MIA > Biblioteca > Temática > Novidades
Se Marx é mesmo uma espécie de filósofo, ele também se demarca da maioria dos construtores de sistemas filosóficos na medida em que considera que as suas reflexões, por mais abstrusas que sejam, têm um alcance essencialmente prático — porque, aos seus olhos, as ideias estão não só ao serviço de forças políticas reais, como têm um peso político enquanto tais. É este o teor da célebre tese marxista sobre a unidade da teoria e da prática — mesmo se não devemos esquecer que a teoria de Marx aspira além do mais a induzir uma ordem social em que o pensamento não desempenhe mais do que um papel meramente instrumental nem vise unicamente atingir este ou aquele objectivo prático, mas, ao invés, possa ser apreciado como um exercício que por si dê prazer.
A doutrina política de Marx é fundamentalmente revolucionária — na sua óptica, o termo “revolução” refere-se menos à rapidez, ao repentino ou à violência de um processo de mudança social (apesar da concepção violenta da construção do socialismo à qual parece aderir: ele não exclui o emprego da força insurreccional) do que à exclusão de uma classe possuidora e à substituição desta classe por outra, processo que evidentemente não pode ser cumprido de um dia para o outro. Uma particularidade do socialismo merece ser assinalada: não apenas a tomada do poder pela classe operária é descrita como indispensável à instauração do modo de produção socialista, como dela se espera que crie as condições para a abolição final de todas as classes. Uma vez que a colectivização e o controlo social dos meios de produção tenham sido estabelecidos, escreve Marx, as próprias classes acabarão por desaparecer:
“Todas as classes que anteriormente conquistaram o poder procuraram consolidar a posição adquirida submetendo toda a sociedade às condições da sua prática. Os proletários só podem tornar-se senhores das forças produtivas da sociedade abolindo o seu próprio modo de apropriação; e, consequentemente, o modo de apropriação tal como existiu até aos nossos dias. Os proletários não detêm nada de seu, não têm nada a salvaguardar; cabe-lhes destruir todas as garantias privadas, todos os seguros outrora contratados” (MC, p. 172; OE, I, p.116).
Formulações que fazem eco de uma outra passagem, tirada das suas obras de juventude:
“Mas então onde encontrar a possibilidade positiva da emancipação [...]?
Resposta: na formação de uma classe encarregada de cadeias radicais, de uma classe da sociedade civil que não é uma classe da sociedade civil, de uma ordem que é a dissolução de todas as ordens, de uma esfera que possui um carácter universal por força dos seus sofrimentos universais, e que não reivindica qualquer direito particular, porque a submetem não a uma falta particular, mas à falta absoluta, que já não pode reportar-se a um título histórico, mas apenas a um título humano [...]. Esta dissolução da sociedade, é, enquanto Stand particular, o proletariado” (AEP, “Pour une critique de la philosophie du droit de Hegel”, p. 396).
O proletariado constituirá a última classe da história porque o acesso ao poder da classe operária tomará a forma de uma “ditadura do proletariado” que será o prelúdio da edificação de uma sociedade onde todos e todas se posicionarão da mesma forma em relação aos meios de produção, enquanto proprietários colectivos das forças produtivas: por “operário” já não se entenderá os membros de uma classe particular, mas a totalidade dos homens e das mulheres que concorrerem para a produção e a perpetuação de um certo tipo de vida social. Dita “socialismo”, a primeira fase da revolução anticapitalista não será acompanhada de uma igualdade total: com efeito, para Marx, o conceito de “igualdade de direitos” não é mais do que uma espécie de reflexo idealizado, directamente herdado da época burguesa, de uma troca de mercadorias fundada sobre um princípio de igualdade abstracto. Não podemos daí deduzir que esta noção não tenha para si qualquer valor: ele contenta-se em constatar que o princípio do “direito igual” oculta inevitavelmente as particularidades masculinas e femininas não reconhecendo a diferença intrínseca dos talentos individuais — que, tal como muitos outros estigmas da ordem burguesa, este princípio mistifica o ser humano ao privilegiar um legalismo que dissimula o conteúdo real das desigualdades sociais. E o facto é que Marx se interessa mais pela diferença do que pela igualdade; o socialismo, anota, não suprime as desigualdades:
“Contudo, tal indivíduo é física ou intelectualmente superior a outro, e portanto fornece num mesmo tempo mais trabalho ou pode trabalhar durante mais tempo. O trabalho, para servir de medida, deve ser calculado de acordo com a duração ou a intensidade, se não deixaria de ser o padrão de medida. Este direito igual é um direito desigual para um trabalho desigual. Não reconhece qualquer distinção de classe, dado que qualquer homem é somente um trabalhador como qualquer outro, mas reconhece tacitamente como um privilégio natural o talento desigual dos trabalhadores, e, assim, a desigualdade da sua capacidade produtiva. É portanto, no seu teor, um direito de desigualdade como qualquer direito. Pela sua natureza, o direito só pode consistir no emprego de uma medida igual para todos; mas os indivíduos desiguais (e seriam indistintos se não fossem desiguais) só podem ser medidos com uma medida igual quando são considerados sob um mesmo ponto de vista, quando sejam olhados sob um aspecto único e determinado; por exemplo, no nosso caso, unicamente enquanto trabalhadores, abstraindo tudo o resto. Por outro lado: este operário é casado, aquele outro não; este tem mais filhos que aquele outro, etc. Para rendimento igual, e portanto para participação igual no fundo social de consumo, um recebe efectivamente mais do que o outro, um será mais rico do que o outro, etc. Para evitar todos estes inconvenientes, o direito não deveria ser igual, mas desigual” (CPG, pp. 1419-1420; OE, III, pp. 16-17).
Por consequência, o socialismo não preconiza nenhum nivelamento por baixo: fundamentalmente respeitador das diferenças individuais, irá permitir pela primeira vez que estas diferenças se possam manifestar plenamente. É assim, de acordo com Marx, que a contradição aparente entre o individual e o universal poderá ser resolvida: porque, longe de caracterizar um modo de ser supra-individual, para ele, a universalidade coincide simplesmente com o imperativo da participação de qualquer indivíduo no processo do livre desenvolvimento das suas faculdades pessoais. Ainda que, enquanto os produtores dos dois sexos tiverem necessidade de ser remunerados em função do seu trabalho, subsistam inevitavelmente desigualdades.
Num segundo tempo, contudo, o nível de desenvolvimento das forças produtivas atingido na fase superior do “comunismo” assegurará recursos tão abundantes que as questões da igualdade ou da desigualdade deixarão de se pôr — bastará colher neste fundo comum de recursos para que as necessidades de cada um possam ser satisfeitas:
“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiverem desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, em consequência, a oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho corporal; quando o trabalho se tiver tornado não apenas o meio de vida, mas também a primeira necessidade da vida; quando, com o florescer universal dos indivíduos, as forças produtivas tiverem crescido, e todas as fontes de riqueza cooperativa brotarem com abundância — só então poderemos evadir-nos de vez do estreito horizonte do direito burguês, e a sociedade poderá escrever nos seus estandartes: “De cada um segundo as suas capacidades, para cada um segundo as suas necessidades!”“ (CPG, p. 1420; OE, III, p. 17).
Nesta sociedade comunista, estaremos desembaraçados dessas tão importunas classes sociais e disporemos ainda de suficientes lazeres e de energia para cultivar a nossa inteligência e os nossos talentos à nossa vontade, não estando o exercício deste direito submetido a qualquer outra condição que não seja o respeito pela imposição de que todos possam fazer o mesmo. Em que se distingue este objectivo político dos objectivos do liberalismo? Sobretudo nisto: a expressão do nosso ser individual equivale para Marx à realização do nosso ser genérico; por este mesmo facto, o processo desta exploração e/ou transformação das nossas capacidades individuais só poderá cumprir-se no quadro de relações recíprocas, mediante uma colaboração mútua e não num esplêndido isolamento — segundo Marx, o “outro” dá-me o meio de me auto-realizar em vez de constituir (no melhor dos casos) um simples co-participante deste projecto, ou ser mesmo um obstáculo activo à minha própria auto-realização. E esta sociedade comunista trará ainda outros frutos: ao transformar suficientemente as forças produtivas herdadas do capitalismo para que as tarefas degradantes sejam reduzidas ao mínimo e ao libertar assim os homens e as mulheres da tirania dos mais vis labores, permitirá que cada um se dedique ao controlo democrático da vida social, enquanto “indivíduo integral” finalmente senhor do seu destino. Sob o comunismo, os seres humanos recuperarão portanto essas partes de si próprios de que tinham sido desapossados e reconhecer-se-ão como criadores e possuidores de um mundo purgado da sua falsa imutabilidade.
