As Lutas dos Moradores e a Constituição de 1976

Amadeu Lopes Sabino, Saúl Nunes, e Luis Felipe Sabino

1977


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UM NOVO CONCEITO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO

Transcrição das alegações da parte apelante nos autos de recurso cível n,º 6.799 da 1.º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I. O problema sub-judice

Qual a razão porque dezenas de moradores do Bairro da Quinta dos Cedros — entre os quais a recorrente — passaram a depositar na Caixa Geral de Depósitos uma importância que consideram, até definição pelos órgãos do Estado competentes, a sua renda — isto depois de os senhorios se recusarem a discutir o problema?

Daqui partiu a justa luta dos moradores do Bairro da Quinta dos Cedros e da sua Comissão.

II — O arrendamento para habitação antes de 25 de Abril de 1974

Antes do 25 de Abril o princípio da liberdade contratual, como elemento básico e estrutural de todos os contratos, dominava o instituto do arrendamento urbano como senhor absoluto. Os autores são quase unânimes em relegar matéria de tão enorme repercussão social para a categoria dos simples direitos de crédito. Escamoteia-se, por detrás da igualdade formal dos contratantes, o facto de que na realidade, na esmagadora maioria dos casos, o senhorio e o inquilino estão realmente numa efectiva, real e muitas vezes dramática desigualdade de facto. Esquece-se que frequentemente o inquilino «contrata» em verdadeiro «estado de necessidade». Envolveram-se os dramas pungentes do direito à habitação — ou da sua ausência — na rígida disciplina do Código Civil cujas disposições os tribunais e a Polícia, coactivamente, iam fazendo cumprir.

Mas sucede que os grandes factos históricos não se compadecem com as construções jurídicas 66 rigorosamente elaboradas — mesmo que sejam brilhantes — e, de repente, todo o edifício jurídico é escandalosamente posto em causa pela prática social. Em Portugal, neste campo como em todos os outros, o detonador foi o 25 de Abril. Sucedeu aquilo a que alguns autores chamam, eufemisticamente, a «crise do Direito».

Ora o arrendamento para habitação era considerado como mero corolário do direito de propriedade, intuitu personae, e as disposições que o regulavam eram filhas dilectas dos aforismos que tinham como vértices princípios como a propriedade e a iniciativa privada («o mais fecundo instrumento de progresso e da economia da Nação», segundo dizia o art.º 4.º do Estatuto do Trabalho Nacional). Um corolário jurídico que decorria de tais princípios era o de que as normas que limitavam o direito de propriedade eram excepcionais.

Era o domínio absoluto do direito de propriedade — jus utendi et abutendi — cujos carácteres jurídicos, segundo Antunes Varela, são o «poder directo, imediato, perpétuo, exclusivo, elástico e, em regra, ilimitado». As restrições impostas por lei — de que nos fala o art.º 1305.º do Código Civil — não têm qualquer significado global pois que a regra, segundo a mesma disposição, é a de que «o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem». Já, aliás o Código de 1867 empregava a expressão «de que o proprietário pode 67 dispor livremente» (art.º 2167.º) e estabelecia, no art.º 2172.º, a presunção da propriedade absoluta. Como dizia Varela:

«A afirmação de que o proprietário goza de modo pleno dos seus direitos significa que, acima deles, não existe qualquer outro poder». «O direito é exclusivo — jus excludendi omnes allios — porque o proprietário pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu exercício» (in Código Civil Anotado, vol. III, pág. 83).

Mas a verdade é que «o homem põe e Deus dispõe» e foi isto que a legislação avulsa sobre arrendamento para habitação promulgada depois de 25 de Abril pôs em causa e que os princípios expressos na nova Constituição Política vêêm destruir. Efectivamente, o seu art.º 80.º diz que «a organização económico-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos ... e o exercício do poder democrático pelas classes trabalhadoras».

Mal adivinhavam os juristas a borrasca que iriam levantar 40 anos de regime anti-democrático e anti-popular!

