O Poder Popular em Portugal

M. Vieira e F. Oliveira


II - O Poder Popular e as Contribuições Teóricas da Esquerda Revolucionária


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Ao mesmo tempo em que se desencadeava esse processo nas empresas e a classe operária começava a construir os seus próprios instrumentos de luta e os seus organismos de poder, no âmbito das organizações políticas de esquerda começaram a surgir também as primeiras manifestações a respeito do problema. Inicialmente essas manifestações tiveram pouco aprofundamento e mereceram uma análise apenas superficial. Adoptaram-se algumas palavras de ordem em torno ao Poder Popular, certamente sob a influência dos então recentes acontecimentos chilenos. Mas não havia ainda nenhuma contribuição teórica de peso por parte da esquerda revolucionária que ajudasse a classe operária a aprofundar e generalizar as experiências concretas que estava levando a cabo.

A Liga de União e Acção Revolucionária (LUAR) falava em Poder Popular, mas com uma concepção vagamente anarco-sindicalista, propondo a auto-organização das massas, sem compreender com clareza o fenómeno que estava a surgir e sem ter condições de globalizá-lo num projecto político.

O Movimento de Esquerda Socialista (MES), tendo tomado um contacto mais estreito com a experiência chilena e com as contribuições teóricas das organizações italianas «Lotta Continua» e «II Manifesto» também começou a propor o Poder Popular como palavra de ordem. Não aprofundou muito o problema no início mas, pelo menos, teve o mérito de ser a primeira organização da esquerda revolucionária portuguesa a identificar as Comissões de Trabalhadores como gérmens de poder operário. Mais tarde, porém, o MES viria a aprofundar as suas elaborações e daria importantes contribuições nesse sentido.

O Partido Revolucionário do Proletariado - Brigadas Revolucionárias trazia já no seu programa um ponto fundamental sobre o que chamava a organização autónoma da classe operária. Inicialmente o PRP-BR referiu-se às Comissões de Trabalhadores, mas não previu que as mesmas pudessem ultrapassar o seu carácter reivindicativo; admitiu que as Comissões eram organizações autónomas, mas que iriam transformar-se em sindicatos, ou, no máximo, cumprir as funções destes. É assim que esse Partido afirma nas «Edições Revolução» de Outubro de 1974, a respeito das organizações autónomas: «A propósito, voltamos, outra vez (nunca será demais repeti-lo), a dizer o que entendemos por Revolução Socialista: trata-se do processo no qual a tomada do Poder e o exercício desse mesmo Poder serão feitos pelo próprio proletariado organizado em Comissões Proletárias (ou Soviet) de empresa e de bairro.» Vemos, então, que o PRP já não falava aqui em Comissões de Trabalhadores, mas sim em Comissões Proletárias. Posteriormente esse mesmo Partido, desconhecendo o papel que as Comissões de Trabalhadores já estavam a desempenhar, viria a propor a criação de outro tipo de organização autónoma, os Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros (CRTSM), os quais não tiveram nenhuma viabilidade prática, devido à visão incorrecta que orientou a proposta de criação desses organismos. Não se tratava aqui do facto de ter sido esta a proposta de um Partido que assumia a tarefa de levá-la à prática e dar-lhe uma orientação revolucionária. Nem se tratava das tarefas e objectivos que foram definidos para os CRTSM, que eram em geral tarefas e objectivos próprios dos organismos de Poder Popular. Tratava-se, isto sim, do desconhecimento do facto de que o Poder Popular deveria ser construído na luta pelo trabalho e pelo salário, pelo controlo da produção e gestão das empresas, pela solução dos problemas concretos que enfrentam as massas, pela expropriação dos meios de produção, pela casa, etc. Os CRTSM eram organismos construídos fora da dinâmica que assume essa luta diária dos trabalhadores e não levaram em conta as Comissões de Trabalhadores, as quais tinham sido criadas pelas próprias massas a partir das suas necessidades concretas e imediatas.

Na verdade, a proposta da criação dos Conselhos Revolucionários, surgida no dia 12 de Abril de 1975, baseava-se numa análise errada das condições políticas da época. Identificando as crises de governo que então se sucediam umas às outras com um possível vácuo nos centros de Poder, e superestimando o amadurecimento político das massas, o PRP-BR pensou que os trabalhadores poderiam partir para o assalto imediato ao Poder de Estado. Daí a sua proposta de criação de organismos autónomos de massas, de carácter eminentemente insurreccional, (mas extemporâneos), que tentassem repetir, em certa medida, a trajectória da Revolução Russa de 1917. Esse projecto, obviamente, fracassou.

Mas logo a seguir o PRP, ainda que não tivesse abandonado definitivamente o projecto dos CRTSM, retomou correctamente a questão do Poder Popular. Desta maneira, embora por vezes tenha se situado um pouco fora da dinâmica real da luta de classes, também teve uma relação directa com o surgimento do Poder Popular em Portugal e produziu importantes colaborações teóricas nesse sentido.

Algumas organizações políticas de esquerda prestaram também uma especial atenção às determinadas experiências de auto-gestão que se produziram em Portugal. Mas essas experiências, que na maioria dos casos se produziram devido ao boicote e mesmo à fuga dos patrões, não mereceram qualquer atenção por parte do Estado. Os operários dessas fábricas, muitas vezes dependentes das ramificações internacionais que as mesmas tinham, ou então pressionados pelas leis implacáveis da concorrência capitalista no mercado interno, não tiveram condições de levar adiante essas experiências. A auto-gestão em Portugal fracassou antes de que alguém se tivesse arriscado a teorizar a seu respeito.


Inclusão 19/09/2019