Marx e a Liberdade

Terry Eagleton


1. Filosofia


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Se Hegel e Aristóteles eram seguramente filósofos, em que sentido esta designação pode aplicar-se a Marx? Por um lado, numerosos textos de Marx têm um enunciado eminentemente filosófico; por outro, ele também troçou do espírito filosófico declarando por exemplo na sua célebre décima primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa, é transformá-lo(DAE, III, Ad Feuerbach, p. 1033; OE, I, p. 3). A objecção que vem imediatamente à ideia (como transformar um mundo que não compreendêssemos?) não terá deixado de receber o aval de Marx — porque, longe de propor a substituição das ideias por acções irreflectidas, ele sugeriu unicamente que se privilegie um tipo de prática filosófica que permita modificar aquilo que procuramos compreender, caminhando as mudanças sociais e intelectuais lado a lado:

“A filosofia não pode tornar-se realidade sem a abolição do proletariado, o proletariado não pode abolir-se sem que a filosofia se torne realidade” (AEP, Pour une critique de la philosophie du droit de Hegel, p. 397), assinalou ele igualmente.

Eis o que podemos ler na sua segunda tese sobre Feuerbach:

“A questão de saber se o pensar humano pode alcançar a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A querela da realidade ou da irrealidade do pensar — que está isolado da prática — é um problema puramente escolástico” (DAE, III, Ad Feuerbach, p. 1030; OE, I, p. 1).

Esta actividade teórica especificamente orientada para a acção apresenta várias particularidades distintivas: qualificada por vezes de “conhecimento emancipador”, visa antes de mais dar acesso à compreensão de uma situação individual ou colectiva que é indispensável para a transformação da dita situação, traço que permite (entre outros) qualificar este conhecimento como nova compreensão de si. Mas não podemos renovar o conhecimento que temos de nós próprios sem nos transformarmos ao mesmo tempo: trata-se, neste caso, de um modo de cognição particular no qual o acto de conhecer modifica aquilo que é contemplado. Quando me esforço por compreender aquilo que sou e as condições da minha existência, não posso, com efeito, manter-me idêntico àquilo que era antes: a parte de mim mesmo que cumpre este acto de compreensão, bem como aquela que é compreendida, diferem sempre daquilo que eram antes de cumprir este acto, e o processo repete-se forçosamente se tentar compreender de seguida toda esta série de operações — compreender-se a si mesmo quase equivale a tentar saltar por cima da própria sombra ou a erguer-se no ar puxando os próprios cabelos!

Este conhecimento, dado que incita os seres humanos a introduzir mudanças práticas nas suas condições de vida, tende, por outro lado, a transformar-se numa espécie de força social ou política que faz parte integrante da situação material examinada, mais do que constituir um simples “reflexo” que se contentasse em reproduzir esta situação ou em sobrepor-se a ela: mais próxima do acontecimento histórico do que da especulação abstracta, esta forma de conhecimento não traça uma fronteira nítida entre o saber que... e o saber como...

Por outro lado, já não há lugar à distinção entre as questões de valor inerentes a qualquer tentativa de emancipação pessoal e os dados factuais indispensáveis à compreensão de dada situação, como se desta forma fosse atenuada a distinção filosófica tradicionalmente estabelecida entre factos e valores: mais do que destacar que certo tipo de conhecimento pode revelar-se útil, importa apontar que as próprias motivações do desejo de compreender estão à partida ligadas ao sentido dos valores!