A revolução socialista deve, contudo, ser mediatizada por um agente que Marx descobriu na figura do proletário. Porquê o proletariado? Não porque seja espiritualmente superior às outras classes, nem mesmo porque seja o mais oprimido de todos os grupos sociais: neste caso, os vagabundos, os párias, os indigentes (todos aqueles que Marx qualifica desdenhosamente como membros do “lumpenproletariat”) dariam bem melhor conta do recado! Poderíamos dizer que é o capitalismo, mais do que o socialismo, que propulsiona a classe operária para o papel de agente privilegiado da mudança revolucionária: não só esta classe é aquela que mais irá ganhar com a abolição do capitalismo, como além disso é suficientemente educada, organizada e geograficamente concentrada para levar a cabo eficazmente a tarefa que lhe está cometida. E convém sublinhar a este propósito que esta revolução específica (o derrube do capitalismo) que a classe operária deve cumprir não tem nada de exclusivo: não se opõe necessariamente às transformações paralelas que outros grupos radicais (as feministas, os nacionalistas, os membros de minorias étnicas, etc.) possam efectuar concomitantemente, aliando-se de preferência àqueles que são mais cruelmente explorados pelo capitalismo.
Em que consistirá a sociedade futura? Ela não tomará certamente a forma de uma ordem social encimada por um Estado, instância política que Marx arruma na categoria das “superestruturas” reguladoras das sociedades capitalistas: para ele, os Estados são mais subprodutos da luta de classes do que estruturas que permitam transcender os conflitos ou resolvê-los idealmente, isto é, afinal simples instrumentos ao serviço das classes dirigentes que aspiram apenas a dominar as classes inferiores; e os Estados burgueses, nomeadamente, apareceram em função da oposição alienante que foi estabelecida entre o individual e o universal:
“É precisamente devido a esta oposição entre interesse particular e interesse comum que este toma, enquanto Estado, uma configuração autónoma, desligada dos interesses reais, individuais e colectivos, ao mesmo tempo que se apresenta como comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado de famílias e de tribos, tais como a consanguinidade, a linguagem, a divisão do trabalho numa maior escala e outros interesses; em particular, como iremos expor mais tarde, sobre a base das classes sociais já saídas da divisão do trabalho, as quais se constituem separadamente em qualquer agregado humano deste género, e das quais uma domina todas as outras. Segue-se que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo sufrágio, etc., não passam de formas ilusórias — sendo o geral sempre a forma ilusória do comunitário — nas quais as lutas entre as diferentes classes são travadas [...]” (IA, p. 1064; OE, I, p. 24).
Marx, é certo, não adere sempre a uma visão do Estado tão francamente instrumentalista quando analisa os conflitos de classes ao pormenor; mas não deixa de estar convencido de que a verdade do Estado, por assim dizer, é sempre exterior a ele, e considera ainda que as estruturas estatais são intrinsecamente alienantes, nomeadamente pelo facto de a parte de competências individuais que cada cidadão delega no Estado pesar sempre fortemente nas modalidades quotidianas desta forma específica de existência económico-social que se afirma na “sociedade civil”, para retomar a expressão de Marx. Uma democracia autenticamente socialista, pelo contrário, deveria restituir-nos estas facetas universais e individuais de nós mesmos permitindo-nos participar nos processos mais gerais da vida política enquanto sujeitos concretos e singulares — nos nossos locais de trabalho ou nas localidades onde residimos, mais do que através da cidadania puramente abstracta que as democracias liberais representativas nos outorgam. Deste modo, Marx está muito próximo do anarquismo: parece preconizar a criação de uma sociedade cooperativa composta de “livres associações” de trabalhadores que estenderiam a democracia à esfera económica, transformando-a assim numa realidade concreta na esfera política. Foi finalmente à busca deste objectivo — muito menos sinistro ou inquietante, no fim de contas, do que alguns pretenderam — que ele se dedicou, não apenas escrevendo, mas também, e talvez mais ainda, agindo.
Inclusão | 14/08/2018 |