Hoje a estulta pretensão de Varela de esconder as disposições avulsas sobre arrendamento no 68 Código Civil compilando-as num único diploma — para o pôr ao abrigo das «tempestades sociais», merece-nos sorrisos de complacência. Dizia ele: «A inclusão do arrendamento no Código representa um meio mais seguro da defesa da boa disciplina das relações entre senhorios e arrendatários contra a influência perturbadora de factores políticos que a todo o momento tendem a insinuar-se no tema do inquilinato; e ao mesmo tempo esse critério acautela melhor o próprio Estado contra a tentação das providências precipitadas e contra as frequentes arremetidas dos grupos de pressão sempre de recear em matéria de tão profunda repercussão económica e social...» (In Boletim do Ministério da Justiça, n.º 161, pág. 37.)

Os tempos mudaram.

III — O arrendamento para habitação post 25 de Abril de 1974

Com o 25 de Abril — melhor, com as convulsões sociais que se lhe seguiram — há uma total ruptura com o regime jurídico anterior também em matéria de arrendamento para habitação.

Com efeito, logo o art.º 1.º, n.º 3, da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de Maio, declarava que as disposições da Constituição Política de 1933 «serão interpretadas, na parte em que subsistirem, e 69 as lacunas da mesma serão integradas, de acordo com os ... princípios expressos no programa do Movimento das Forças Armadas».

E este Programa era inequívoco no seu ponto B, 6, ao estatuir que «A nova política social, em todos os domínios, terá essencialmente como objectivo a defesa dos interesses das classes trabalhadoras e o aumento progressivo mas acelerado da qualidade de vida de todos os portugueses».

Por seu lado, o Plano de Acção Política do M.F.A., aprovado pelo Conselho da Revolução em 21/6/75, vai mais além no campo das declarações programáticas e fixa o socialismo como meta a atingir.

Efectivamente, no campo de arrendamento urbano, vem a ser promulgada contínua legislação que, de uma maneira geral, se enquadra, embora timidamente, nestá linha de pensamento. Todavia é a nova Constituição que vem a consagrar um conjunto de princípios jurídicos que nada têm a ver com os que enformavam o regime deposto. Além do mais, o direito à habitação é expressamente consignado no art.º 65.º:

«1 - Todos têm direito, para si e sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar...

3 — O Estado adoptará uma política tendente 70 a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar...»

E já a legislação avulsa anterior à Constituição tinha seriamente posto em causa o princípio da liberdade contratual no arrendamento para habitação — a concepção da locação como negócio intuitu personae. Hoje ninguém ousará afirmar, como o fez João de Matos, que o contrato de locação é «... um daqueles pelos quais o direito de propriedade mais vigorosamente se afirma» ou que «a regulamentação jurídica da locação é ... um simples instrumento do comércio privado.» ( In Manual do Arrendamento e do Aluguer, I,` págs. 10 e 17, respectivamente.)

E, evidentemente, o que se passa não é exclusivo do contrato de arrendamento para habitação. Lembremos, a propósito, o que de igual modo se passa com o direito de trabalho, onde, por exemplo, são consagrados o direito à greve (expressamente proibida pelo art.º 39.º da Constituição de 1933 e a proibição dos despedimentos sem justa causa, que, obviamente, contraia a liberdade de uma das partes. Aliás o que se passa com o arrendamento urbano parece estar na linha da legislação progressista promulgada pela I República, o que já tinha levado a que Barbosa de Magalhães considerasse que o contrato de locação tinha um 71 carácter excepcional (Gazeta da Relação de Lisboa, Ano 52, pág. 228) e cuja linha de rumo vem à ser desviada com o «corporativismo». Este autor baseara-se na circunstância de, pelo menos a partir de 1919, com o Decreto 5.411, a regulamentação jurídica do arrendamento ser «especialíssima» e encontrar-se enformada por «conceitos opostos» dos que dominavam a generalidade dos contratos», por se guiar por «princípios diversos dos que presidem ao direito contratual no seu conjunto». Barbosa de Magalhães considerava, e bem, que os princípios fundamentais que inspiravam todo o direito contratual tinham sido afastados «em virtude de superiores considerações de interesse e ordem pública». Nada de novo portanto se passa hoje a não ser que, em face do novo condicionalismo político económico e social, se foi bastante mais longe. Com efeito consagra-se:

  1. A supressão do princípio Ha livre fixação da renda por parte do senhorio, pelo menos em muitos casos.

    (Decretos-Leis. 217/74, de 27 de Maio; 306/74, de 6 de Julho; 347/74, de 30 de Julho e 445/74, de 12 de Setembro).