Esta décima primeira tese sobre Feuerbach não é assim redutível a uma espécie de causa filistina que apelasse simplesmente ao desvio da especulação abstracta para orientar-se sobretudo para o “mundo real”: apesar das ocasionais inclinações anti-intelectualistas às quais poderia ter cedido nas suas obras de juventude, Marx não esqueceu que o mundo real só pode ser apreendido através de conceitos abstractos e a sua diligência, neste caso, foi ainda mais notável por decorrer de motivos filosóficos — não foi apenas a consequência do seu activismo político. Nisto, poderíamos ligá-lo à ilustre linhagem de todos aqueles “anti-filósofos” que acentuaram, em épocas diferentes, os defeitos fundamentais do empreendimento filosófico: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Adorno, Benjamin e Wittgenstein fazem parte dela, ao mesmo título que pensadores contemporâneos como Jacques Derrida ou Richard Porty. Para todos estes pensadores, a filosofia no seu conjunto, e não unicamente esta ou aquela das suas componentes temáticas, tornou-se uma actividade profundamente problemática: procuraram, cada um a seu modo, seja transcender a integralidade do projecto filosófico por razões que permanecem filosoficamente interessantes, seja reformulá-lo em termos radicalmente inovadores, objectivo que necessitava de forjar um estilo de escrita teórica totalmente inédito de acordo com alguns deles. Na sua maioria, procuraram desembaraçar a filosofia das suas antigas pretensões metafísicas, insistindo, em vez disso, em algo de mais fundamental aos seus olhos: no ser, no poder, na diferença, nas formas de vida práticas ou nas “condições históricas”, no caso de Marx. As suas críticas não devem ser confundidas com uma pura e simples oposição à filosofia: estes anti-filósofos demarcam-se tanto deste tipo de oponentes como um “anti-romance” como Ulisses difere de um não-romance do tipo “lista telefónica”.

Porque é que Marx lançou um olhar tão céptico sobre a filosofia? Em primeiro lugar porque considerava que o ponto de partida era mau — parecia-lhe que os filósofos não remontavam tão longe quanto necessário. A filosofia em voga no seu tempo (o idealismo alemão) partia de facto das ideias, tomando a consciência como único fundamento da realidade; ora, Marx tinha descoberto que não saberíamos conceber a mínima ideia sem que previamente a este fenómeno se desenvolvessem diversas actividades. O que tem de produzir-se antes de começarmos a reflectir? Temos de estar ligados praticamente ao mundo que tentamos pensar, e em consequência estar já integrados num vasto conjunto de relações, condições materiais e/ou instituições sociais:

“A produção das ideias, das representações, da consciência, está, de imediato, directamente ligada à actividade e ao comércio materiais dos homens: ela é a linguagem da vida real. Nela, a maneira de imaginar e de pensar, o comércio intelectual dos homens aparecem ainda como a emanação directa do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual, tal como se manifesta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, etc., mas são os homens reais, actuantes, tal como são condicionados por um desenvolvimento determinado das suas forças produtivas e do comércio que lhes corresponde até nas suas formas mais amplas. A consciência não pode nunca ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real.” (IA, p. 1056; OE, I, p. 13).

É conveniente salientar a este propósito que, mesmo se Marx procura, numa perspectiva epistemológica, manter um laço estreito entre a consciência e o mundo material, existe também um sentido político no qual ele pretende distender esta relação. Para ele, como veremos, é quando produzimos livremente, de forma gratuita e independente de qualquer necessidade material imediata que mais afirmamos a nossa humanidade e menos nos parecemos com as outras criaturas animais: para Marx, a liberdade equivale a uma espécie de superabundância criadora que, precisamente porque excede o que é materialmente essencial, escapa por definição a qualquer medida material e acaba por só poder ser avaliada pelo seu próprio padrão; mas, porque também nada poderá advir em qualquer sociedade sem que estejam satisfeitas certas condições materiais, considera ainda que tudo é materialmente condicionado, incluindo mesmo esse “excesso” de consciência que ele tem por selo da natureza humana. É na linguagem, sublinha ele, que a consciência e a prática social convergem com uma evidência máxima:

“A linguagem é tão velha quanto a consciência — ela é a consciência real, prática, tão presente para os outros homens como para mim mesmo, e, tal como a consciência, a linguagem nasce apenas da carência, da necessidade do comércio com outros homens” (IA, p. 1061; OE, I, p. 22).

Mas, se a linguagem emana de uma carência, enquanto condição necessária do trabalho colectivo, não permanece ligada a esta necessidade, tal como é testemunhado pelo fenómeno conhecido por “literatura”.

