as condições antigas, se é que os Alemães consentem em mantê-las.
Repliquei dizendo que era preciso dar tempo a Hoffmann para iniciar efectivamente a sua ofensiva.
- Mas então isso significa que entregaremos Dvinsk, que iremos perder muita artilharia, etc.?
- Há certamente novos sacrifícios a fazer. Mas é preciso que o soldado alemão entre efectivamente combatendo no território soviético. É necessário que a notícia seja conhecida pelos operários alemães por um lado, e pelos operários ingleses e franceses por outro.
- Não, replicou Lenine, é evidente que não se trata de Dvinsk; mas neste momento já não há tempo a perder. A prova está feita. Hoffmann quer e pode fazer a guerra. É impossível discutir: já nos roubaram cinco dias que eu pensava aproveitar. Esta Besta salta rapidamente.
O Comité Central tomou uma decisão relativa ao envio do telegrama onde se afirmava que consentíamos em assinar imediatamente o tratado de Brest-Litovsk. O telegrama foi enviado.
- Parece-me, disse eu então a Vladimir Ilitch numa conversa privada, que do ponto de vista político a minha demissão de comissário do povo para os negócios estrangeiros estaria de acordo com a situação.
- Porquê? Esses são processos parlamentares que não temos de adoptar entre nós.
- Contudo, a minha demissão marcará para os Alemães uma alteração radical da nossa política e aumentará a confiança que devem ter na nossa real intenção de, desta vez, assinar-mos a paz e respeitar as condições impostas.
- É possível, disse Lenine num tom pensativo. Aí está um sério motivo político.
- Não me recordo em que altura recebemos a notícia duma incursão na Finlândia pelas tropas alemãs e das operações efectuadas com o fim de esmagar os operários finlandeses. Lembro-me que dei com Lenine no corredor, próximo do seu gabinete. Estava extremamente comovido. Nunca o tinha visto e nunca mais o vi num estado semelhante.
- Sim, disse ele, provavelmente ver-nos-emos forçados a combater, embora não tenhamos meios. Desta vez julgo que não haverá outra solução...
Foi esta a primeira reacção de Lenine após a leitura do telegrama que anunciava a derrota da revolução na Finlândia. Porém, quando dez minutos ou um quarto de hora mais tarde entrei no seu gabinete, disse-me:
- Não, é impossível modificar a nossa política. A nossa actuação não salvaria a Finlândia revolucionária e constituiria seguramente a nossa perda. Daremos aos operários finlandeses todo o auxílio possível mas não abandonaremos o domínio da paz. Não sei se isso nos salvará agora. Mas em qualquer dos casos, é a única via que ainda poderá conduzir à salvação.
E a salvação encontrou-se com efeito nessa via.
A decisão de não assinar a paz não era motivada, como agora por vezes se escreve, por essa razão abstracta de que seria impossível concluir uma convenção com os imperialistas. Bastará consultar a brochura do camarada Ovsiannikov: nela se poderão ver os votos que Lenine reclamou acerca desta questão; são extremamente instrutivos; constatar-se-á que os partidários da fórmula de experiência por tentativas, "nem guerra, nem paz", responderam afirmativamente quando se lhes perguntou se tínha-mos o direito, na qualidade de partido revolucionário, de, sob certas condições, assinar uma paz "infame". Na realidade, o que dizíamos era: que se existem apenas vinte e cinco por cento de probabilidades para que o Hohenzollern não se decida, ou não possa, combater-nos, é necessário arriscar a experiência.
Três anos mais tarde, corríamos um outro risco - desta vez por iniciativa de Lenine; experimentávamos com a ponta da baioneta os burgueses e os pequenos senhores da Polónia. Fomos repelidos. Qual seria então a diferença que se verificava neste caso com aquilo que fizéramos em Brest-Litovsk? Em princípio, nenhuma; embora existisse diferença no grau de risco.
Vem-me à lembrança ter o camarada Radek escrito um dia que o poder do pensamento táctico de Lenine se manifestou sob o seu aspecto mais brilhante no movimento desencadeado após a assinatura de Brest até à marcha sobre Varsóvia. Todos sabe-mos agora que esta marcha sobre Varsóvia constituiu um erro que nos custou extremamente caro. Conduziu-nos não somente à paz de Riga, que viria a separar-nos geograficamente da Alemanha, mas entre outros resultados teve por consequência imediata ajudar consideravelmente à consolidação da Europa burguesa. O significado contra-revolucionário do tratado de Riga para o destino da Europa poderá ser compreendido mais claramente se nos lembrarmos das circunstâncias de 1923 e imaginarmos que tivemos então uma fronteira comum com a Alemanha. Demasiadas coisas nos indicam que o desenrolar dos acontecimentos na Alemanha teria sido, neste caso, completamente diferente. Além disso, não restam dúvidas que, mesmo na Polónia, o movimento revolucionário ter-se-ia desenrolado de uma maneira muito mais feliz sem a nossa intervenção militar, culminada por uma derrota.