  2. A suspensão do direito de demolição previsto na Lei 2088, de 3 de Junho de 1957.

    (Decreto-Lei 445/74, art.º 1.º, n.º 1).

  3. 72A limitação da liberdade de contratar.

    (Decreto-Lei 445/74, art.º 23.º, nº 1).

  4. A limitação, ou mesmo em alguns casos supressão, da liberdade de escolher o outro sujeito contratual.

    (Decreto-Lei 445/74, art.º 23.º, nº 3).

  5. A negação dos efeitos jurídicos de sentenças com trânsito em julgado.

    (Decretos-Leis 6/75, de 7 de Janeiro, 67/75, de 19 de Fevereiro e 155/75, de 25 de Março).

E, como se isto fosse pouco, o Decreto-Lei 198/A/75, de 14 de Abril, avança algumas disposições que, essas sim, são a antítese de tudo o que até então vigorava em tal matéria ao consagrar:

  1. A legitimação das ocupações (pelo menos de algumas) quer se verifiquem em prédios pertencentes a entidades privadas quer a públicas (Até o Estado considera que o seu direito pode ser preterido em função de valores sociais mais transcendentes).

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º 1.º, n.º 1).

    Ora, para haver ocupação é necessário, juridicamente falando, verificar-se «abandono». É pois em vão que Varela nos ensina que «para que se verifique abandono é necessário ainda que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre a coisa (animus derelinquenti). 73 E para mais, «O abandono das coisas imóveis não é admitido, com carácter geral, em nenhuma disposição do novo Código» (Ob. cit., Vol. III, pág. 111).

  2. A substituição do proprietário, contra a sua vontade, por outra entidade na celebração do contrato de arrendamento.

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º 1.º, n.º 4A).

  3. A substituição do proprietário, contra a sua vontade, no recebimento das rendas.

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º 1.º, nº 4 b).

  4. A fixação da renda segundo um critério objectivo que nada tem a ver com a pessoa do proprietário — a sua interligação com o salário mínimo nacional numa antecipação do princípio constitucional posteriormente consagrado no art.º 65.º n.º 3 da Constituição de 1976.

    (Decreto-Lei 198-A/75, art.º 9.º, n.º 1).

  5. A faculdade de isublocação sem autorização do senhorio.

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º b.º, n.º 5).

  6. A consideração, que se considera juridicamente revolucionária, de valorar a impossibilidade económica do inquilino poder pagar a renda e atribuír-lhe consequências jurídicas a seu favor. (Pela primeira vez 74 considera-se que, afinal, os sujeitos da relação jurídica «não são iguais!»).

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º 5.º, n.º 5).

E, como se isto não chegasse,

  1. A proibição de o proprietário usar e gozar a sua coisa como lhe aprouver.

    (Decreto-Lei 198A/75, art.º 9.º, nº 1), e

  2. A adopção de providências legislativas que colocam fora da alçada do locador o contrôle da sua transmissão do direito do arrendamento, por tempo indeterminado.

    Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio).

Depois de tudo isto, quem pode fechar os olhos à realidade e continuar a falar de contrato de arrendamento urbano? Onde está o jus utendi et abutendi de que nos falam os velhos Códigos? Na verdade, o poder do Estado invadiu tão impetuosamente o campo da autonomia da vontade das partes que pouco resta da doutrina contratual de arrendamento para habitação. Ora sucede que o princípio da liberdade contratual é o elemento básico e estrutural de toods os contratos. Nada há de comum com os princípios institucionais da Constituição de 1933 e do Estatuto do Trabalho Nacional que formaram toda uma pleiade de juristas (e de senhorios) e que, com esta ou aquela limitação «social», vieram a enformar o Código (Civil de 1966.

75

Art.º 16.º do Estatuto do Trabalho Nacional:

«O direito de conservação ou amortização do capital das empresas, e o do seu justo rendimento são condicionados pela natureza das cousas, não podendo prevalecer contra ele os interesses e os direitos do trabalho».

Art.º 13.º do mesmo Estatuto:

... «O vínculo que liga o proprietário ao objecto da propriedade é absoluto... (salvo a expropriação com à justa indemnização)».