É apenas a partir do momento em que a “consciência” se emancipa suficientemente do mundo para atingir esta espécie de reflexão sistemática designada “filosofia” que se torna indispensável recorrer a especialistas, a academias e a uma série de instituições paralelas que são todas fundadas sobre o trabalho de outros: tal é o primeiro aspecto deste modo de organização que Marx qualifica como “divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual”. Pretende ele dizer que a filosofia, no sentido mais lato do termo, só pode prosperar em sociedades que tenham conseguido um excedente económico suficientemente importante para que alguns possam ser dispensados das exigências do trabalho produtivo: estas sociedades têm de elevar-se suficientemente acima das necessidades materiais imediatas para poderem tolerar que uma minoria dos seus membros possa aceder ao estatuto privilegiado de políticos, de académicos, de produtores culturais, etc., a tempo inteiro; a consciência pode então começar a alimentar o fantasma da sua independência da realidade material, sob o único pretexto de que existe um sentido material no qual ela existe realmente:

“A divisão do trabalho só adquire o seu verdadeiro carácter a partir do momento em que intervém a divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. (A isto corresponde o primeiro tipo de ideólogos, os sacerdotes) Desde então, a consciência pode verdadeiramente imaginar que é uma coisa diferente da consciência da prática estabelecida e que representa realmente alguma coisa sem representar qualquer coisa real: a partir deste momento a consciência é capaz de emancipar-se do mundo e de passar à formação da teoria ‘pura’, da teologia, da filosofia, da moral, etc.” (IA, p. 1062; OE, I, p. 23).

Segundo Marx, a cultura tem uma única origem, que não é outra senão o trabalho — o que para ele equivale grosso modo à exploração. As culturas próprias das sociedades de classes tendem a reprimir esta verdade incómoda — preferem inventar antepassados mais nobres que possam negar esta baixa parentela, deixando supor em vez disso que provêm simplesmente de culturas anteriores ou saíram apenas da imaginação desenfreada deste ou daquele indivíduo particular; mas Marx recorda-nos que o nosso pensamento, à semelhança dos nossos sentidos mais especificamente corporais, é sempre o produto da história com que somos confrontados... A história, isto é, o mundo real, escapa sempre de uma ou de outra forma à consciência que procura englobá-la, e Marx, que como bom dialéctico insistiu no carácter dinâmico, aberto e interactivo de todas as coisas, detestava os sistemas intelectuais presunçosos que (tal como o idealismo hegeliano) alegavam a sua pretensa capacidade de meter a totalidade do mundo no interior da vestimenta dos seus conceitos. Podemos portanto espantar-nos por a sua própria obra ter acabado por dar origem a um edifício tão estéril quanto aqueles que denunciava.

Para Marx trata-se antes de mais de constatar que o próprio pensamento é causado e condicionado por factores materiais. Por mais que delimitemos as causas disto ou daquilo, poderá o nosso pensamento virar-se suficientemente sobre si próprio, digamos, a ponto de conseguir apreender seja o que for da história que o produziu? Nós, os homens do final do século XX, temos certamente boas razões para suspeitar que esta apreensão só pode ser parcial: somos levados a suspeitar que existe sempre uma espécie de mancha cega, uma qualquer amnésia necessária ou uma inevitável opacidade em relação a si próprio que condena o espírito a invariavelmente falhar neste tipo de empreendimento. Enquanto filho do século das Luzes, Marx acreditava talvez mais do que nós no poder esclarecedor da razão: mas, enquanto pensador historicista (estas duas correntes gémeas, o racionalismo e o historicismo, estão frequentemente em tensão na sua obra), reconhecia também que, se todo o pensamento tem um carácter histórico, então, inevitavelmente, isto mesmo acontecia com o seu. Na medida em que não se reduz a um conjunto de ideias brilhantes que qualquer um poderia ter concebido em qualquer momento, o marxismo não poderia ter nascido no tempo de Carlos Magno ou de Chaucer: pelo contrário, consiste num fenómeno temporal e geograficamente circunscrito, que admite tranquilamente que as suas principais categorias intelectuais (o trabalho abstracto, a mercadoria, o indivíduo livre de movimentos, etc.) foram um legado do capitalismo e do liberalismo político. O discurso marxista só aparece de facto a partir do momento em que lhe foi possível e necessário manifestar-se enquanto “crítica imanente” do capitalismo, e é por isso, sem dúvida, que tanto desejou escapar à época de que foi o produto. O Manifesto Comunista, em particular, não poupa elogios ao papel revolucionário das classes médias e à imensa mobilização de potencialidades humanas que o capitalismo induziu:

“A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário. Onde quer que chegou a dominar, destruiu todas as condições feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou implacavelmente os laços multicolores da feudalidade que prendiam o homem ao seu superior natural, não deixando subsistir entre o homem e o homem outro laço que não fosse o do interesse nu, o inexorável ‘pagamento sonante’. Devoções sagradas e piedosos fervores, entusiasmos cavalheirescos, pesadas melancolias — afogou tudo isto nas águas geladas do cálculo egoísta. Numa palavra, no lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou a exploração aberta, desavergonhada, directa, em toda a sua secura. [...]

Às relações familiares, arrancou o véu de tocante sentimentalidade; reduziu-as a uma simples relação de dinheiro. [... ]

A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos da produção, portanto as relações de produção, portanto o conjunto das condições sociais. [...] O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a perturbação incessante da produção, o abalo constante de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais enferrujadas, com o seu cortejo de ideias e de opiniões aceites e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que era sólido, bem estabelecido, volatiliza-se, tudo o que era sagrado é profanado, e no fim os homens são forçados a olhar de modo desenganado o lugar que ocupam na vida e as suas relações mútuas” (MC, p. 163-165; OE, I, p. 109-110).

Se estas energias tão admiráveis quanto devastadoras lançaram as bases materiais do socialismo também destruíram o projecto revolucionário que as tinha inicialmente guiado: pondo fim a todas as formas tradicionais de opressão, o capitalismo também confrontou a humanidade com a realidade brutal de uma exploração que o socialismo em seguida se aplicará em analisar e em transformar.

Compreender que o pensamento está enraizado nas próprias condições materiais que ele procura entender resulta em comportar-se como filósofo materialista, por paradoxal que esta afirmação possa parecer à primeira vista. O pensamento materialista, assim definido, deve procurar integrar uma realidade (a do mundo material) que é não só exterior à actividade intelectual como mais fundamental que esta, num certo sentido; é o que Marx pretende dizer quando sustenta que, ao longo da história humana e ao contrário do que pretenderam os idealistas, a consciência foi determinada pela “existência social”, e não o inverso:

“Consequentemente, a moral, a religião, a metafísica e toda a demais ideologia, tal como as formas de consciência que lhes correspondem, já não conservam a sua aparente independência. Por si, não têm nem história nem desenvolvimento; são os homens, pelo contrário, que, ao desenvolverem a sua produção e a sua comunicação materiais, tanto transformam essa sua realidade como transformam o seu pensamento e os produtos do pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (IA, p. 1056-1057; OE, I, p. 14).

A dialéctica hegeliana é aqui firmemente reposta em pé: Marx reformula esta dialéctica em termos materialistas negando que as ideias determinem a existência social. Para ele, o que dizemos ou pensamos é no fim de contas determinado pelo que fazemos, o que equivale a postular que os nossos jogos linguísticos repousam em práticas históricas.

Mas atenção: por ser também evidente que os actos que cumprimos enquanto seres históricos estão intimamente ligados ao pensamento e à linguagem — nenhuma prática humana escapa à significação, à intenção e à imaginação, tal como Marx aponta:

“O animal é imediatamente uno com a sua actividade vital. Ele não se distingue dela. Ele é essa mesma actividade. O homem faz da sua própria actividade vital o objecto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem uma actividade vital consciente. Não é uma característica com a qual ele se confunda imediatamente” (EP, p. 63).