O próprio Lenine dava, tanto quanto eu sei, uma enorme importância ao "erro" de Varsóvia. E contudo Radek, na sua apreciação da envergadura táctica ,de Lenine, está cheio de razão. É verdade que, após a tentativa feita para "pôr à prova" as massas laboriosas da Polónia, tentativa essa que não deu os resultados esperados; após o recuo que nos foi infligido - e que deviam necessariamente infligir-nos, pois, dada a calma que reinava então na Polónia, a nossa marcha sobre Varsóvia não passava de uma incursão de guerrilheiros; após a derrota que nos forçou a assinar a paz de Riga - não será difícil concluir que os adversários desta campanha tinham razão e que mais teria valido determo-nos a tempo e conservar a fronteira com a Alemanha. Todavia, isto só se tornou claro mais tarde. O que é significativo para Lenine, relativamente à ideia da marcha sobre Varsóvia, é a coragem da sua concepção. O risco era grande, mas ,a importância do objectivo superava a dimensão do perigo. O possível fracasso não constituía um perigo no que se refere à própria existência da República dos Sovietes; provocaria, quando muito, o seu enfraquecimento.
Poderemos deixar ao historiador futuro a tarefa de apreciar se valeria a pena arriscar um agravamento das condições da paz de Brest com o único objectivo de fazer uma demonstração perante os operários europeus. Mas é perfeitamente evidente que, uma vez feita essa demonstração, éramos obrigados a assinar a paz que nos impunham. E aqui, a nitidez da posição de Lenine e a poderosa pressão por ele exercida salvaram as coisas.
- E se os Alemães, apesar ,de tudo, tomam a ofensiva? E se marcham sobre Moscovo?
- Teremos de bater em retirada para Leste, para os Urais, declarando que estamos prontos a assinar a paz. A bacia de Kuznetz é rica em carvão. Criaríamos uma República do Ural-Kuznetz, servindo-nos da indústria da região, utilizando o carvão de Kuznetz, apoiando-nos no proletariado do Ural e sobre aqueles de entre os operários de Moscovo e Petrogrado que pudermos levar. Resistiremos. Em caso de necessidade, retirar-nos-emos ainda para mais longe, para Leste, para além do Ural. Recuaremos até Kamtchatka, mas resistiremos. As circunstâncias internacionais modificar-se-ão ainda dezenas de vezes e poderemos, a partir da nossa República do Ural-Kuznetz, voltar a Moscovo e a Petrogrado. Porém, se agora nos envolvermos inutilmente numa guerra revolucionária, se deixarmos dizimar a elite da classe operária e do nosso partido, é evidente que não regressaremos nunca mais.
Durante este período, a República do Ural-Kuznetz ocupa um lugar importante na argumentação de Lenine. Por vezes deixava os opositores verdadeiramente estupefactos ao lançar-lhes esta pergunta:
- Sabeis que possuímos enormes jazigos de carvão na bacia de Kuznetz? Juntando-os ao minério do Ural e ao trigo da Sibéria teremos uma base de reserva.
O interlocutor, que nem sempre tinha uma ideia precisa do local onde se encontrava Kuznetz e da relação que poderia haver entre as suas riquezas carboníferas e, por outro lado, o bolchevismo consequente e a guerra revolucionária, abria os olhos espantado ou desatava a rir, tomado de surpresa, julgando que Ilitch brincava ou tentava uma das suas habilidades. Na realidade, Lenine não estava de modo algum a 'brincar, mas, fiel a si próprio, sondava os dados da situação até às consequências mais extremas, aos piores resultados práticos. Esta concepção de uma grande República do Ural-Kuznetz era-lhe organicamente necessária para lhe dar firmeza, e para convencer os outros de que nada estava ainda perdido, não havendo qualquer razão para ceder à estratégia do desespero.
Sabe-se que felizmente não ficámos reduzidos à República do Ural-Kuznetz. Podemos porém afirmar que esta República, que nunca existiu, salvou a República dos Sovietes. De qualquer modo, para se compreender e apreciar a táctica de Lenine em Brest-Litovsk, é-se obrigado a ligá-la à sua táctica de Outubro. Ser adversário de Outubro e partidário de Brest seria exprimir, quer num caso, quer no outro, ideias de capitulação. O cerne da questão reside no facto de Lenine, na altura da capitulação de Brest-Litovsk, ter dispendido a mesma inesgotável energia revolucionária que lhe havia assegurado a vitória de Outubro no seio do partido. É precisamente esta combinação natural, orgânica, de Outubro e de Brest, de uma gigantesca tenacidade aliada a uma corajosa circunspecção, de vigor aliado à justeza de visão que nos fornece a medida do método e da força de Lenine.
Notas:
(1)É evidente que os diálogos reproduzidos neste capítulo são apenas aproximados; lembro-me, contudo, palavra por palavra, da frase acerca das "aparências". (retornar ao texto)
Inclusão | 06/02/2003 |
Última atualização | 03/03/2003 |