Neste campo, pelo menos, os princípios jurídicos do Estado Novo são agora simples peças de museu. E não tenhamos medo das consequências — se estas disposições sistemáticas avulsas (mesmo que não gozassem de protecção constítucional) são incompatíveis com a filosofia política que norteou o Código de Varela, porque posteriores revogaram todo o Capítulo IV do Código Civil.

Há que legislar, de forma sistemática, sobre matéria de inquilinato, e, até lá, nenhum despejo pode ser decretado por, além do mais, ofender um princípio expresso ido direito constitucional português — o direito à habitação.

Aliás, e por outro lado, como no caso sub-judice, a redução do montante da renda nem sequer é inédita no nosso direito.

Em algumas regiões do país, por exemplo, 76 existiam, ou existem, as chamadas cláusulas «de quita e vista» segundo o que, em anos anormais (de inundações extemporâneas ou de proliferação das lagartas do milho, por exemplo,) a renda fica sujeita a redução a estabelecer por acordo entre as partes, em função da produtividade desses anos (Pinto Loureiro, Manual, I, pág. 71). Ora, não se descortina como, no campo dos princípios, um fenómeno puramente físico — como uma inundação — pode ter uma relevância jurídica superior à de um fenómeno social como o processo revolucionário português, com implicações tão profundas nos campos político, económico e social do nosso país. E se não se chegou a um acordo na redução das rendas é porque ao recorrido não interessou pôr em dúvida, ao menos por um momento, o seu direito à especulação com as rendas de casa.

E não se diga que o facto social da redução de algumas rendas — irrelevante quantitativa e qualitativamente se considerarmos a globalidade da sociedade portuguesa — tem, potencialidade de, por si só, «subverter» as relações sociais e jurídicas em matéria de inquilinato. Até porque as áreas de fricção são áreas identificadas de construção mais precária, de insuficiênca (ou mesmo ausência) de equipamento social adequado, de áreas em que as rendas não estão, de forma nenhuma, em função dos custos de produção dos imóveis, áreas onde, para usar a termonologia constitucional, habitam as 77 ciasses sociais mais desfavorecidas. A luta destes moradores além de, no fundamental, ser justa, joga no sentido do progresso, da «sociedade sem classes», do «socialismo», «do exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras», do «fim da exploração do homem pelo homem» (Art.º 1.º, 2.º e 9.º da Constituição Política de 1976).

E não nos deixemos impressionar pela ressonância que o fenómeno da redução das rendas teve em Portugal, pois ela deve-se, em grande parte, à hipertrofia dos interesses das classes sociais dominantes, e, além do mais, à consideração como intocáveis de interesses muitas vezes mesquinhos, cujos «valores» o novo direito em Portugal não pode tutelar. Mesmo um jurista tão insuspeito como Castanheira Neves nos adverte que: «a posição segundo a qual o direito é ordem e a revolução é anti-ordem está na lógica da concepção comum que os juristas fazem do direito, discípulos dóceis do positivismo conformista e inebriados pelo incenso da neutralidade cientista» («A Revolução e o Direito» in Revista da Ordem dos Advogados, ano 35, pág. 27).

No que respeita aos interesses dos proprietários dos imóveis urbanos já, com espantosa actualidade, escreveu Barbosa de Magalhães a propósito da reacção que as disposições do Decreto de 12 de Novembro de 1910 tinham levantado nas hostes desses proprietários: «Não houve defeito 78 que se lhe não assacasse, não havia inconveniente que (ele) não cometesse, o direito de propriedade era violado, desrespeitado, espezinhado; os senhorios eram espoliados; as suas exigências fiscais eram vexatórias e incomportáveis; as suas disposições não seriam executadas na sua maior parte; os seus efeitos económicos seriam desastrosos; jamais se construiriam prédios, especialmente em Lisboa, a propriedade ficaria desvalorizada e não mais haveria quem empregasse dinheiro em prédios urbanos; a lei... não poderia subsistir».

Isto há 60 anos!! Os senhorios, como se vê com a fabulosa acumulação criada, resistiram à «expoliação» e construiram prédios, «especialmente em Lisboa»!! A história é velha!!