“Uma aranha desempenha operações que se assemelham às do tecelão, e a abelha, com a estrutura das suas células de cera, confunde a habilidade de muitos arquitectos. Mas o que distingue desde logo o pior dos arquitectos da abelha mais experiente é o facto de aquele ter construído a célula na sua cabeça antes de a ter construído na colmeia” (C, Livro primeiro, terceira secção, capítulo VII, p. 728; Ca, I, p. 206).

Se a existência social gera o pensamento, ela também é apanhada nas malhas das nossas construções mentais. Ora, Marx sustenta que o primeiro destes elementos é mais fundamental do que o segundo, tal como afirma que as “bases” materiais das sociedades geram “superestruturas” culturais, jurídicas, políticas e ideológicas:

“Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um dado grau do desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue um edifício jurídico e político, a que correspondem formas determinadas da consciência social. O modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência; pelo contrário, é a sua existência social que determina a sua consciência” (CEP, Introdução, pp. 272-273; OE, I, pp. 530-531).

São estes os tão celebrados delineamentos da “teoria económica da história” que devemos a Marx. É óbvio que a sua afirmação do primado da existência social sobre a consciência tem um estatuto ontológico, na medida em que se refere a uma concepção geral do ser humano, e talvez também o seja o caso da doutrina “base/superestrutura”, na medida em que ela enuncia que todas as formas políticas e sociais e que todas as mudanças históricas importantes são determinadas em última instância por conflitos inerentes às forças de produção materiais. Mas esta doutrina também pode ser recolocada numa perspectiva mais histórica: porque ela descreve como é que a política, as leis, a ideologia, etc., funcionam historicamente nas sociedades de classes. Que diz Marx? Que, nestas sociedades, as relações sociais são tão injustas e contraditórias que as formas políticas, jurídicas, etc., que se apoiam sobre essa base só podem ter como função ratificar, favorecer ou mascarar essa injustiça, e que é precisamente por isso que estas formas podem ser qualificadas como “secundárias” ou “superestruturais” em relação a esse embasamento: daí poder inferir-se que, se as relações sociais fossem justas, estas superestruturas talvez já não fossem necessárias... Trata-se aqui, dito por outras palavras, não apenas da origem material das ideias mas também e precisamente da função política que lhes é atribuída pela sua inscrição social, ponto que nos remete para o conceito marxista de ideologia:

“Em todas as épocas, as ideias da classe dominante são as ideias dominantes; ou noutras palavras, a classe que é a potência material dominante da sociedade é simultaneamente a potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe, em simultâneo, e por este facto, dos meios de produção intelectual, de tal modo que em geral, ela exerce o seu poder sobre as ideias daqueles que estão desprovidos destes meios. Os pensamentos dominantes não passam da expressão em ideias das condições materiais dominantes, são estas condições concebidas como ideias, e portanto a expressão das relações sociais que precisamente fazem de uma única classe a classe dominante, e portanto as ideias da sua supremacia” (IA, pp. 1080-1081; OE, I, p. 38).

Logo que se torne “ideológica”, a filosofia tende a desviar os homens e as mulheres dos conflitos históricos acentuando o primado do espiritual ou propondo-se resolver estes conflitos a um nível superior completamente imaginário — é aquilo que Marx condena nos hegelianos. Pelo contrário, a sua concepção da história:

“tem por objecto a análise do processo efectivo de produção partindo da produção material da vida quotidiana; a concepção da forma de comércio ligada a este modo de produção e gerada por ele, isto é, a sociedade civil em diferentes estádios enquanto fundamento de toda a história; a descrição desta sociedade na sua acção enquanto Estado, bem como explicar através dela o conjunto das diversas produções teóricas e formas da consciência, tais como a religião, a filosofia, a moral, etc.; a observação da génese da sociedade civil em ligação com estas formas e criações, o que permite então, naturalmente, a exposição do fenómeno na sua totalidade (e também a interacção entre estes diversos aspectos)” (IA, p. 1071; OE, I, p. 32).

Ao contrário da concepção idealista, a teoria materialista “mantém-se sempre no terreno real da história":

“[Ela] não explica a prática através da ideia, mas a formação das ideias através da prática material, conduz logicamente à conclusão de que todas as formas e todos os produtos da consciência podem ser resolvidos, não pela crítica intelectual, remetendo-os à “Consciência de si” ou transformando-os em “aparições”, “fantasmas”, “caprichos”, etc., mas apenas transformando efectivamente as condições sociais de onde são oriundas estas frivolidades idealistas [...]” (IA, pp. 1071; OE, I, p. 32-33).

Dado que os problemas teóricos se ancoram sempre em contradições sociais, afirma Marx, apenas a política, e não a filosofia, permite resolvê-los: vemos assim como um certo estilo de raciocínio filosófico pode conduzir a um “descentramento” da própria filosofia. Como tantos outros anti-filósofos, Marx tentou deslocar o ponto de ancoragem tradicional do conjunto dos discursos teóricos apreendendo os enigmas filosóficos simultaneamente como o sintoma de um texto histórico realmente subjacente e um modo de ocultação deste mesmo texto; em vez de continuar a sonhar com a sua impossível auto-elaboração, estima ele, a filosofia faria melhor se se confrontasse com a sua dependência em relação a esta realidade que a transcende, dado que a abordagem materialista

“mostra que a história não termina dissolvendo-se na ‘Consciência de si’ enquanto ‘Espírito do espírito’, mas que cada um dos seus estádios oferece um resultado material, uma soma de forças produtivas, uma relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que cada geração herda da sua antecessora, uma massa de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias que, por um lado, são modificadas, é certo, pela nova geração, mas que, por outro, lhe prescrevem as suas próprias condições de existência e lhe imprimem determinado desenvolvimento, uma característica específica. Ou seja, esta concepção da história mostra que as circunstâncias fazem os homens tal como os homens fazem as circunstâncias” (IA, pp. 1071-1072; OE, I, p. 33).

Desta forma, reconhece que a humanidade não é apenas o produto estritamente determinado por este ou aquele conjunto de condições materiais — se o fosse, como esperaria ele que os seres humanos pudessem um dia conseguir transformar estas condições? Com efeito, Marx, não pugna por um materialismo “mecanicista” semelhante, por exemplo, ao de Thomas Hobbes, que reduzia a consciência a um simples reflexo circunstancial, mas por um materialismo histórico: ele projecta explicar a origem, as características e as funções das ideias através das condições históricas em que apareceram.

Pareceria, no entanto, ter-se esquecido que nem toda a filosofia é necessariamente idealista: não só o seu próprio pensamento não releva já da mesma etiqueta do pensamento dos grandes burgueses materialistas do século das Luzes francês que lhe serviram de mestres, como ainda por cima podemos constatar que nem toda a ideologia é forçosamente “idealista”! O ponto de vista de Marx em relação a isto é dos mais originais: aos seus olhos, as filosofias idealistas são espécies de ilusões que procurariam realizar na esfera do espírito o que ainda não pode ser cumprido na realidade histórica e, partindo desta definição, é certo que a resolução da totalidade das contradições históricas próprias das sociedades existentes assinaria a pena de morte para qualquer especulação filosófica. Mas este reparo vale também para o pensamento de Marx: se partimos do princípio de que a filosofia marxista existe com o único fim de favorecer o advento de uma sociedade comunista que está para vir, vemos mal como é que uma filosofia deste género poderia ter lugar numa sociedade autenticamente comunista — o facto é que, em conformidade com a sua perspectiva anti-utopista, Marx não se preocupa nada em descrever essa futura ordem do mundo... Como toda a teoria política extremista, o seu pensamento acaba por abolir-se a si próprio, e é talvez sobretudo neste sentido que tem um carácter histórico.


Inclusão 14/08/2018