IV — Os Juizes e o Direito no Portugal de hoje

A nova Constituição Política — de cumprimento obrigatório mesmo para juizes ou generais — veio consagrar os grandes objectivos nacionais e patrióticos:

É isto que está escrito na Constituição. E é sob esta óptica que têm de ser analisados e decididos todos os problemas jurídicos submetidos aos tribunais portugueses. E, em especial, como no caso sub-judice, todos os litígios ligados com o direito à habitação — ele mesmo, e pela primeira vez na nossa história, com sede constitucional (art.º 65.º).

O Estado, nos precisos termos desta disposição, está obrigado «a adoptar um sistema de renda compatível com o rendimento familiar».

É o sentido em que caminham os moradores da Quinta dos Cedros — entre os quais a recorrente — ao substituirem em Janeiro o critério da quantia fixa por assoalhada pelo critério da percentagem em relação, exactamente, ao rendimento familiar.

Portanto, todo o «outro direito» tem de ceder O passo aos princípios constitucionais apontados. Se a justaposição de dois corpos de normas baseados em princípios político jurídicos totalmente diversos — isto é, se a contradição entre dois direitos — levanta complexos problemas de exegese ou de hermenêutica jurídica é outro caso. O problema 80 de «correcção do direito vigente» nem sequer é novo e antes de nós — sempre que a queda de regimes. políticos levou ao corte radical com um outro sistema, — outros povos, e outros tribunais, tiveram de o resolver. É óbvio que os juizes portugueses podem e devem ter um papel importante na correcção desse direito, já que as situações de facto criadas (e o fluir da própria vida) não se compadecem com as demoras com que a actividade legislativa venha colmatar as novas lacunas. «A partir da situação presente é que nós, a quem a lei se dirige, e que temos de aperfeiçoar de acordo com ela a nossa existência, havemos de retirar da mesma lei» (isto é, da nossa Constituição) «aquilo que para nós é racional, apropriado e adaptado às circunstâncias. Fidelidade à situação presente, interpretação de acordo com a época actual, tal a tarefa do jurista. Fazer do órgão aplicador do Direito um obediente servo do logisiadora - seria degrado-los. Quem diz isto é outro mestre insuspeito, Karl Engisch (In Introdução ão Pensamento Jurídico, pág. 143, Manuais Universitários, Fundação Calouste Gulbenkian).

Os juizes têm, assim, de ajudar a construir um díreito equitativo de acordo & em adherência aos parâmetros constitucionais. Não podem coexistir dentro do Estado duas ordens jurídicas paralelas — com a agravante de uma delas ter sede 81 constitucional — em matéria de arrendamento urbano, como em qualquer outro instituto.

Se tal significa a adopção de critérios muito amplos de interpretação ou de recurso à analogia das normas constitucionais, se à invasão do espaço «praeter legem» ou mesmo à aplicação de direito «contra legem» é um problema de técnica jurídica.

Note-se, aliás, que esta última posição — à primeira vista inadmissível — é considerada defensável mesmo por certos autores «muito moderados», segundo Engisch (idem, pág. 270), até na Alemanha Ocidental onde, como se sabe, não ocorreu desde 1945 qualquer mutação social nem de longe nem de perto comparável às convulsões ocorridas em Portugal depois do 25 de Abril de 1974.

Isto, não obstante, claro, a jurisprudência alemã «evitar julgar abertamente contra legem» (idem, pág. 280). Isto sem a «atenuante» da hierarquia constitucional, como é o nosso caso. Os juizes portugueses podem (e devem) na feliz formulação do mesmo autor, «saber manejar a ideia do direito em desobediencia a lei» (idem, pág. 275).

Isto sempre concedendo que as disposições violadas pela recorrente, no que respeita ao pagamento da renda, ainda são «LEI».

Até porque, é a Constituição que o diz no art.º 205.º, os tribunais são órgãos de soberania que administram justiça em nome do povo. E o povo quer acabar com a especulação e a exploração a que está sujeito com as rendas de casa de montante 82 inadmissível. E os despejos são intensamente valorados pelas massas populares, toda a gente dá conta, já que as tensões sociais daí decorrentes são notórias, Ora a Constituição consagra o «desenvolvimento pacífico do processo revolucionário»

Os juizes podem (e devem), em face da nova Constituição, praticar a «analogia do direito constitucional» e desenvolver com base nela, mediante o método indutivo, princípios mais gerais que aplicam a casos que não cabem em nenhuma norma jurídica (Enneccerus, citado por Engisch, pág. 240). Aliás, o art.º 9.º do Código Civil estabelece o regime geral de que a interpretação deve sobretudo ter em conta «a unidade do sistema jurídico» (o que aqui significa respeito pela Constituição), as circunstâncias em que a lei foi elaborada (condicionalismos políticos económicos e sociais absolutamente diferentes que o legislador histórico não poderia prever, e as «condições específicas do tempo em que é aplicada» (uma época em que, nos termos constitucionais, o processo revolucionário deve ser prosseguido).

Já em 1915 dizia Hans. Richter («Gesetz und Richterspruch») citado por Engisch (pág. 272):

«O juiz é obrigado por força do seu cargo a afastar-se conscientemente de uma. disposição legal» (continuamos a conceder que exista) «quando essa disposição de tal modo contraria o sentimento ético da generalidade das pessoas que, pela 83 sua observância, a autoridade do direito e da lei, corra um perigo mais grave do que através da sua inobservância».

E Belig em 1931 igualmente citado por Engisch (idem) dizia que «o povo presume certas valorações como tão fundamentais que o legislador não se acha autorizado a fixar normas que vão contra elas».

Eis portanto, e por analogia de funções, fixados limites ao dever de obediência à lei (a existir) em nome de valorações fundamentais, dominantes no seio do povo.

Portanto, em todas as acções pendentes que impliquem desalojamento de pessoas ou de famílias (o Estado, segundo o art.º 67.º da Constituição, «assegura a protecção da família»), tem pelo menos de suspender-se a instância. Isto se não se considerar que o especial melindre e actualidade desta matéria — o despejo — justifica, nos termos doutrinais expressos, >a correcção da lei. Os juizes não podem ser cúmplices de leis iníquas, e «valorando a lei (no sentido do progresso social) defendem a sua própria autonomia».

E isto porque o direito não é uma categoria eterna mas um fenómeno social que evolui em função das correlações em presença à medida que historicamente se vai desenrolando a luta de classes. Como é sobejamente sabido, à forma jurídica está quase sempre em atraso relativamente ao desenvolvimento económico e social da sociedade 84 humana. E, como muito bem observa Stúcka (in Diário e Luta de Classes, pág. 178) os factos sociais, «convertem-se em direito quando reunem determinadas dimensões quantitativas».

Ninguém duvida que foram as ocupações de casas que, indiscutivelmente, geraram o Decreto-Lei 198A/75, de 14 de Abril. Os juizes portugueses não podem aguardar as demoras e as contradições do legislador ordinário.

Alguns, corajosamente, já o fizeram:

«Está constitucionalmente consagrada, a Revolução Socialista que traduz a substituição da sociedade burguesa por uma sociedade socialista.

Todas as revoluções implicam a consagração, ao menos implícita, da regra segundo a qual, os tribunais não devem aplicar uma norma, sempre que tal aplicação ofenda la consciência revolucionária.»

«Ainda há juizes em Berlim» !!!

V — Conclusões:

  1. — Toda a legislação sobre arrendamento urbano — em particular o capítulo IV do título 11 do Código Civil — está tacitamente revogada pela Constituição Política de 1976, por contrariar, frontalmente, os princípios básicos da nova ordem político-social implantada no nosso país, (art.º 293.º, n.º 1, «a contrário sensu»);
  2. 85 — Terá de ser adaptado novo regime jurídico para o instituto do arrendamento para habitação no decorrer da I Legislatura da Assembleia da República;
  3. — Enquanto o legislador ordinário não proceder à completa revisão desse regime os tribunais:
    • ou consideram que tais disposições legais estão em vigor e têm que interpretá-las à luz dos princípios consagrados na Constituição, ou
    • suspendem a instância até que a nova legislação seja promulgada;
  4. — Os tribunais não podem, neste momento, e em especial, decretar despejos por estes ofenderem a nova ordem ordem constitucional estabelecida em Portugal.

Nestes termos, e pelo muito que V. Ex.” se dignarão suprir, deve ser dado provimento ao recurso, revogando a sentença apelada, em especial ordenando-se que a recorrente seja mantida na casa que habita até que a situação seja normalizada mediante determinação da «justa renda» do andar locado.


Assim se fará JUSTIÇA!

Junho de 1976
O advogado
Saul Nunes


Inclusão: 24/04/2020